terça-feira, 5 de maio de 2015

Eficácia e alçapões num documento equívoco

O documento "Uma década para Portugal"  proposto pelos economistas chamados pelo PS, é um exercício de equilíbrio. E nem tudo se percebe onde se quer chegar.

Pedro Nuno Santos (PNS) deu uma entrevista onde é patente alguns dos compromissos e alguns dos desacordos. Mas por isso, é importante analisar cada frase, cada objectivo e cada medida. Antes que se torne programa para governar.  Pode ser que tudo se encaminhe para algo razoável. Digo eu que sou optimista quando toca a unidade.

Retomemos o documento para não perder de vista os objectivos e a eficácia de cada medida. Posso parecer repetitivo, mas é bom vê-las no seu conjunto.

Pag. 29: Visa-se dar segurança no emprego, que todos tenham acesso ao trabalho e que todos os despedidos tenham protecção. Vem na Constituição. Para tanto, os objectivos são i) resolver o excesso de contratos a prazo, a baixa protecção, a baixa taxa de conversão de contratos a prazo em permanentes; ii) a simplificação contratual e redução de litigância na cessação da relação laboral; iii) protecção do rendimento do trabalhador; iv) induzir estabilidade nas relações laborais.


Medidas:

i) Limite à utilização do contrato a prazo
Concordo. Mas pode ainda ter o efeito perverso de uma alta rotatividade de trabalhadores. PNS refere precisamente essa possibilidade, aumentando-se o recurso aos Falsos Recibos Verdes (FRV). Não é isso que se passa com os estagiários? Todos se substituem com outros estagiários? É necessário uma maior clarificação e mais fiscalização.

ii) Novo “regime conciliatório de cessação do contrato de trabalho
O documento refere "um procedimento conciliatório, em condições equiparadas às do despedimento coletivo, englobando todos os motivos de razão económica (de mercado, estruturais e tecnológicas) que tenham posto em causa a sobrevivência do emprego". PNS diz: "Não há nenhuma alteração do regime de proteção jurídica existente, nem nenhuma revisão do conceito de justa causa. Nem tão pouco há qualquer novidade no que diz respeito à possibilidade de invocar-se todos os motivos de razão económica (de mercado, estruturais e tecnológicas), em condições equiparadas às do despedimento coletivo." É verdade. Mas fica a questão da razão se mencionar no documento esta questão se não há novidade e ainda por cima apenas para os novos contratos, ou seja, de eficácia reduzida no curto prazo. O que poderá estar na calha? O receio é o de que o de que se esteja a pretender, a prazo, flexibilizar todo o tipo de despedimento, mesmo os que não estejam relacionados a motivos económicos. E tanto assim parece ser que 1) se esvazia o conteúdo dos contratos a prazo; 2) se concede como contrapartida um encarecimento das indemnizações (minimal). A medida apenas faz sentido se o objectivo real for o de, a prazo, flexibilizar o despedimento dos que estão no mercado, para contratar então os jovens, acabando com a ideia cara a Mário Centeno de haver uma segmentação do mercado - os empregos dos "velhos" estariam protegifos, o dos jovens, desprotegidos. No fundo, a medida pode ser um “pé na porta”. Daqui a uns anos, generaliza-se a todos.

iii) Responsabilização financeira das empresas que mais despedem
A ideia parece bem intencionada, mas arrisca-se a não ter eficácia. Pode ser complicada, vai ser torpeada pelas confederações patronais, tenderá a ser minimalizada. Além disso, a prazo: i) beneficiaria os sectores com piores práticas, já que a aplicação da medida depende da média do sector; ii) tenderia a agravar a TSU patronal à medida que os sectores adoptassem medidas mais adequadas de segurança no emprego, ao reduzir o desvio das boas práticas à média do sector. Ou será que essas empresas manmetriam a TSU reduzida? Por alguma razão, o documento não quantifica a medida.

iv) Complemento salarial anual
Acaba por ser uma protecção das más práticas, ao subsidiar os trabalhos mal remunerados. O ideal seria aumentar o valor entre o ordenado oferecido pelo mercado e os subsídios de apoio ao rendimento. O actual Governo tem optado por diminuir os apoios para manter essa distância, mas pode aumentar-se a remuneração e o valor do trabalho. Neste caso, o programa parece voltar a apostar na segunda parte da equação, mas de forma perversa. Em vez de se aumentar o SMN, a medida visa complementar baixos salários, perpetuando uma relação insana e doentia entre o Estado e as empresas com más práticas, ao contrário do objectivo geral das medidas.

v) Política social mais equitativa
As dúvidas são: 1) qual a razão de ser de a reforma da Segurança Social estar neste capítulo do emprego? Sendo certo que há uma relação entre o emprego e o financiamento da Segurança Social, parece haver uma noção instrumental da Segurança Social, como forma de preencher os vazios do mercado laboral. Parece estabelecer-se canais comunicantes entre os fundos do mercado laboral e da Segurança Social, o que não parece certo; 2) "Mais equitativa" parece ser mais curta. As ideias expressas parecem conduzir para uma redução dos apoios e a redução da esfera pública – consolidação dos sistemas de pensões, reavaliação da condição de recursos, redefinição de direitos à luz dos impactos da crise nomeadamente demográfica, reavaliação do factor de sustentabilidade e- veja-se! – complementaridade com instrumentos individuais de poupança.

