quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Entre autistas e enraivecidos

Sondagem feita à boca das urnas, com base em 24.537 votantes em 350 localidades nos Estados Unidos, incluindo  4.398 entrevistas telefónicas publicada pelo NYTimes (azul = votantes de Clinton; vermelho = votante de Trump)

Quando se olha para o perfil dos votantes, publicado pelo NY Times, percebe-se que muita gente andou a dormir durante demasiado tempo.

O Slam! da porta atirada por Trump partiu o nariz de muitas pessoas, sobretudo daquelas que andam num mundo fechado, que conversam apenas com o mesmo tipo de pessoas (geralmente em convivência com os poderosos), que não querem viver a vida do comum dos mortais (muito menos alterá-la) e, que, por isso, reproduzem pensamentos a leste do pesadelo do dia-a-dia dos cidadãos.

A figura enorme de Trump com o seu chocante penteado, já copiado na Europa por outros candidatos ditos extremistas, é a imagem clara do fosso escandaloso entre o autismo de certos grupos dominantes e o grito surdo dos deserdados de um mundo cão que todos os dias cospe na sua cara. O fosso pode ser preenchido quando acabar a recusa de certas pessoas e círculos em falar de exploração, de vidas precárias sem sonhos, de vidas desgraçadas de pobreza e desemprego, de repartição desigual de rendimento, de roubo, expoliação e extorsão diária. Quando se passar a defender sociedades mais equilibradas, mais justas, mais felizes.

Como foi possível que não se tivesse ouvido a voz das pessoas zangadas com o sistema viciado (centralizado em meia dúzia de pessoas que dominam agendas políticas, repartição de dinheiros, partidos, listas de candidatos, até programas de televisão), a voz das pessoas que acham que a sua vida vai piorar, que acham que o comércio roubou empregos, que acham que os imigrantes e os terroristas fazem parte do mesmo mundo longínquo, alienígena, que nada tem a ver com o nosso?

Candidatos escolhidos sempre do mesmo saco de sempre, jornalistas que preferiram militar contra Trump sem perceber que ele era bem mais do que o palhaço que eles apenas viam e não queriam ver, responsáveis de sondagens que perderam a sensibilidade, a honestidade e ao rigor porque se venderam a quem lhes compra sondagens.

Mesmo em Portugal, haja quem faça previsões que nunca se verificam...

Se alguma coisa Trump trouxe, foi um enorme e urgente desafio – sobretudo à esquerda, mas também a uma certa direita honesta – a quem acha que pode haver um mundo diferente. E esse desafio é construí-lo, começando por transformá-lo numa visão, em medidas e passos concretos, numa mensagem clara, passada com tenacidade e persistência, que dê outra voz aos enraivecidos.

Senão, essa voz arranjará o seu personagem e não vamos gostar do que se seguirá.

7 comentários:

  1. Exactamente,mas quem quer realmente ouvir e ver a realidade sem vendas ideológicas?Olhem para as ruas das cidades americanas hoje mesmo(e o Homem ainda não tomou posse)contrariando as palavras do actual presidente Obama(se este tipo de manifs fosse ao contrário nas anteriores eleições o que diriam?)que disse que devia haver uma mudança pacifica e respeitadora tal como houve na sua posse.

    ResponderEliminar
  2. João Almeida, os votantes de Trump podem sentir isso que diz o NYT, mas de acordo com o Guardian e baseado nos dados da própria eleição, eles não são provenientes, felizmente, das camadas mais desfavorecidas, como já eu assinalei em resposta à posta do João Rodrigues: https://www.theguardian.com/us-news/2016/nov/09/white-voters-victory-donald-trump-exit-polls. Veja igualmente esta notícia do WP, de Agosto: https://www.washingtonpost.com/news/wonk/wp/2016/08/12/a-massive-new-study-debunks-a-widespread-theory-for-donald-trumps-success/?wpisrc=nl_most-draw8&wpmm=1. E Trump até teve menos votos que Romney em 2012, foi aparentemente Hillary que não conseguiu mobilizar o eleitorado proveniente das minorias que deu a Obama as suas vitórias... (http://uselectionatlas.org/RESULTS/). Não me parece que a Esquerda tenha muito para oferecer às pessoas que votaram em Trump, pelo menos se quiser continuar a ser Esquerda. A tentativa de resumir os resultados desta eleição sobretudo a razões económicas não é séria. Há claramente um problema de ordem cultural, mas francamente eu não me sinto nada tentado a enveredar por um nacionalismo mesmo de carácter supostamente progressista, como tem sido defendido neste blog, até porque só me lembro de dois exemplos em que ele não redundou em despotismo, a saber na África do Sul, e isso graças a Mandela e na Irlanda do Norte, e depois de uma longa e profundamente sangrenta guerra entre bandos rivais... Por isso, esse projeto de um mundo diferente de que fala, e que é bem urgente, até dada a catástrofe ambiental iminente, deve claro lembrar-se dos erros do Passado, agora não pode definitivamente basear-se neles...

    ResponderEliminar
  3. @Ricardo,
    Que faria você se num belo dia descobrisse que os «deploráveis» afinal são a maioria? Eu também ficaria anti-democraticamente descontente.

    ResponderEliminar
  4. Onde andam as vozes do 'comércio justo'?
    Onde o repúdio das exploração Norte -> Sul, das obscenidades das razões de troca?
    E os terceiro-mundistas, essas almas com rara sensibilidade social, onde param?
    Onde os desafios da inovação tecnológica para os países desenvolvidos?

    Estamos em tempo de reversões e a geringonça tanto dá ser de esquerda como de direita, reverter é preciso.


    ResponderEliminar
  5. A sua resposta confirma a validade do meu comentário(essa ideia,baseada numa falsa e arrogante superioridade moral,de que a democracia eleitoral só é boa se o povo vota de acordo com certas ideias,caso contrário são "deploráveis",expressão usada pela sra Clinton pouco tempo antes da eleição,e "racistas" e por aí fora.Os que insistem neste discurso nunca dizem como é que os problemas dos americanos(que passaram 8 anos sem fazer desacatos nas ruas mesmo tendo razões de queixa)nos estados mais interiores e sem emprego e sem futuro,seriam resolvidos com um governo Clinton que é pró-globalista e instrumento do grande capital apátrida que empobrece os povos e tira soberania aos Estados ocidentais).

    ResponderEliminar
  6. "Reverter é preciso" dirá aí um tipo que passou toda a sua vida a tentar reverter Abril.

    E que no tempo da governança passou o tempo, invocando tudo e mais um par de botas, a tentar cumprir em passo de ganso tal objectivo

    ...e se possível ir ainda mais além

    ResponderEliminar
  7. @Ricardo,
    Em abstracto você tem razão. Na prática, qualquer um que apoie quem defenda posições racistas e xenófobas é racista e xenófobo, independentemente dos problemas pessoais que tenha.
    Liberdade, Igualdade e Fraternidade, sim e acima de tudo, mas a responsabilidade individual vem logo a seguir.

    ResponderEliminar