sexta-feira, 20 de março de 2020

Economistas, físicos e epidemiologistas

A hora que vivemos é de crise grave e este é, e continuará a sê-lo-á ainda mais nas semanas que temos pela frente, o tempo do imperativo do distanciamento social e o tempo da prioridade absoluta à resposta médica. Mesmo que esta crise venha a evoluir de forma relativamente mais favorável – e estou hoje mais otimista a esse respeito do que há uma semana, por motivos que explico em baixo -, esta epidemia vai infelizmente fazer ainda muito mais infetados e muito mais vítimas mortais por todo o mundo, e também em Portugal, do que os que fez até agora. O pior está mesmo pela frente por dois motivos simples: ainda estamos na fase de aceleração do numero de contágios; e os efeitos de quaisquer medidas tomadas só se tornam visíveis uma a duas semanas depois no que diz respeito ao número de casos e ainda um pouco mais tarde mais do que isso no que diz respeito aos casos graves e fatais.

Mas é também isso que apesar de tudo me deixa mais otimista. Apesar da leitura mais dramática e pessimista da realidade italiana poder sugerir um processo fora de qualquer controlo (ontem, 4ª feira, bateu-se novamente o recorde diário de número de novos casos e de óbitos em Itália), parece-me que uma leitura mais fria sugere que as medidas de distanciamento social estão a ter um efeito claro na contenção da epidemia. Quando um processo de crescimento quase-exponencial desacelera e passa gradualmente de convexo a côncavo, é de esperar que o número de novos casos continue a bater recordes diários durante algum tempo, mesmo que se encontre em desaceleração. O que é decisivo do ponto de vista da evolução da epidemia não são os novos casos diários em termos absolutos mas em termos relativos (a percentagem de crescimento) e essa, de uma forma geral, tem vindo a diminuir em Itália nos últimos dias. Isto é muito importante porque mostra que as medidas de distanciamento social são eficazes como resposta mesmo fora dos contextos particulares da China, Hong Kong, Macau, Coreia do Sul e Japão, onde a resposta foi adotada mais cedo e sabíamos já que resultara, mas não havia certezas sobre até que ponto dependia de fatores como a experiência da SARS em 2002 ou o contexto cultural.

Aparentemente, o distanciamento social resulta mesmo, em diferentes contextos, para enfrentar esta epidemia – e se for aplicado eficazmente permitirá limitar a sua progressão e a magnitude dos seus danos também entre nós. Sinto-me por isso aliviado e satisfeito com o facto de Portugal tê-lo introduzido de forma gradual mas relativamente precoce face ao que outros têm feito. O governo português tem a meu ver atuado de forma atenta, equilibrada e responsável nesta matéria (há claramente críticas a fazer às respostas em matéria social e económica, mas não irei tratar dessas neste texto). Numa altura em que estamos a poucos dias de começar a sofrer o embate maior desta crise, é seguramente para mim fonte de alívio e confiança ter António Costa e a sua equipa na liderança do país em vez de irresponsáveis negacionistas como Bolsonaro, Trump ou Boris Johnson. E numa altura critica em que o governo deve contar com o apoio de todos no que diz respeito à resposta à crise de saúde pública, é também de saudar a atitude colaborativa e responsável da generalidade dos partidos.

Referi-me em cima à evolução da epidemia enquanto processo exponencial ou quase-exponencial, e esta é uma discussão que nestes últimos dias tem ocupado muita gente: epidemiologistas (aqueles que realmente percebem do assunto), mas também físicos, economistas e outros, que não resistem a meter a colher (como eu próprio, e nem sempre acertadamente). Nos últimos dias, vários jornais, incluindo o Expresso, têm publicado exercícios de estimação da evolução da epidemia em Portugal enquanto função exponencial, que no início de uma epidemia constitui efectivamente uma boa aproximação: se toda a população for suscetível de contágio, cada infectado contagiar x novos casos em média e esse x for constante e maior que 1, o processo de crescimento é exponencial (ver Figura da esquerda, em baixo). Estes exercícios são interessantes e relevantes como alerta, sendo que, na minha opinião, são os que à qualidade técnica aliam a franqueza quanto às suas próprias limitações e fontes de incerteza.

