sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Desinformação

O primeiro-ministro António Costa tem repetido, nos últimos meses, que durante esta legislatura foram criados centenas de milhares de postos de trabalho, dos quais a esmagadora maioria tem contratos permanentes.

Disse-o, por exemplo, a 1/2/2018, no debate quinzenal: “Nos dois últimos anos, foram criados mais 288 mil novos postos de trabalho líquidos, 78% dos quais com contrato de trabalho” sem termo. Disse-o em Outubro de 2018 no debate quinzenal. A 10/7/2019, no debate do Estado da Nação: “Nos quatro anos desta legislatura foram criados 350 mil novos postos de trabalho (...) 89% dos novos empregos por conta de outrem são contratos sem termo.” Esta afirmação foi sujeita ao “Fact Check do Observador” e... grosso modo passou. Disse-o há dias no debate eleitoral com Jerónimo de Sousa e hoje com Catarina Martins, quando referiu que 92% dos 361,9 mil postos de trabalho assalariados criados desde o inicio da legislatura, eram contratos sem termo.

Ora, estas afirmações são incorrectas.

O problema é que custa mais desmontar um erro do que afirmá-lo. Mas vamos tentar.

Os números repetidos pelo primeiro-ministro partem do Inquérito ao Emprego do INE. Para a última afirmação de Costa, comparou-se os valores do 2º trimestre de 2019 com o 2º trimestre de 2015. Subtraindo o número de assalariados no 2º trimestre de 2019 (4085,3 mil) ao do 2º trimestre de 2015 (3723,4 mil), chega-se uma diferença de 361,9 mil trabalhadores por conta de outrem. E caso se subdivida este grupo de trabalhadores por tipo de contratos, obtém-se uma subida de 331,9 mil nos contratos sem termo (3228,6 mil contra 2896,7 mil), de 33,4 mil nos contratos a prazo (732,2 mil contra 698,8 mil) e uma redução de 3,4 mil noutros tipos de contrato (124,5 mil contra 127,9 mil).

A conta é possível de ser feita, o erro está no que se conclui.

1º erro. Não se pode concluir que essa subida represente o número de novos postos de trabalho criados nesse período.

Os números do INE para o emprego representam, não a criação bruta de emprego, mas a criação líquida de emprego. Ou seja, o número de assalariados no 2º trimestre de 2019 e no 2º trimestre de 2015 é uma diferença entre os postos de trabalho criados e os destruídos em cada um desses períodos. Só que não é possível conhecer essa criação bruta nem a destruição verificada, porque esses valores não são divulgados. Por outras palavras, conhecendo o valor de uma dada criação líquida de postos de trabalho, não se sabe como se chegou a esse número, porque pode haver uma combinação infinita de possibilidades, cujas dimensões se desconhece.

Veja-se o exemplo retratado em baixo.


Nestes três exemplos possíveis verifica-se a mesma criação líquida de emprego. Contudo, ela resulta de diferentes combinações entre a criação bruta de emprego e a destruição de postos de trabalho.

A importância deste facto é a de que cada situação pode partir de um cenário da situação do emprego completamente distinto. Por exemplo: no exemplo 1, a evolução parece bastante estabilizada. Houve uma forte criação de postos de trabalho e a uma reduzida destruição. Mas no exemplo 3, verifica-se já uma alta rotatividade de empregos. E no entanto, os três casos resultam na mesma criação líquida de emprego.

Importância política: a criação líquida de emprego é um dado importante, mas pode esconder situações distintas que requererão políticas diferenciadas.

2º erro: a partir de informação sobre criação líquida de emprego é impossível conhecer a realidade da distribuição por tipo de contrato dos “novos postos de trabalho”

A armadilha que é criada pelo facto de não se conhecer os números dos postos de trabalho criados e destruídos torna mais evidente a impossibilidade de ter certeza sobre o que aconteceu aos números relativos aos tipos de contrato.

Veja-se os mesmos exemplos, agora para os contratos sem termo, com termo e outro tipo de contrato.




