sábado, 4 de abril de 2020
Lay-off na função pública? Oportunismo e má economia
Com o emergir das crises, há sempre quem acorra ao espaço público para virar as principais vítimas da recessão económica contra si mesmas, explorando os preconceitos instalados na sociedade. Foi assim na anterior crise quando se tentou virar os velhos contra os novos, argumentando que tinham sido os privilégios dos primeiros a criar a crise que os segundos teriam de pagar. E foi assim também com a tentativa de estimular a hostilidade entre os trabalhadores do público e do privado, sugerindo que tinha sido a generosidade salarial dos funcionários públicos a causar a crise da dívida pública que lançou centenas de milhares de trabalhadores do setor privado para o desemprego.
Ingrediente necessário ao exercício é sempre uma pinga de moralidade de algibeira, explicando que isto não é preconceito, mas sim justiça. O seu formulador tem sempre a melhor das intenções.
Este artifício é guiado por dois fatores não mutuamente exclusivos. O preconceito do próprio autor, que apenas escolhe o ambiente mais favorável para o disseminar; e a tática política dos que sabem que enquanto as vítimas lutarem entre si não mobilizam esforços para detetar e combater a verdadeira raiz do problema.
O mais recente protagonista da manobra é Pedro Pires Rosa, ex-Presidente da concelhia de Aveiro do Partido Socialista, em artigo de opinião no Público (aqui). Pires Rosa defende que os funcionários públicos sem atividade necessária neste período também deveriam ser colocados em lay-off, recebendo dois terços do seu salário.
O verdadeiro artista precisa sempre de um bom número e Pires Rosa presenteia-nos com dois truques dignos de ilusionista: o primeiro (pouco original nestes exercícios) é que seria mais justo. Se os trabalhadores do privado considerados excedentários são colocados em lay-off e têm um corte no salário, os funcionários públicos deveriam fazer o mesmo, partilhando o sacrifício e poupando recursos ao Estado tão necessários neste momento. O segundo é a inevitabilidade. Pires Rosa é concludente ao afirmar que o corte no salário dos funcionários públicos será inevitável após a crise sanitária, porque o Estado terá de pagar os custos em que agora está a incorrer. Tudo neste raciocínio é errado. Vejamos porquê.
Pires Rosa acha que seria importante os funcionários públicos participarem no esforço de combate à crise, fazendo o Estado poupar recursos não lhes pagando parte do seu salário. No raciocínio do autor trata-se de lógica elementar, porque poupar no pagamento de salários permite ao Estado guardar mais dinheiro no seu cofre (imagino que seja com esta imagem que Pires Rosa olhe as finanças públicas).
É nesse momento que temos de repetir devagar e pedagogicamente aquilo que nunca nos devemos cansar de repetir: a economia de um Estado não funciona como a economia familiar. Porquê? Porque para uma família o seu rendimento é invariante em relação às decisões de poupança. Se um agregado familiar tiver um rendimento de 1000€ e decidir poupar 250€, conseguirá concretizar a sua decisão, consumindo 750€ e poupando 250€. Se decidir aumentar a sua poupança para 350€, também não verá a sua intenção frustrada. Consumirá 650€ e poupará os 350€ pretendidos. Com um Estado é diferente. Porquê? Porque o rendimento de um Estado (o seu PIB) não é invariante em relação às ações de consumo/poupança dos seus agentes. A diminuição do consumo por parte dos agentes económicos (porque ficam privados do seu salário, por exemplo) vai diminuir o rendimento da economia (assumindo que o investimento e as exportações não compensam essa diminuição, mas neste momento ninguém considera isso um mecanismo razoável). Menos salário significa mais redução do consumo, que significa menos rendimento e menos receita fiscal. Em resumo: em contexto de profunda recessão, qualquer dinheiro que o Estado poupe com os salários dos seus funcionários públicos, será mais do que compensado pela perda de receita fiscal em consequência do aprofundar da espiral recessiva causada pelos cortes salariais. É uma estratégia que vai contra o objetivo que diz perseguir.
Para além da fundamental dimensão social, é por isso que os mecanismos que evitam a perda de empregos e rendimentos são tão importantes neste momento. Pode-se discutir se o lay-off é ou não o melhor instrumento, mas uma medida que salvaguarde o rendimento da maioria dos trabalhadores é essencial como básico mecanismo de gestão macroeconómica. O objetivo neste momento é evitar qualquer perda de salários que agrave a diminuição da procura privada. O que Pires Rosa defende é totalmente contraproducente.
