domingo, 15 de março de 2020

Ventos de mudança na imprensa liberal?


A crise de saúde pública que atravessamos com o surto de COVID-19 tem despertado as mais inesperadas reações. Depois da The Economist, referência do jornalismo económico liberal, ter dedicado não um, mas dois editoriais ao reconhecimento da superioridade da gestão pública em contextos de crise (num caso, sobre a saúde; noutro, sobre a banca), é a vez do Financial Times apelar a um esforço coordenado dos governos para conter a crise através do investimento nos serviços públicos e da garantia do rendimento de todos os trabalhadores (incluindo independentes e precários).

É certo que o jornal já o tinha defendido no início do ano. Mas os termos em que este recente apelo é feito dificilmente podiam ser mais claros: "O dinheiro não pode ser uma barreira para a capacidade dos serviços de saúde fazerem tudo o que for possível para controlar a epidemia e tratar dos doentes. A preocupação com as contas públicas num momento como este é tão perversa quanto contraproducente: gastar demasiado pouco é um perigo maior para a prosperidade do que gastar demasiado".

A urgência do financiamento do Estado para os serviços de saúde e para a proteção laboral tem sido, de resto, defendida nos últimos dias por muitos dos economistas que passaram anos a argumentar que a consolidação orçamental e a redução da despesa pública deviam ser o foco do governo, mesmo que à custa da qualidade dos próprios serviços públicos. Não deixa de ser interessante notar esta viragem radical na argumentação, por muito que seja difícil acreditar que seja mais do que temporária.

Entretanto, na Alemanha, até já se admite a possibilidade de nacionalizar empresas afetadas pela epidemia do novo coronavírus, depois de o governo ter anunciado que iria conceder "apoio financeiro ilimitado" ao setor empresarial. Mesmo no governo de Merkel, que se destacou na defesa intransigente da austeridade como resposta ao colapso financeiro de 2007-08, os responsáveis começam a olhar para alternativas.

Resta-nos concluir que as lições da última crise já são evidentes para a maioria: não há combate à recessão sem a intervenção musculada dos governos para estimular a economia, proteger o emprego e o rendimento das pessoas. É a única resposta sensata ao período turbulento que os países estão a atravessar. Não há nenhum bom motivo para que, aprendidas as lições, se cometam os mesmos erros do passado.

5 comentários:

  1. Quer-se-me parecer que os USA se preparam para aplicar o princípio do salve-se quem puder em relação a esta pandemia.

    E nesse caso aplicam-se as previsões de Richard Baldwin tal como exostas em:

    "Inequality and pandemic make an explosive mix"

    https://voxeu.org/article/inequality-and-pandemic-make-explosive-mix

    Os artigos do Economist e do Financial Times podem já não vir a tempo de alterar a amplitude do choque que se prepara.

    ResponderEliminar
  2. Entretanto a liberdade de circulação de mercadorias só se aplica quando convém:

    "La Germania ha imposto una restrizione all’esportazione di mascherine (e non solo) verso l’Italia."

    https://www.tpi.it/cronaca/coronavirus-mascherine-germania-italia-export-unione-europea-20200313565191/

    O demos europeu se alguma vez tivesse existido estaria neste momento a cometer suicídio.

    Como é que acham que os italianos se vão sentir em relação a uma "união" e a regras que só funcionam quando se trata de favorecer a Alemanha?

    ResponderEliminar
  3. Os troikanos, os europeístas e austeritários não aprenderam nada que preste, se não se sentissem ameaçados (o Covid19 é bastante democrático, afecta todos, ricos e pobres, tal como a morte...) milhões teriam que morrer para que alguma coisa relevante fosse feito.

    Há de facto lições a reter, uma das mais importantes é que o povo não pode confiar nas ditas "elites", e se o povo quer que as coisas mudem tem que exigir para que as coisas mudem!

    Passados mais de 10 anos de pulhice "elitista", depois de uma crise artificial criada pelas "elites", um período de tantas manipulações como "bancarrota", "não há dinheiro", "mercado-livre" entre outras aldrabices eu não consigo senão ter uma atitude fel para com estas ditas "elites"...

    ResponderEliminar
  4. Mas eu não acredito na mudança de ventos na UE!
    Para além da situação de calamidade pública a curto prazo em Abril e Maio, há que ter em conta o seguinte: depois de passada esta crise do Coronavírus, vamos receber da UE as "contas a pagar" por não termos respeitado o rigor orçamental, e nos termos endividado desrespeitando as sacrossantas regras do pacto de estabilidade.

    E os sinais já são bem explícitos nas recentes intervenções do BCE e da Comissão Europeia. Vão-nos impôr-nos uma nova Troika, provavelmente mais dura do que a de 2011.

    Espero que quando isso acontecer, lá para 2021 ou 2022, nós saibamos, enquanto Povo e enquanto País, resistir e lutar activamente, em vez daquela vergonhosa submissão que mostrámos há alguns anos, e devido à qual fomos tão elogiados pelos poderes dominantes na UE e em Portugal...

    ResponderEliminar