O mesmo valor de criação líquida de emprego para cada um dos tipos de contrato pode representar diferentes situações. E por isso, obrigaria o Estado a ter abordagens diferenciadas com cada uma delas. Mas o mais importante é que ninguém pode afirmar que, dado uma certa criação líquida de postos de trabalho, essa criação se fez à custa de um dado tipo de contrato.

O que diria António Costa se a realidade estivesse mais bem representada no exemplo 3? Nesse caso, o emprego assalariado com contratos sem termo seria bem reduzida e estar-se-ia a assistir – sem nos apercebermos através dos números do INE – a uma alta rotatividade de contratos com termo que pouco resultam em criação líquida de emprego.

Tentando sintetizar o que foi dito, veja-se as percentagens dos contratos criados. E repare-se como a realidade descrita pelas afirmações do primeiro-ministro podem ser verdadeiras, tal como poder completamente erradas.


Note-se que os vários exemplos são consistentes com os valores do INE e com as declarações do primeiro-ministro. Porém, o que choca é que os números apresentados pelo primeiro-ministro colidem com a percepção que existe sobre a actual situação do emprego em Portugal. E até com a do próprio Governo.

Recorde-se que, em Julho de 2017, o ministro do Trabalho afirmou numa entrevista:

“Hoje, a economia portuguesa gera - é um dado que normalmente não é conhecido -, mais de meio milhão de novos contratos num semestre. Há meio milhão de contratos que se fazem num semestre e há quatrocentos e tal mil que se desfazem. Há, portanto, uma rotação muito maior do que nós pensamos e uma grande parte desses novos contratos são contratos de curta duração, são contratos de três meses, seis meses, são contratos a prazo, são contratos em que a pessoa é contratada e despedida ao mesmo tempo. Nalguns casos isso tem justificação económica e a lei dá uma cobertura clara, são picos de trabalho, substituição de trabalhadores em situação que não é possível fazer de outra forma. Noutros casos... e é a maioria dos nossos contratos que são desse tipo, julgo que isso já ultrapassa o enquadramento legal e há algum excesso. Eu não estou a demonizar os contratos de curta duração que, por vezes, são necessários, principalmente numa economia com mais fatores de sazonalidade e por aí fora. O que estou a dizer é que a dimensão em que eles existem em Portugal é claramente excessiva. É o segundo ou terceiro país da Europa que tem mais contratos deste tipo.”

Estas declarações iam ao encontro das conclusões a que chegou, por exemplo, o Observatório sobre Crises e Alternativas, a partir dos números facultados pelo Fundo de Compensação do Trabalho. (FCT), um fundo criado para pagar parte das indemnizações por despedimento e que, por causa disso, começou a compilar informação sobre os novos contratos. Como um FCT se iniciou em 2013, a sua informação acabou por dar informação sobre o tipo de emprego que a retoma económica estava a criar.

Os estudos apontavam para uma quase explosão de contratos precários, com baixas retribuições salariais, em completa oposição à ideia feita a partir da estatística, de que a criação bruta de emprego na retoma económica se estava a fazer com contratos permanentes.

Consulte-se esses estudos aqui e aqui.

Foi esta percepção que forçou a iniciativa governamental de aprovar um plano de combate à precariedade, discutido e polemicamente aprovado na comissão permanente da concertação social e que, estranhamente recebeu um largo aval patronal e acabou por ser ratificado pelos deputados do PS, PSD e CDS.

Curioso é notar que, depois da repercussão pública que tiveram os números do FCT, as confederações patronais insistiram na falta de eficácia do FCT, pugnaram pelo seu fim (o fundo dispunha em 2017 de 173 milhões de euros) e, não o conseguindo, notou-se uma perda de transparência dos seus dados. Consulte-se o site do FCT e repare-se que, apesar do FCT ser igualmente gerido por representantes do Governo, as estatísticas deixaram de aparecer.

De qualquer forma, fica a dúvida que assalta quem ouça o primeiro-ministro: Se o emprego que está a ser criado é um emprego estável, baseado em contratos sem termo, por que foi aprovado - com tanta pompa e circunstância - um plano de combate à precariedade?

