terça-feira, 18 de fevereiro de 2020
Fogo e contrafogo
Na última sondagem do Expresso, o Chega já está nos 6% das intenções de voto. Temo que possa crescer ainda mais. Deixo aqui mais uns excertos, com referências omitidas, do artigo sobre o Chega, que publiquei no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Janeiro:
Foi sobretudo graças às intervenções no Expresso e na SIC Notícias de Daniel Oliveira, um raro jornalista de combate ideológico, que, entretanto, o Chega viu o seu programa finalmente escrutinado, obrigando este partido a um recuo. Se a luta ideológica não chega, sem esta, a verdade sobre a extrema-direita dificilmente emergirá, já que factos e valores estão sempre irremediavelmente entrelaçados. O escrutínio requer sempre um quadro de análise. Os factos nunca falam por si. (...)
Partindo de uma detalhada análise do programa socioeconómico do Chega em defesa do desmantelamento do Estado social – dos direitos laborais que ainda subsistem ao fim do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e da escola pública, passando pela complementar defesa do fim da progressividade fiscal –, Daniel Oliveira resume acertadamente a sua verdadeira lógica: «ao Estado cabe defender o dinheiro dos ricos e ter o cassetete pronto para os pobres». Na economia política crítica, há muito que está estabelecida a ligação entre os processos de neoliberalização e o reforço de um certo tipo de Estado repressivo, com um óbvio e cada vez mais acentuado viés de classe. (...)
Trata-se no fundo de procurar enraizar o autoritarismo neoliberal, através de um estilo populista dito triádico. Este alimenta uma clivagem, sobretudo cultural, entre povo e certa elite, sendo que esta última é acusada de proteger um terceiro grupo, minoritário, que serve então de bode expiatório para problemas reais. A imigração em crescimento, num país causticado pela desigualdade e pela austeridade, vem mesmo a calhar. (...)
Com a flexível desfaçatez que o caracteriza, André Ventura criticou, na Assembleia da República, a falta de investimento do governo no SNS. Com corrosiva ironia, o primeiro-ministro António Costa saudou a anunciada mudança de posição. (...) A intervenção de António Costa, em defesa do SNS, assinala um dos elementos que pode travar o autoritarismo neoliberal: a Segurança Social gerada por serviços públicos robustos, porque de acesso universal, parte de um sistema mais vasto a que chamamos Estado social, sem o qual não há democracia que possa sobreviver às compulsões capitalistas. Este sistema é mais vasto, porque tem de incluir políticas económicas orientadas para o objectivo do pleno emprego, no quadro de relações laborais reguladas para garantir acção sindical dos trabalhadores. O sindicalismo unitário de classe, enraizado em todas as áreas, é de resto um freio à popularização da extrema-direita. O enfraquecimento e a pulverização sindicais podem criar oportunidades para a cultura da extrema-direita em áreas sensíveis da soberania, como é o caso, em Portugal, da segurança pública.
O Estado social é simultaneamente uma encarnação e um dique de protecção da democracia, pressupondo instrumentos de política económica na escala nacional, onde estiveram e ainda sobrevivem, aqui e ali, as instituições democráticas realmente existentes. Uma das razões para a perigosa resiliência do neoliberalismo é o regime austeritário europeu, indissociável do euro e das liberdades do mercado único, incluindo a liberdade de circulação de capitais, desenhado para destruir o dique da democracia nacional robusta. Apesar da retórica crítica do globalismo, estes pilares da globalização mais intensa no continente são defendidos no programa do Chega: da «sã política de rigor orçamental no que respeita aos países integrantes do EURO [sic]» à «manutenção das quatro liberdades (livre circulação de bens, serviços, pessoas e capitais)». A extrema-direita periférica, tal como o resto da direita, conhece as estruturas da integração europeia que a favorecem de várias formas. Infelizmente, o mesmo não sucede com grande parte da esquerda, sobretudo com uma social-democracia desorientada e esvaziada pelo euro-liberalismo puro e duro.
Não há retórica parlamentar que oculte a realidade material da erosão europeia do Estado social à escala nacional, criadora de um círculo político absolutamente vicioso: corrupção, indissociável da continuada entrada do dinheiro em esferas que lhe deveriam estar vedadas, desigualdades, com declinação social e territorial, insegurança sociolaboral, impotência democrática, traduzida na incapacidade de dar resposta a problema reais por falta de instrumentos de política decentes, irrupção de uma extrema-direita que procura monopolizar o tema da segurança e da fronteira nacional, dando-lhes um conteúdo repressivo e etnocultural racializado.