Fonte: khanacademy.pt

Mas como facilmente se percebe, nenhuma epidemia segue eternamente um processo de crescimento exponencial: mesmo no pior cenário, sem qualquer tipo de resposta, atinge-se mais cedo ou mais tarde um ponto em que a redução do número de indivíduos suscetíveis de serem infetados leva à desaceleração do número de contágios. Por esgotamento gradual do número de suscetiveis, x torna-se menor que 1. E se a própria exposição ao vírus permitir desenvolver a imunidade de grupo tão falada nos últimos dias a propósito das opções britânicas, o número total de casos irá convergir para um máximo que poderá ser uma proporção maior ou menor da população total. Pedro Pita Barros tem por isso razão em não acreditar na curva exponencial: afinal de contas, toda a epidemia segue sempre uma curva logística e não exponencial, independentemente da primeira, na sua fase inicial, se assemelhar muito a uma exponencial (ver a Figura da direita, em cima).

Em todo o caso, o que nos deve importar realmente não é a discussão geral sobre processo exponencial versus processo logístico, que numa população finita está resolvida por definição. A questão é muito mais concreta e passa por conhecer – e sobretudo antecipar – o ponto de inflexão em que a curva passa de convexa a côncava. Passa também por reduzir o valor para que converge o número total de infetados, casos graves e casos fatais. Seguramente, não queremos atingir o ponto de inflexão devido ao esgotamento gradual do número de indivíduos suscetíveis, mas porque conseguimos reduzir ativa e suficientemente a velocidade de contágio.

Ora, as respostas a estas questões fundamentais não podem ser encontradas nos dados dos dias anteriores, nem sequer nas propriedades do vírus. Aquilo de que dependem fundamentalmente é das respostas comportamentais das pessoas – quer as induzidas pelas medidas de saúde pública quer as tomadas voluntariamente por maior consciencialização ou receio do perigo. A maior ou menor redução da velocidade de contágio é o que vai provocar a mais lenta ou mais rápida passagem do ponto de inflexão na curva logística e permitir a convergência para um menor ou maior número total de casos. E essa maior ou menor redução da velocidade de contágio não está escrita nas estrelas, nas folhas de cálculo dos economistas ou no RNA do vírus – evolui de dia para dia e continua a depender crucialmente do comportamento de cada um de nós.

Por isso, leia e acompanhe estes exercícios de previsão da evolução da epidemia, mas desconfie deles sempre que sugiram inevitabilidades: sejam eles mais catastróficos (curva exponencial) ou relativamente mais otimistas (curva logística, especialmente se baseada num ajustamento em função do precedente asiático), essa ideia de inevitabilidade alimenta uma complacência que pode ter consequências perigosas. A evolução desta crise continua a estar em aberto, e nas mãos de todos nós.

Nota final: Como disse no inicio, esta é uma hora de grave crise em que na linha de frente, durante as próximas largas semanas, vai estar sobretudo o pessoal médico e de enfermagem. Vão trabalhar horas infindáveis, estar longe das famílias, passar inúmeros desconfortos, tomar decisões que ninguém deveria ter de tomar, correr riscos de saúde e de vida. Vão fazê-lo por todos nós. Muitos, estando já aposentados, prontificaram-se a regressar ao serviço. A todas e todos eles, exprimo desde já a minha profunda gratidão. Que não nos esqueçamos deles nem agora nem quando tivermos superado esta crise.

9 comentários:

  1. INDIGNAÇÃO
    Em nome da verdade, é preciso dizer que os grandes (i)responsáveis que assistiram impunemente ao avanço galopante do vírus, desprezaram a necessidade de uma atuação eficaz em tempo útil para combater essa peste à nascença,
    São esses mesmos que agora, montando a tragédia que patrocinaram, para além de uma arrogante postura de impunidade, ditam leis a cumprir pelos inocentes, dando-se mesmo ao luxo de ameaçar com pesadas punições justiceiras.
    Que um exemplar comportamento dos cidadãos inclua a exigência de levar a julgamento os maiores culpados da tragédia, não os deixando escapar às malhas da justiça, e que esta vença no conflito com leis de quem não tem. autoridade ética nem moral para as proclamar.
    Sim Sr. Presidente, Vossa Excelência em vez de comandar navega no triste papel de carpideira das desgraças.