16 comentários:

  1. Excelente e demorado trabalho

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  2. "Para a maioria dos portugueses a crise não passou"

    https://www.tsf.pt/portugal/economia/interior/mais-de-metade-dos-portugueses-diz-que-a-crise-nao-passou-11266030.html

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  3. Ok,então está tudo na mesma, o Costa é mentiroso e mais vale acabar com a geringonça.
    Venha uma nova PAF. Passos: Volta, estás perdoado.
    Acho que Costa se esqueceu de dar um tacho ao Ramos de Almeida.
    Desculpem o exagero mas, posto isto, é o que parece.

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    1. Nem tudo está na mesma.

      Nem Passos está perdoado


      É assim tão difícil perceber o que se escreve e diz?

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  4. 'Criaram emprego' antes demais porque deram 10% de margem acrescida às empresas de restauração e similares.

    Mas disso ninguém fala porque não fica bem na fotografia de esquerda!

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    1. Por acaso ainda me lembro dos berros histéricos deste jose quando se diminuiu a taxa do IVA na restauração

      A fotografia mostra 10%?

      Jose fica tão bem nesta fotografia junto do amigo passos Coelho

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  5. É feio

    O comentário de Vieira é feio. Feio e ofensivo

    Se vieira não gosta que denunciem a política desinformativa de Costa, que o diga. Mas sobretudo que contraponha dados e justifique o contraditório

    Agora birras de criança, a tentar calar vozes que serenamente expõem a nudez de certas "práticas"ditas socialistas, é que não pode ser

    Tentativas de censura, tendo como pretexto a defesa da honra de Costa, revelam que ainda há muita gente que tenta condicioanr o debate com chantagens tontas. E que fecha os olhos aos factos


    Mas há uma coisa pior. Há um insulto a JRA inútil e rasca

    A resposta merecida seria: qual o tacho que vieira recebeu para assim ofender os demais?
    Desculpem o exagero mais isto é também um insulto a vieira. Que não se subscreve porque há uma diferença de atitudes e de métodos

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  6. Caro Vieira,
    Sim, no mundo do trabalho, as coisas melhoraram, mas não melhoraram assim tanto como pode achar. Faça um levantamento das formas de contrato que existem pelo país, das vidas que as pessoas têm, e depois conversamos.

    Deixe-me dizer-lhe que apenas posso entender a sua ideia de que quero o regresso da PAF como própria de uma pessoa muito distraída e a de que ando em busco de um tacho do Governo apenas como um sinal de que consegui criar alguma baralhação na sua cabeça e que essa ofensa é mesmo própria de quem não quer discutir o assunto em debate.

    Para lá das questões técnicas, a única conclusão deixada no post foi a de que não é próprio de um socialista sério usar má informação estatística para glorificar o que pode não existir. E é errado para um político preferir números "bonitos", ainda que nada tenham a ver com a realidade, em vez de encarar os problemas de frente, tratá-los como qualquer pessoas que quer ajudar a resolver a vida de todos e fazer uma campanha eleitoral séria e profunda. E que não devia confundir as pessoas com algo de que não se pode ter a certeza que existe, em nome de um curto prazo que pode tão rapidamente fugir-lhe.

    Porque, se gosta da Geringonça, essa é a única forma dela sobreviver.

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    1. Esta frase última de JRA é muito boa

      Acho que até o amigo Vieira concorda com ela

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  7. Repare-se no nível de alguns dos paf-minions que "trabalham" na secção comentários do blog.
    O neoliberalismo apostou nas redes sociais e na internet para vender MENTIRAS, DISTORÇÕES e INVENÇÕES.
    Alguém paga a esta gente para fazer este "trabalho" nojento.
    "Trabalho" nojento que já valeu a eleição de um ogre nos eua e outro no brasil.
    Como disse Noam Chomsky numa entrevista recente, este é o "tipo de coisas que não dá para responder".
    É demasiado vil e não tem qualquer utilidade para a discussão em causa.
    Talvez não fosse má ideia censurar alguns dos comentários.
    Eu sei que "censurar" é um verbo pesado e pouco recomendável, mas lembrem-se: os média corporativos fazem-no constantemente, até pela omissão.
    Reparem como se desmultiplicam em notícias sobre a Venezuela, mas evitam falar da Argentina (os exemplos não têm fim).

