Parte dessa movimentação pareceu, no início, erguer bandeiras de direita - contra uma subida dos impostos - o que já recebeu uma oportunística resposta por parte do ministro da Economia e Finanças de que era preciso reduzir os impostos e... a despesa pública. Mas o mal-estar geral parece tornar-se transversal, com críticas à esquerda ao governo Macron, pela redução dos impostos aos mais ricos e aumento dos impostos aos mais pobres. Após algumas hesitações, o movimento conta já com a participação política da população de esquerda.
Essas condições materiais para a revolta explodiram em França. Mas poderão eclodir em qualquer país. Porque a mãe de todos os populismos - como a direita gosta de lhe chamar - está na perpetuação de injustiças sociais.
Veja –se o que se passa em Portugal em termos fiscais, nomeadamente no IRS.
O IRS era suposto ser o imposto único sobre o rendimento recebido individualmente. Antes de 1989, o imposto que incidia sobre as diversas formas de rendimento tinha taxas diferenciadas. A reforma fiscal levada a cabo em 1989, era Cavaco Silva primeiro-ministro, pretendeu criar um imposto único, mas ao arrepio da comissão de reforma fiscal, o governo manteve a diferenciação de taxas e regimes, em nome da competitividade fiscal entre países. Os rendimentos de capitais não estão sujeitos à progressividade constitucional da tributação sobre o rendimento. O englobamento de todos os rendimentos não é obrigatório. O ónus da prova da veracidade das declarações fiscais apresentadas pelos contribuintes ficou do lado do Fisco.
Resultado: apenas os assalariados e pensionistas – cujos rendimentos não podiam deixar de ser declarados – declararam na totalidade os seus rendimentos. Os outros parecem mal contribuir para a sociedade.
De 2001 a 2016, os agregados familiares cujos principais rendimentos eram salariais e de pensões representaram sempre cerca de três quartos do universo de contribuintes. Quanto ao rendimento bruto declarado, detinham em 2001 cerca de 86% de rendimento bruto declarado. Mas em 2016 era já 92%!
As outras categorias de rendimento pesavam em 2016 apenas... 8% do total declarado!
Os agregados que viviam sobretudo de rendimentos empresariais e profissionais ou em regime de transparência fiscal (por exemplo, escritórios de advogados) representavam, em 2001, cerca de 10% dos agregados e pouco cresceram até 2016. Mas o peso do seu rendimento reduziu-se de 10% para 5%, o que é inverosímil.
Quanto aos detentores de rendimentos de capitais e mais valias, pouco variaram entre 2001 e 2016: situaram-se ao redor dos 5 a 6%. Mas o seu peso no rendimento bruto declarado nunca atingiu o 1% nos 16 anos analisados!
Já os rendimentos prediais chegavam, de 2001 a 2016, a cerca de 8% do universo de contribuintes. E o seu peso no rendimento global passou de 3 para 2%!
Fonte: Números calculados com base nos dados da Autoridade Tributária |
Ou os rendimentos individuais passaram para a esfera empresarial; ou os assalariados e pensionistas passaram a ser os maiores beneficiários de rendimento de capitais (em contas de poupança bancária); ou verifica-se uma enorme – enormíssima, gigantesca! – evasão fiscal. Um buraco, um passadouro monumental que se torna visível naqueles regimes extraordinários de regularização tributária (RERT) de que beneficiaram por exemplo Ricardo Espírito Santo e tantos outros, que os amnistiam, limpam, branqueiam e que proíbem o Estado de os perseguir, tudo com o aval do Parlamento quando PS e PSD/CDS tinham maioria. Mais uma causa para populismos futuros.
De qualquer forma, o IRS – tal como está - não reflecte neste momento nada do que era suposto representar. Qualquer medida relativamente ao IRS atingirá apenas quem é obrigado a declarar rendimentos, tal como acontecia há duas décadas atrás. As outras categorias de rendimento mal pagam para o Orçamento de Estado e, um dia, alguém terá o desplante de os isentar de imposto porque não é eficaz tributá-los...
E tudo isso obriga a uma vasta reforma fiscal. Era isto que um governo de esquerda faria, caso quisesse mudar alguma coisa em Portugal; caso não queira passar, daqui a pouco tempo, por aquilo que está a viver-se em França.
Nessa altura, os arautos da direita falarão de populismos. Mas os populismos são gerados por desigualdades agravadas que protegem durante décadas uma minoria. A periferização da sociedade e das cidades representa uma continuada expulsão de um centro, uma ghetização social e urbana, como se escreve no The Guardian. "A classe trabalhadora e classe média baixa estão de novo visíveis e, com eles, os locais onde eles vivem". O risco é que, como nos Estados Unidos ou em Italia, possam ser cavalgadas pela extrema-direita, evitando na prática outro tipo de movimentos sociais e, no final, para que alguma coisa mude, para que tudo fique na mesma.
Por que será que a direita portuguesa não fala do que se passa em França?
Flat Tax ?.
ResponderEliminarRendimentos anuais por agregado familiar? Mas esses dados são credíveis?
ResponderEliminarComo o autor do post reconhece, isso seria um absurdo!
Não haverá nenhum lapso?
As 'injustiças sociais' podem numa certa área medir-se assim:
ResponderEliminar1) Fulano e Beltrano ganham num dado ano o mesmo e pagam impostos iguais, e acumularam a mesma poupança.
2)No ano seguinte Fulano remodelou a casa e deu uns passeios; Beltrano aplicou o dinheiro em aplicações financeiras.
3) Nesse segundo ano os rendimentos de Beltrano excederam os de Fulano pelo montante do rendimento das aplicações financeiras; mas como tinha uma taxa liberatória para os rendimentos das aplicações financeiras pagaram a mesma taxa de IRS.