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  2. No JN de ontem, a Dra Raquel Duarte, pneumatologista, escrevia:

    "O Covid-19 não pode transmitir-se de forma exponencial para sempre. Existem limites máximos para a população e, com o tempo, as pessoas começam a criar imunidade à doença e os infetados começam a recuperar."

    (Coloquei em itálico a parte relevante)

    Talvez alguém queira elaborar como é que "com o tempo, as pessoas começam a criar imunidade à doença".
    A minha biologia está um pouco enferrujada mas não me parece possível que alguém ganhe imunidade "com o tempo" sem passar pela casa da infecção. E passando pela casa da infecção, passa também pela roleta russa que dita se é dos 20% que precisa de hospitalização ou dos 3,4% que bate a bota.
    Parece-me haver uma certa ligeireza na maneira como se aborda a questão da "imunidade de rebanho" e sobretudo não se falam nos riscos e nos custos em vidas humanas.

    Há que esclarecer que a "imunidade de rebanho" só funciona quando as probabilidades de um indivíduo encontrar um infectado activo são baixas. E que para que haja um número suficiente de indivíduos imunizados (na ausência de vacina) é necessário que cada um deles tenha passado por uma fase de infecção e que tenha sobrevivido (com ou sem sintomatologia, não interessa).

    É importante realçar que não é "com o tempo", é com muita gente infectada que tenha recuperado e com 3,4% desses infectados a fazer o Checkout Final.

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  3. Olá Alexandre, como vai isso? Só posso ser telegráfico. Devo dizer que tive que dar algumas voltas ao miolo para arranjar uma interpretação benigna para a sua «passagem gradual de convexo a côncavo» (o ponto de inflexão), mas receio bem – e, para um bom entendedor como o Alexandre, esta meia palavra bastará – que esteja a confundir, no seu raciocínio, a segunda derivada, que dá o sentido das concavidades, para cima ou para baixo, com o «número de novos casos diários em termos relativos».

    É certamente desejável que a percentagem de crescimento se reduza, mas essa diminuição, por si só, não é «decisiva do ponto de vista da evolução da epidemia», não é garantia da inflexão. Isto é, pode-se perfeitamente ter uma diminuição do crescimento diário relativo e continuar a ter permanentemente um crescimento diário absoluto. Basta que a percentagem de novos casos, não diminuindo suficientemente, não compense o aumento do total de casos infetados confirmados, o denominador em relação ao qual é calculada.

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  4. A questão relaciona-se com o modo como a matemática e os seus formalismos têm aplicação na realidade. No caso das ciências, só na física é que há áreas onde a aplicação é quase directa, de tal modo que a passagem do modelo matemático para a situação experimental é quase linear. Quando se passa para as ciências biológicas, essa passagem é muito mais complexa, como no caso das populações animais. No caso em questão estamos na área das ciências humanas e onde a matemática tem uma aplicação muito problemática, em que os factores qualitativos e de decisão autónoma ganham muita importância. A natureza da curva e a sua evolução não depende essencialmente de questões de matemática ou das propriedades das funções diferenciais.

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  5. Tem sido interessante, embora triste, acompanhar este debate do exponencial vs não-exponencial e do físico vs epidemiologista vs um gajo qualquer na internet.

    A maior parte dos comentários que li caíram num dos enviesamentos do costume, o argumento-espantalho (straw man), em que se caracteriza pobremente um argumento para mais facilmente o destruir, ou o non sequitur, em que se fazem um conjunto de afirmações verdadeiras, mas irrelevantes.

    É caso do argumento de que nada pode ser exponencial para sempre. Ora o artigo que fala da exponencial começa exactamente por sublinhar isso, falando da curva logística, etc., e só por má fé ou por não ter lido o artigo alguém pode ignorar pormenor tão importante.

    Depois, possivelmente porque a conclusão ou o estilo não agradam, muita gente se fixou na questão errada: se é ou não exponencial, quantos casos aparecem amanhã, ou se o malfadado R0 é constante ou não e do que é que ele depende.