O argumento da inevitabilidade dos cortes salariais dos funcionários públicos é tão intelectualmente desonesto que é difícil de levar a sério. Mas continuemos a pedagogia. A recessão que enfrentamos a par da despesa necessária para fazer face à crise são de tal ordem que não será possível pagar a dívida pública no futuro com o aumento de excedentes orçamentais sem causar uma enorme crise de procura, com desemprego e cortes de rendimentos massivos. Economistas de diferentes proveniências ideológicas estão de acordo que esse não pode ser o caminho (ver, como exemplo, a discussão aqui, aqui e aqui). Só no contexto da zona euro, em função do seu deficiente desenho e dos impasses que se deixou encurralar, esta hipótese continua em cima da mesa. A zona euro teria todos os mecanismos para ultrapassar esta crise de forma indolor e sem sofrimento social, caso se mostrasse disponível a tomar as medidas necessárias no quadro do BCE (ver links acima).
Talvez Pires Rosa não saiba disto. Ou talvez saiba e considere que o discurso da inevitabilidade da austeridade lhe é útil. Seja qual for a hipótese, o conteúdo do seu artigo é lamentável. Manobrar o ressentimento entre as vítimas em proveito próprio é sempre um exercício reles.
Mesmo com muita razão em alguns dos seus argumentos, o desequilíbrio gerido e criado entre os diversos sectores da sociedade inevitavelmente cria essa animosidade, e pior do que os debaixo clamarem por igualdade e por justiça são os de cima(classe média) não ter a noção do que sustenta a sua excepcionalidade, sim não é só falta de decência é mesmo incapacidade e falta de clarividência pois em ultima análise é a própria estabilidade da classe que está em causa. Mas penso que por agora a luta premente ainda é e deve ser a luta entre a utilização dos recursos do trabalho e os recursos do capital.
ResponderEliminarHá no seu raciocínio algo que falta. Diz que o dinheiro poupado pelo Estado na redução de salários seria mais do que compensado pela perda de receita fiscal derivada da perda de consumo pelas famílias atingidas numa situação recessiva.
ResponderEliminarSugiro-lhe que explique o raciocínio que o levou a concluir isso, com números e tudo (creio que está a falar do famoso multiplicador que tanta celeuma causou, desde de 2011).
Até porque, em tempo de incerteza, não é certo que o rendimento dos funcionários públicos melhor pagos, pelo menos, não seja transformado em parte em poupança. É o que eu estou a fazer, até porque as necessidades de quem está em casa diminuem, não tem que pagar transportes, por exemplo ('cash hoarding' em tempos de crise).
Pode fazer mais sentido gastar esse dinheiro em apoios sociais aos mais desfavorecidos, trabalhem eles no público ou no privado, ou às empresas.
Não se trata nada de pôr umas pessoas umas contra as outras. Trata-se da gestão de recursos escassos em tempo de crise.
É que de outro modo, seremos levados a pensar que diz o que diz por mero preconceito ideológico. A ideologia quando não vem acompanhada de números, não é mais respeitável que a moral de algibeira. Simplesmente parece mais sofisticada...
Foram as inteligências socialistas avançadas que abriram a porta a Reagan.
ResponderEliminarForam as inteligências socialistas avançadas que abriram a porta a Thatcher.
Foram as inteligências socialistas avançadas que abriram a porta a Passos Coelho.
Tanta iluminação ainda dá curto-circuito, como deu na Grécia, França, Holanda, Polónia, Hungria, Holanda e Bulgária, etc.
Com tanta iluminação, a lâmpada funde.
Pedro Pires Rosa, apenas mais um exemplo do "Socialismo" realmente existente...
ResponderEliminarNão concordo com o seu argumento. O estado pode canalizar a poupança de salários da função pública para apoiar os trabalhadores do privado ou para reforçar o investimento (por exemplo no SNS). O corte temporário dos salários dos funcionários públicos não tem que obrigatoriamente ter efeito na procura.
ResponderEliminarSão rosas senhor, são rosas.
ResponderEliminarJaime Santos vai enricar com a pipa de massa que vai poupar! LOL
ResponderEliminarDá para entender que o seu salário está bem acima da média enquanto "funcionário público".
É lamentável que a isso não corresponda o nível de inteligência como tem sido abundantemente demonstrado nestas caixas de comentários.
Queira referir-se a este quadrinho, e diga-me que percentagem do salário pensa que o funcionário público médio pode poupar ficando em casa. Repare como a maior parte são despesas fixas ou indispensáveis.
https://1.bp.blogspot.com/-Ml_0L3NHMuE/Xno8zSNueQI/AAAAAAAAOJY/gw7RMj_jVtI7MKyCXiWQpgYsZ5qVP_jfwCLcBGAsYHQ/s1600/despesas%2Bfam%25C3%25ADlias.jpg
Depois pense:
Se reduzir o salário ao seu funcionário público tipo, que bens e serviços deixarão de ser comprados quando a situação se normalizar?