Eis um caso evidente de injustiça social!!!
O que gastou pagou IVA de 23%, o aplicou 5% ou nem isso... e ainda vai passear num país sem iva ...
EliminarCaro anónimo,
ResponderEliminarOs dados são da Autoridade Tributária. Nenhuma explicação adicional foi dada em relação à forma como os dados são apurados. Apenas é referido diversas vezes o seguinte: "Note-se que os rendimentos de capitais, correspondentes à categoria E, estão sujeitos à retenção na fonte à taxa liberatória, não se encontrando sujeitos a englobamento pelo que as estatísticas relativas a esta categoria não correspondem ao valor global de rendimento e de imposto liquidado relativamente a esta categoria". Por outras palavras, intrpreto eu, os rendimentos de capitais poderão acumular-se com outros rendimentos.
"O que se passa em França assemelha-se cada vez mais a um movimento de revolta popular que tem por base uma acumulação de desigualdades sociais, agravadas pelas consequências de uma política orçamental associada à manutenção do euro."
ResponderEliminarNão, não tem!
O problema, que a esquerda faz vista ceguinha, está relacionado com o facto de a França ser o país da Europa com a mais alta carga fiscal.
E quando o saque do estado, que a esquerda sempre prometeu que se aplicava "apenas aos ricos e demais endinheirados para cima", começa a atingir a classe média, "o povo sai à rua"
A verdade é como o azeite
https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php?title=File:Total_tax_revenue_by_Member_States_and_EFTA_countries,_2016_and_2017,_%25_of_GDP.png
Mas como é que esta gente não vê o óbvio: a França tem a maior carga fiscal da Europa, com 48,4% do PIB arrecadados em taxas e impostos. Praticamente metade do que o país produz é engolido pelo estado.
ResponderEliminarhttp://appsso.eurostat.ec.europa.eu/nui/submitViewTableAction.do
Como é que esta gente não vê o óbvio!?
Caros anónimos,
ResponderEliminarA carga fiscal, em teoria, não é usada em desperdício público. Os recursos públicos arrecadados pagam um conjunto de serviços públicos que vão desde o mais simples contínuo de escola até aos gastos em defesa, passando pela Saúde, a Segurança Social, etc., etc..
Portanto, caros anónimos, sejamos um pouco mais honestos. Tudo depende como esses recursos são gastos e não no seu nível. Só o conceito "carga fiscal" tem efectivamnte uma "carga" ideológica a que convinha estar atento...
(Mais) algumas notas sobre a "justiça" do IRS:
ResponderEliminar- Os Pafistas num unico ano:2013 aumentaram o valor total da receita de IRS em 30% (repito 30%) - este é que foi verdadeiramente o publicitado "enorme aumento de impostos" (e não o IRC: imposto sobre o rendimento das empresas);
- 20% dos contribuintes pagam 80% da receita de IRS - foram estes "patos" (que são uma minoria dos contribuintes) que sobretudo suportaram (e continuam a suportar) os referidos 30% de aumento da receita de IRS dos Pafistas;
- Aprox. 50% dos contribuintes não paga IRS, ou paga até 100€ anuais;
- Uma parte da receita de IRS de capitais resulta da taxa de 28% aplicadas aos juros de depósitos bancários, os quais actualmente têm taxas reais negativas (inferiores à inflação);
- Os rendimentos empresariais não são apenas rendimentos dos advogados e outros profissionais liberais - são sobretudo rendimentos dos pequenos negócios exercidos a titulo individual.
"Tudo depende como esses recursos são gastos"
ResponderEliminarSobre a carga fiscal. E a prova disso encontrava-se no norte da Europa. Em que até há bem pouco tempo era talvez a única parte do mundo em que sentiam verdadeiramente orgulho nos serviços públicos pagos com o dinheiro de todos. Com os escândalos financeiros a história é outra como é óbvio. Ainda assim e já depois da "limpeza" não se ouve os islandeses queixarem-se da maior carga fiscal da Europa.
"... Tudo depende como esses recursos são gastos e não no seu nível...". Este é que é realmente o problema.
ResponderEliminarUm homem razoavelmente rico, empresário de sucesso nos EUA, dizia: "Importo-me de ser altamente tributado. Mas importo-me muito mais por saber que esse dinheiro vai ser muito mal gasto (pelo Estado)".
O Estado -por muito que os impostos sofram sempre sucessivamente aumentos- arranjará sempre forma de gastar essas verbas e mais, continuar a individar-se.
Na verdade a dívida norte-americana ....
A propósito de coletes amarelos recomendo a leitura de:
ResponderEliminarhttps://mondaynote.com/
How Facebook is Fueling The French Populist Rage
Penso que o conceito do populismo não é da direita mas sim do mainstream.
ResponderEliminar"A carga fiscal, em teoria, não é usada em desperdício público"
ResponderEliminarA) João Ramos de Almeida, uma pergunta sincera: então no seu entender, qual o limite para a carga fiscal? 70%, 80%, 100%? Não consegue mesmo teorizar, do ponto de vista social e comportamental, que uma sociedade que assolada com impostos, desmotiva os mais produtivos? Obviamente que aqui ninguém defende o anarco-capitalismo, ou seja, 0% para o estado.
B) Acredita mesmo que por princípio a carga fiscal não é usada em desperdício público? Pelo contrário, e Milton Friedman explicava muito bem porquê: https://www.youtube.com/watch?v=5RDMdc5r5z8
Milton Friedman. Esse grande mago do mercado que regula tudo. Vê-se.
ResponderEliminarO "limite" para a carga fiscal depende de tantas variáveis - como o rendimento que se aufere e/ou que serviços públicos pretendemos, só para citar dois exemplos - que só a pergunta per si já denota a simplicidade do pensamento económico.
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