    Ora para mim foi óbvio que o crucial é:

    - que a curva tem um regime de crescimento rápido numa fase inicial (exponencial ou parecido)

    - que para limitar esse crescimento rápido não se podem protelar medidas, pois as medidas serão tão mais eficazes quanto mais cedo forem accionadas

    - que as medidas permitem, precisamente, mudar o valor do tal R0, esse é o ponto, o que significa que é absurda a acusação de inevitabilidade

    - que não se salva a economia, apenas se agrava a situação, ao adoptar medidas suaves e/ou tardias

    Não percebo portanto porque razão o tal físico provocou tanta celeuma. Nada neste mundo pode crescer exponencialmente para sempre, isso ficou claro no artigo "da exponencial", a não ser (não para sempre mas por tempo indeterminado) os juros compostos.

    Os economistas estariam então em boa posição de perceber os limites da exponencial, sublinhados no original, e de que esta não se manteria para sempre, mas parece terem todos esquecido momentaneamente o ceteris paribus do costume.

    Também acho particularmente interessante ver economistas a criticar a formação inadequada dos físicos para este caso, e a incerteza nas constantes dos modelos, que supostamente deviam exigir mais recato. Logo os economistas, que adoram falar de tudo ou acham que tudo é economia, fartam-se de usar modelos ad hoc e com constantes muito mal conhecidas (quando não são mesmo erradas), e fazem previsões a torto e a direito, na maior parte das vezes falhadas.

    Eu não condeno os economistas por o fazer. Afinal o seu campo de estudo é extremamente difícil. Mas seria bom não cobrarem de outras formações aquilo que fazem todos os dias. Será um caso de "physics envy"?

    A vantagem de haver modelos matemáticos e as hipóteses serem claras é que toda a gente pode analisar e criticar. Parafraseando o Von Braun, "dêem-me factos, não opiniões". Mas não vi ninguém criticar os modelos. Como disse, o que vi foi argumentos ad hominem, espantalho e non sequitur.

    Uma nota final: como disse, a minha interpretação do artigo da exponencial foi a urgência de mais e/ou melhores medidas de contenção. Ainda hoje vi a notícia de um médico chinês que está em Itália a ajudar a dizer que a itália não está a fazer o suficiente. Provavelmente nós também não. Porque medidas proporcionais são insuficientes para controlar um problema em fase exponencial.

    É só isso.

    Paulo Gil
    Físico de formação

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  6. Para quem queira fazer simulações com as várias variáveis possíveis, agora já é possível com este calculador:

    http://gabgoh.github.io/COVID/index.html

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  7. Nassim Taleb discutindo o coronavirus já a 8 de Março, mas com alguns conceitos úteis.

    https://www.rootsimple.com/2020/03/nassim-taleb-on-why-its-better-to-panic-early-about-the-coronavirus/

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  8. Artigo informativo sobre a conexão entre a globalização e o coronavirus, Também baseado no pensamento de Taleb.

    https://unherd.com/2020/02/why-we-should-overreact-to-coronavirus/

    Excertos:

    "As a species, we’re doing too many things to shorten the odds on disaster. To begin with, there’s what we’re doing to increase the likelihood of novel pathogens emerging — especially those that jump the species barrier from animals to humans. The disruption of the natural environment, the hunting and consumption of wildlife, the overuse of antibiotics, and various agricultural and food handling practices are all risk factors. As if that weren’t enough, there’s also our reckless enthusiasm for genetic modification — which introduces a whole range of new pathways by which novel pathogens might emerge."

    ...//...

    "We therefore need to ask very serious questions about a global economy and its propensity for creating the conditions in which new diseases frequently emerge and rapidly spread. In particular — and contra to the predictably woke and patronising takes on ‘not kicking-down’ — we need to talk about China. The People’s Republic is a society that is moving much faster than the West on many fronts (like transport infrastructure), but it is still behind on other things — like healthcare and food safety standards. That’s a potentially dangerous combination, one that prioritises growth and connectivity over precaution and sustainability. Furthermore, with the full complicity of the West, it is reordering the global economy."

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  9. Um verdadeiro manual de contenção do coronavirus:

    https://theconversation.com/why-singapores-coronavirus-response-worked-and-what-we-can-all-learn-134024

    Muito sistematico e sintético.

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