vi) Reposição de mínimos sociais
Como forma de reduzir a deterioração dos rendimentos familiares irá reforçar-se a protecção social das crianças e jovens, actualizar-se o abono de família, repor condições de acesso ao RSI, reposição do valor do Complemento Solidário de Idosos. Tudo bem. Mas o que está a fazer isto neste capítulo? Mais rendimento? Mais consumo? Mais condições para criar mercado e investimento?

vii) Diversificação das fontes de financiamento da Segurança Social
Mais outra questão que não se percebe. Aqui já é outro o objectivo – estimular a oferta e a capacidade das empresas de contratação dirigida a emprego mais estável. Voltamos à velha e equívoca ideia de que a descida da TSU beneficia a competitividade das empresas, agora com outra fonte de financiamento. Introduz-se a redução da TSU das empresas complementada com verbas da suspensão da reforma do IRC. Ou seja, os trabalhadores a financiar a competitividade das empresas trabalho intensivas e as empresas mais rentáveis a financiar a Segurança Social. Mas não se explica o que acontece se a receita de IRC cair nos próximos anos, como é expectável ao ter-se alargado fortemente o período de reporte de prejuízos que, aliás, o documento mantém. Talvez fosse de fazer uma reforma do IRC, já que a entre os lucros e a matéria colectável vai um hiato de 40 mil milhões de euros

viii) Falsos recibos-verdes (FRV) e trabalho temporário
Sendo duas das mais usadas formas de rotação de trabalho, parece estranho que nada se diga no documento sobre isso. Talvez se pretenda “atacar” a montante – criar condições para os contratos permanentes. Mas é confiar excessivamente na eficácia do que se propõe. PNS concorda num agravamento da TSU das empresas para os FRV e combate com o reforço da fiscalização. Nesse caso, convinha harmonizar a TSU patronal já praticada nos outros casos ou mesmo agravá-la para lá disso, como forma desincentivadora do uso desse tipo de contratos. E já agora convinha que o PS aconselhasse o seu camarada Vitalino Canas a deixar de ser o provedor das empresas de trabalho temporário.

Política fiscal para promoção do investimento e crescimento


Num capítulo totalmente à parte do emprego, surgem as políticas fiscais cuja principal prioridade (…) será a de contribuir para o relançamento da economia e para a consolidação orçamental”. Visa-se i) “criar um ambiente estável e de previsibilidade fiscal” e ii) “iniciar uma trajetória de desagravamento fiscal, incidindo nos impostos que mais penalizam a criação de emprego e o investimento e que contribua para o relançamento da economia”.

i) Eliminação gradual da sobretaxa de IRS Tudo bem. Mas se o objectivo é aumentar a progressividade do IRS, então a reversão da redução de escalões de IRS tem maior impacto; mas claro a sobretaxa é mais barata...

ii) Apoio ao rendimento e redução de restrições de liquidez das famílias Se o objectivo é relançar a economia, mais eficaz seria desmantelar o “enorme aumento de impostos” de 2013, em vez da descida gradual da TSU dos trabalhadores. o IRS tem uma limitação, que PNS referiu: "Mais de metade dos agregados familiares portugueses não paga IRS, por auferir rendimentos reduzidos. Não beneficiariam, portanto, de qualquer redução deste imposto." É verdade, mas não paga porque tem rendimentos muito baixos. Se o objectivo da Agenda é dar – já - rendimento aos trabalhadores, incluindo os de mais baixo rendimento, há outras e múltiplas formas que não a de baixar a TSU: 1) Aumentar o SMN, por exemplo. Isso poderia abranger pelo menos 15% dos trabalhadores que recebem o SMN. E talvez ainda alguns outros que, por arrasto de tabelas, possam vir a beneficiar desse aumento. E poder-se-ia ir mais além de um aumento de 1% do rendimento bruto ao ano; 2) aumentar os subsídios (até por via fiscal) aos contribuintes que não beneficiassem da alteração dos escalões de IRS; 3) contratação pública; 4) contratação colectiva, induzindo aumentos salariais de forma mais alargada. A baixa da TSU pode ser um meio elegante, rápido e eficaz de atingir esse fim, mas tem consequências graves:
1) descapitaliza a Segurança Social;
2) desarticula a noção de “seguro” e;
3) permite futuras mexidas sem qualquer ligação à Segurança Social (tal como queria fazer o FMI e Passos Coelho).

O problema é a forma como se paga a medida de dar rendimento aos trabalhadores. A forma “elegante” da TSU é dar dinheiros aos trabalhadores com dinheiros dos trabalhadores dedicados à protecção social. As outras seriam com dinheiro ou das empresas ou do Estado. E por isso, aplaudo que PNS não seja favorável à mexida da TSU dos empregadores, porque é um total descaramento e uma transferência de rendimento, feita de forma ínvia. E por tudo isto também acho que PNS devia ser a contra a mexida da TSU dos trabalhadores.

Tudo somado, parece que na Agenda há objectivos válidos, mas que nem sempre têm consonância com as medidas propostas. E há muitas dúvidas sobre o que realmente está na cabeça dos autores do documento. E sobretudo dos dirigentes do PS. 

Quanto à questão europeia, concordo com PNS. "As razões são sobretudo fruto de divergências políticas profundas sobre o processo de construção europeia". Mas, ao mesmo tempo, há questões de diagnóstico que o PS terá de encarar de frente. Por que subiu tanto o desemprego desde 2000? As explicações dadas pelos governos PS desde essa altura foram muito pobres.

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