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  8. Nos quatro anos desta legislatura, foram criados 350 mil novos postos de trabalho (...) 89% dos novos empregos por conta de outrem são contratos sem termo." (Primeiro-Ministro, Assembleia da República, debate sobre o "Estado da Nação" -10/7/2019).
    Sendo assim, pressupondo que até aqui, nestes 4 anos, tem, de facto, vindo a ser seguida uma política e uma prática de "combate à precariedade" quase perfeita (para ser perfeita só faltaram 11%...), é pertinente a pergunta (fundamentadamente) formulada no final deste texto pelo jornalista João Ramos de Almeida.
    Isto, no sentido - adaptação minha, penso que lógica - de perguntar por que é que, então, com uma política e uma prática tão (quase) perfeita de "combate à precariedade" durante estes quatro anos, foi agora aprovada uma legislação laboral (décima quinta alteração ao Código do Trabalho - Lei 93/2019, de 4 deSetembro) apodada como sendo a que desde 1976 mais "combate a precariedade" (ainda segundo o PM)?
    A verdade é que, com esta legislação, para além de não se reverterem as disposições do "Código de Trabalho da troika" (alterações á legislação laboral de 2011 a 2014) que diminuiram ou eliminaram direitos aos trabalhadores (remuneração e descanso compensatório do trabalho suplementar, diminuição da duração das férias, redução das indemnizações por despedimento, critérios de selecção para despedimento em situações de extinção do posto de trabalho, dificultação da contratação colectiva de trabalho), no que respeita a "combate à precariedade", (quase) nada muda.
    Mais, se é que esta legislação, nalguns aspectos (aumento para o dobro do período experimental na admissão de trabalhadores em situação de à procura do "primeiro emprego" ou de "desempregados de longa duração", aumento da duração e âmbito de actividades para recurso a contratos de trabalho de "muito curta duração", criação do banco de horas grupal e manutenção por mais um ano do banco de horas individual, legitimação e não proibição de contratos de trabalho precário por regra com a criação de uma "taxa de precariedade"), em vez de "combater" a precariedade, não a fomenta (ou, pelo menos, a alimenta) ainda mais.
    No mínimo, quanto a "combate á precariedade", parafraseando Lampedusa em "O Leopardo", com esta legislação laboral, algo muda para ficar (quase) tudo na mesma.

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    1. Muito bom e muito elucidativo, este comentário de João Oliveira.

      Convocando até “O Leopardo” de Lampedusa. Magistralmente filmado por Visconti

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  9. Muito bom! Uma sugestão: https://ec.europa.eu/eurostat/databrowser/view/tps00073/default/table?lang=en

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  10. Curioso.

    Um fundamentalista neoliberal do Observador,daqueles ao estilo do joão miguel tavares, também usou esta página do eurostat mas para propaganda sórdida da sua sórdida ideologia



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  11. Era bom que se dispusessem de dados mais completos do FCT mas os dados das Declarações de Remunerações à Segurança Social seriam ainda melhores, visto que cobrem todo o universo, incluindo os contratos de muito curta duração e parte da Administração Pública (a que desconta para a SS). Esses dados têm alimentado os relatórios do salário mínimo mas também permitem ver a evolução por tipo de contrato. Mas, por alguma razão que até podemos adivinhar, não são divulgados.

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  12. Os dados à Segurança Social?
    Como Passos fez?
    Não fez descontos para a Segurança Social entre 1999 e 2004 apenas porque "não tinha consciência que essa obrigação era devida durante esse período"?
    Aquele que foi primeiro-ministro, fundamentalista do mercado, forte com os fracos e fraco com os fortes? Tão fraco que andou a polir o brilho às botinhas de Frau Merkel?

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