Quanto é que as empresas produtoras desses bens e serviços vão baixar em facturação?
Quanto em impostos deixará de ser arrecadado? = Menos receitas fiscais para o estado.
Só de IVA são 23%.
Se as empresas não facturarem, ou facturarem abaixo do limiar de rentabilidade vão à falência.
Se forem à falência põem no desemprego os seus funcionários.
Esses funcionários vão necessitar subsídio de desemprego.= Despesa para o estado.
Dá para entender que esta redução de rendimento geraria uma espiral deflacionista terrível de consequências para o país?
É que mesmo assim, só por causa das perdas de rendimento associadas às paragens forçadas pelo coronavirus a recessão é já garantida. Com as "poupanças" propostas pela luminária que pariu o artigo o buraco era ainda maior. A estupidez do autor e de quem lhe dá espaço noticioso é de ir às lágrimas.
Jaime Santos pensa erradamente que são as poupanças das famílias que alimentam o investimento. O que é uma ideia ingénua de como funciona o sistema bancário e o financiamento das empresas. É a chamada economia de merceeiro, que funciona para um indivíduo mas não é escalável para a economia de um país.
O pedido de "com números e tudo" é tão ridiculo que nem merece resposta. É uma tristeza!
Quando se perde o tino a contar tostões é certo e sabido que se perdem milhões.
Para uma compreensão dos mecanismos de transmissão das disrupções no tecido económico mundial, (sem números! Jaime Santos que se dane!), ver este artigo de Richard Baldwin:
ResponderEliminarhttps://review.chicagobooth.edu/economics/2020/article/treat-covid-19-s-economic-impact-start-keeping-lights
E um esquema que Richard Baldwin publicou no Twitter:
https://pbs.twimg.com/media/EUwzdHQXQAAx1Zi?format=jpg&name=small
Caro Daniel Marques,
ResponderEliminarO seu ponto de vista assenta numa hipótese verdadeiramente heróica: a de que os funcionários públicos, depois de levar um corte no ordenado, não iriam, à cautela, reduzir ainda mais o consumo para assim aumentar a poupança --- não vá o diabo tecê-las e este corte no vencimento, em vez de único, ser apenas o primeiro... Afinal de contas, os neoliberais, PS incluído, são muito bons a descobrir "buracos" colossais nas contas, e a enormes aumentos dos impostos depois, vide 2011.
Não há muitos problemas que se possam resolver imprimindo dinheiro do nada, mas colapsos na procura, como até a direita económica está a ser forçada a admitir, são um deles. (Salvar os bancos é outro, v. p. ex. aqui https://www.youtube.com/watch?v=U_bjDAZazWU, ou, ao estilo sui generis de Mark Blyth, aqui, aos 10m:10s: https://www.youtube.com/watch?v=S31VLG8Qi78)
O meu argumento não depende do comportamento individual dos funcionários públicos porque assumi que o Estado mantém a despesa. É simplesmente uma questão de distribuição dos sacrifícios.
EliminarPoderíamos então (e ainda que apenas em forma de saudável provocação intelectual) colocar mais uns pauzitos no lume e (e)levar a discussão para um outro patamar. Um dos aspectos que as situações contingentes a que nos habituámos a chamar "crises" (tenham elas origem em problemas estritos das contradições económico-finaceiras do sistema capitalista, tenham, como agora sucede, uma origem mais ampla), é que elas evidenciam, no seu âmago, o verdadeiro nó górdio que é gerado entre a existência de um modo de produção que é social e a circunstância de uma parte do rendimento asim gerado ser objecto de apropriação individual. A intervenção do Estado em tais sistemas de produção da riqueza, é como sabemos, dividida essencialmente em dois planos: promover a redistribuição social de uma parte do rendimento gerado, sob a forma de "prestações sociais", em sentido amplo (educação, saúde,apoios sociais, etc.) e garantir de forma directa a execução das tarefas e funções que os privados não querem (por desinteresse económico) ou não podem (por imposição política, em regra de base Constiucional), desenvolver: infraestruturas rodoviárias, segurança e defesa, são exemplos clássicos. Sucede porém e considerados na sua essência os princípios do liberalismo económico (os únicos que podem e devem, segundo uma visão intra-sistemática, ser válidos para tal análise), que toda a intervenção do Estado é um intervenção perturbadora do funcionamento dos mercados: as patologias sociais que o mercado gera, deveriam ser sempre por ele mesmo resolvidas e a contento, por via da incontornável mão invisível. Conhecemos todos as lições que a História nos deu quanto à desfuncionalidade dessa mesma mão, que obrigou, nomeadamente, aos mecanismo Keynesianos que prometiam também eles, aquilo que não podiam dar: o melhor dos dois Mundos, com a harmonia entre produção, apropriação e distribuição do rendimento e intervenção estatal, a constituirem o mais perfeito dos matrimónios. Mais uma vez, voltamos à História e às lições que ela também nos deu a esse nível. Chegados ao tempo presente, aquilo a que assistimos (como sempre, nas últimas décadas sobretudo) é à busca de soluções, que partindo da premissa apriorística da naturalização do capitalismo como único modo viável de produção e distribuição de riqueza e de organização da vida social, procurar, dentro dele e em si mesmo, mezinhas para os aleijões que o próprio sistema cria. Podemos continuar assim. Afinal, quem é que não viu ainda, uma mula a tirar água da nora?