Neste contexto, a esquerda não se pode esquecer que a política popular passou sempre pela disputa ideológica das formas de fronteira nacional e de segurança a garantir às classes populares. Sem algum grau de fronteira económica, sem controlo político democrático sobre os capitais e sobre os fluxos comerciais ao nível dos Estados, não há autoridade e responsabilidade políticas democráticas; nem forma de segurança defensável, a social, a que é garantida pela provisão pública de recursos essenciais e pelo manejo de um plêiade de instrumentos de política económica hoje anulados ou furtados pela integração europeia. Sem a imaginação nacional e popular a funcionar para democratizar a economia, e sem os instrumentos que lhe dão tradução material, o campo fica livre para a viciosa imaginação da extrema-direita.
No fundo, o melhor contrafogo ao populismo triádico pode bem ser hoje um projecto, apodado de populismo diádico, que exponha politicamente uma clivagem material, bem real, entre povo e elite, resultado de décadas de regras neoliberais que transferem recursos de baixo para cima e medo de cima para baixo, decisivamente favorecidas pela globalização. Não há que ter medo das clivagens sociais, nem da desglobalização económica. Há é que ter medo dos hábitos de pensamento que dificultam a tomada de consciência de tarefas intelectuais e políticas inadiáveis.
A «manutenção das quatro liberdades (livre circulação de bens, serviços, pessoas e capitais)» acarreta a “falta de instrumentos de política decentes”.” Sem algum grau de fronteira económica, sem controlo político … sobre os capitais e sobre os fluxos comerciais ao nível dos Estados, não há autoridade e responsabilidade políticas democráticas;”
«O enfraquecimento e a pulverização sindicais podem criar oportunidades … em áreas sensíveis da soberania, como é o caso, em Portugal, da segurança pública.»
Se o Chega tivesse no seu programa um tal argumentário ia parar ao Tribunal Constitucional sob o rótulo de fascista.
Pontuar o autoritarismo com a bênção 'democrático' não altera a sua substância - quem está no poder manda e tem meios para se eternizar no mando.
«ao Estado cabe defender o dinheiro dos ricos e ter o cassetete pronto para os pobres»
ResponderEliminarChega em defesa do desmantelamento do Estado social – dos direitos laborais que ainda subsistem ao fim do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e da escola pública, passando pela complementar defesa do fim da progressividade fiscal
O tremendismo de uma esquerda em pânico que lhe discutam o monopólio do discurso político vai continuar a promover o crescimento do Chega.
Enquanto a esquerda não discutir as competências da boyada que povoa a função pública e enfesta o país de cargos de confiança política, o Chega cresce, ou dá lugar a quem cresça no lugar dele.
ResponderEliminarO populismo diádico não funciona, como bem mostram estes dois artigos recentes no Guardian, porque as pessoas desenvolvem um apego àquilo que conseguiram com o trabalho de uma vida, que políticas inflacionistas são facilmente capazes de destruir.
ResponderEliminarQuando se critica uma política, João Rodrigues, é bom que se esteja disposto a deixar clara a alternativa, porque para pior já basta assim. E a alternativa é inflação, dívida e penúria...
https://www.theguardian.com/business/2020/feb/15/older-poor-not-easily-convinced-to-be-socialist-sanders-labour
https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/feb/16/labour-should-stop-demonising-the-rich-most-britons-like-them
Se esse populismo dito diádico sequer conquistasse a confiança das classes populares, os Partidos que o propõem teriam crescido eleitoralmente à custa do Centro Político e isso não tem acontecido, antes pelo contrário...
Andar pois o nu a altercar o roto é cómico, não fosse trágico. Mas mais, a concepção de exercício do poder dos populistas, à Direita ou à Esquerda é a mesma, com a captura das instâncias de intermediação (tribunais, funcionalismo público) em nome de uma soberania exercida pela minoria para oprimir a maioria. Se isto é assim, tragam-me já as grilhetas de Bruxelas, que eu cá gosto das decisões do ECJ que condenam o Estado Português pela má administração da Justiça, por exemplo...