ResponderEliminarE não se esqueçam do lay-off dos reformados, coitadinhos, tantos deles sem poderem viajar, sem estadias no campo, na montanha, na praia.
ResponderEliminarUma poupança forçada, uma violência!
Só por um grande desconhecimento ou má fé do autor do texto representado na fotografia o escreve.
ResponderEliminarjá estamos habituados a que em Portugal na imprensa generalista escrita e no audovisual apareção textos ou oratória cuja qualidade representa descnhecimento, muitas vezes desconhecimento profundo.
Há já em muitos serviços do Estado uma grande falta de de recursos humanos, pois está vedada a sua admissão há mais de 10 anos. Se os funcionáris publicos que se reformam ou abandonam a função publica, não forem substituidos por jovens a situação poderá vir a ser muito grave.poderá levar a que alguns serviços só "existam no papel."
Quanto ao lay-off, ele poderá levar a situações totalmente ìmprevisiveis quer sobre o caracter economico quer social.
A Eurocracia de Bruxelas e o BCE perante esta situação grave encontra-se totalmente desorientada, sem saber o que fazer .Por seu lado os Euroentusiastas estão silenciosos.
Não haverá uns lay-off eeeeeeeeeeeem toda esta parafernália?
ResponderEliminarhttps://oinsurgente.org/2012/05/05/lista-de-observatorios-portugueses/
Caro José, claro que não, estão todos no SNS de máscara a combater a pandemia.
EliminarCaro Daniel Marques,
ResponderEliminarAcho mesmo que devia ler o post novamente, mas talvez de um modo mais pausado :-)
Senão vejamos. No seu primeiro comentário, escreve que: «O corte temporário dos salários dos funcionários públicos não tem que obrigatoriamente ter efeito na procura.» Ora isto só é verdade se pelo menos uma de duas coisas acontecem:
1) Mesmo levando um corte no salário, os funcionários públicos continuam com os hábitos de consumo inalterados;
2) Existe uma fonte nova de procura, e.g. investimento privado e/ou estrangeiro.
Ora 1) é a tal hipótese heróica que mencionei no meu comentário anterior, e que só acontece por um verdadeiro milagre. E que --- contrário do que menciona no seu segundo comentário --- DEPENDE CLARAMENTE DO COMPORTAMENTO INDIVIDUAL dos funcionários públicos!
E no contexto da actual pandemia, a alternativa 2) seria um milagre ainda maior.
Ora, como se explica no post, para um estado, receita e despesa não variáveis independentes. E como a receita depende da procura, que depende dos comportamentos individuais (dos funcionários públicos e não só), e a despesa depende da receita (especialmente num estado sem moeda própria), não pode o Daniel afirmar que a manutenção da despesa por parte do estado é independente de cortes salariais (novamente, da função da pública, mas o caso em discussão aqui concerne aos segundos).
ERRATA: no meu comentário anterior, onde se lê: "não pode o Daniel afirmar que a manutenção da despesa por parte do estado é independente de cortes salariais (novamente, da função da pública, mas o caso em discussão aqui concerne aos segundos).", ler por favor:
ResponderEliminar"não pode o Daniel afirmar que a manutenção da despesa por parte do estado é independente de cortes salariais (novamente, da função da pública e não só, mas o caso em discussão aqui concerne aos primeiros)."
Diogo, tem fontes credíveis para esta afirmação ou é apenas um feeling de funcionário público: "Em resumo: em contexto de profunda recessão, qualquer dinheiro que o Estado poupe com os salários dos seus funcionários públicos, será mais do que compensado pela perda de receita fiscal em consequência do aprofundar da espiral recessiva causada pelos cortes salariais"? E se o estado com o dinheiro poupado a pagar salários chorudos a um juíz, colocar nas mãos de 20 famílias em sede de RSI? Aplica-se a mesma lógica económica de algibeira?
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