Compare-se a corrupção no Leste Europeu autocrático com a mesma na Venezuela e verificamos que apesar de toda a hipocrisia, a democracia liberal, a tal que é limitada e ainda bem, o limite é justamente a liberdade dos indivíduos, ganha por uma milha em transparência.
Pode dizer-se que a mera diferença entre um populismo e o outro é que o primeiro ganha eleições e o segundo perde-as... Colocar as pessoas umas contra as outras e erguer fronteiras às mercadorias e sobretudo aos indivíduos (coisa que você nunca refere, percebe-se porquê, mas olhe que em termos de muros ninguém leva a palma aos comunistas) dá votos, juntar-lhes o socialismo é que não...
É por isso aliás que a Direita reaccionária adora Corbyn e Sanders, sabem que eles não representam qualquer ameaça ao seu jugo... É curioso que alguém tão inteligente como Daniel Oliveira defenda a nomeação de Sanders pelos Democratas, mesmo que tal leve a uma derrota eleitoral esmagadora porque supostamente isso criará um movimento que deixará raízes para o futuro.
Parece que ele é suficientemente ingénuo para acreditar que um Trump reeleito irá permitir que a Esquerda cresça. De novo, olhe-se para o Leste europeu e veja-se o que aconteceu...
E sim, os orçamentos equilibrados em situações de crescimento económico e de dívida pública elevada são necessários, de outro modo acabamos com o típico 'os remediados que paguem a crise' porque os ricos, já se sabe, são bem capazes de acautelar os seus valores.
E a social-democracia não anda nada desonrientada, João Rodrigues, ela está sim é em crise pela incapacidade das economias ocidentais gerarem taxas de crescimento que permitam a manutenção das políticas de investimento em serviços públicos. Mas defender algo que a prazo condena os Estados à penúria não é solução.
A solução passa isso sim pelo abandono do modelo do crescimento económico eterno, que condena o planeta, seja em versão capitalista seja em versão socialista. Nem o capitalismo nem o socialismo são verdes, pois claro...
É fácil? Claro que não, mas pode ser a única via para não nos matarmos a todos...
https://www.newyorker.com/magazine/2020/02/10/can-we-have-prosperity-without-growth?utm_campaign=aud-dev&utm_source=nl&utm_brand=tny&utm_mailing=TNY_Magazine_Daily_020320&utm_medium=email&bxid=5bea0b282ddf9c72dc8ccb7f&cndid=50846096&esrc=&mbid=&utm_term=TNY_Daily
A UE impede Portugal de reduzir as desigualdades e lutar contra a pobreza?
ResponderEliminarhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Coeficiente_de_Gini#Interpreta%C3%A7%C3%A3o
Antes:
Coeficiente de Gini em 1994: 37
Coeficiente de Gini em 1995: 36
Coeficiente de Gini em 1996: 36
Coeficiente de Gini em 1997: 37
Coeficiente de Gini em 1998: 36
Depois:
Coeficiente de Gini em 1999: 36
Coeficiente de Gini em 2000: 37
[Não há dados durante os 2 anos seguintes, e a amostragem passa da Eurostat para o INE]
Últimos 4 anos:
Coeficiente de Gini em 2015: 33.9
Coeficiente de Gini em 2016: 33.5
Coeficiente de Gini em 2017: 32.1
Coeficiente de Gini em 2018: 31.9 (Provisório)
https://www.pordata.pt/en/Portugal/Gini+index+(percentage)-2166
Como o GINI é uma medida relativa, como estará a pobreza absoluta (rendimentos inferiores ao limiar de risco de pobreza, situação de privação material severa ou intensidade laboral muito reduzida) em percentagem da população?
A PORDATA (https://www.pordata.pt/Europa/Popula%C3%A7%C3%A3o+em+risco+de+pobreza+total+e+por+grupo+et%C3%A1rio+(percentagem)-2331) não tem dados anteriores a 2004 por isso não podemos ver o pré-pós união monetária, mas nos 14 anos que tem não há uma trajetória de crescimento da pobreza, sendo 27.5% no início da série, voltando a esse valor em 2013 e 2014 e nos últimos 4 anos:
População pobre em 2015: 26.6%
População pobre em 2016: 25.1%
População pobre em 2017: 23.3%
População pobre em 2018: 21.6%
Por isso, se o objectivo da UE é o de manietar os governos e impedí-los de redistribuir a riqueza e diminuir a pobreza, está a ser mesmo muito incompetente.