Enquanto se desenrolam as últimas cenas do drama grego em torno de uma decisão que é dilemática para muitos cidadãos – correr o risco de ser livres ou submeter-se ao Diktat germânico –, Portugal parece narcotizado pela propaganda dos media. O governo e o seu Presidente exaltam o crescimento medíocre do ano passado como prova de que nós não somos a Grécia e a austeridade foi aqui bem sucedida. A verdade é
que o nosso Tribunal Constitucional teve um papel importantíssimo: travou a espiral recessiva. Anulando cortes na despesa pública em salários e pensões, obrigou o governo a repor algum do rendimento disponível que havia cortado e aliviou a ansiedade em muitas famílias. O consumo pôde respirar, também ajudado pela baixa do preço dos combustíveis e pelas taxas de juro excepcionalmente baixas. A espiral recessiva existiu mesmo e ainda bem que foi travada, para desgosto dos peritos que insistem na “consolidação” orçamental por fazer.
Tudo isto é bem conhecido dos alunos de macroeconomia introdutória, mas é depois soterrado por outros modelos que, apesar de solidamente contraditados pela investigação empírica, continuam a pairar no debate público como se nada fosse. Como bem lembrou Michal Kalecki
(“Political aspects of full employment”), “a ignorância obstinada é normalmente uma manifestação de razões políticas subjacentes”. Porém, a sobrevivência de teorias económicas erradas é um problema bem mais grave porque, além de instrumento de propaganda dos poderes instalados, acabou por enquadrar e infiltrar o pensamento de alguma esquerda, sinal evidente da longa hegemonia do pensamento neoliberal nos meios universitários, nos media e no debate político.
De facto, foi espantoso ver as oposições ao actual governo criticarem a incompetência do anterior ministro das Finanças por falhar as metas do défice que se tinha proposto alcançar, como se a economia não afundasse mais com um défice inferior. Desde quando um país em
recessão gravíssima, de facto numa quase-depressão, ganha alguma coisa com défices reduzidos? Isto só se explica porque a oposição, sob a forma de guerrilha política, não tem um discurso compatível com o que faria no governo se tivesse maioria. Depois admirem-se da falta de credibilidade e da sensação de falta de alternativa que perpassa no eleitorado.
Um exemplo flagrante desta colonização intelectual do discurso das esquerdas é a sistemática omissão, pelo menos no discurso público, do objectivo do pleno emprego como meta da sua política económica. Aliás, na Grécia, a plataforma eleitoral do Syriza não previu a necessidade de défices públicos primários (excluídos os juros) para lançar um programa de emergência, em larga escala, destinado a criar empregos socialmente úteis. Seria um instrumento muito eficaz de reanimação da procura e recuperação da dignidade de milhares de cidadãos desempregados. Embora reduzindo a despesa com subsídios de desemprego, tal programa aumentaria bastante o
défice, dado que há muita gente desencorajada, fora do mercado de trabalho e sem direito a transferências sociais. O problema desta proposta é evidente: ao defendê-la, o Syriza punha frontalmente em causa o colete-de-forças imposto por uma UE que recusa a utilização do défice como instrumento de política orçamental.
Uma esquerda consequente não pode assumir a economia da oferta e dizer aos desempregados que esperem pelo crescimento do sector privado. Deve defender uma política orçamental que reduza, drástica e rapidamente, o desemprego. É por esta via que se defende eficazmente um Estado social que queremos mais robusto. O que implica assumir que uma política económica para o pleno emprego só é possível
com o país livre dos constrangimentos do ordoliberalismo, com moeda própria. Este discurso será cada vez mais popular à medida que o drama grego vai revelando a crueldade dos tratados da UE e dos seus guardiões, para quem até as despesas de emergência humanitária são dificilmente toleradas, quanto mais um programa de emergência para a criação de empregos, como foi feito na Argentina após 2002 (http://www.levyinstitute.org/pubs/wp_534.pdf).
(O meu artigo no jornal i)
António Costa e o PS terão que definir-se – ou alinham com este ataque social de uma minoria financeiramente dominante cuja ganancia é e será sempre insaciável ou está ao lado da esmagadora maioria da população. Alinhar com o PS espanhol ou afirmar que o “Governo grego está a ser desajeitado nas negociações com os parceiros europeus” não parecem ser posições de aproximação e defesa dos interesses da classe média. Os eleitores gregos e espanhóis já se afastaram dos socialistas. Em França, Hollande já perdeu o seu apoio eleitoral.
ResponderEliminarOu António Costa e o PS preferem manter um alinhamento, ainda que envergonhado, aos ideais neoliberais e às políticas de austeridade que deles emergem, colocando-se do lado da defesa dos interesses anti-sociais de uma minoria dominante económica e financeiramente ou, rompendo com esta postura, abraça de vez e sem hesitações a defesa dos interesses e dos direitos sociais da esmagadora maioria da população.
Manter esta indecisão, por mais tiradas avulsas contra a austeridade que se lancem, pouco ou nada favorecerá a pretensa maioria eleitoral que deseja.
"... tal programa aumentaria bastante o défice ... o problema desta proposta é que ... punha frontalmente em causa o colete-de-forças imposto ..."
ResponderEliminarEsse é que é o problema!? E o financiamento dos défices (primários!) não seria um problema para a Grécia?
Anónimo das 17:47
ResponderEliminarAinda não percebeu que um Estado com moeda própria não tem problemas de financiamento do seu orçamento? Que fique bem claro: no euro estamos nas mãos dos mercados financeiros; com moeda própria, o aforro dos cidadãos e o Banco de Portugal financiam qualquer défice. Salários da função pública e pensões estão garantidos. É assim. Para saber mais, leia L. Randall Wray (Modern Money Theory) ou consulte o blog do Prof. Bill Mitchell (http://bilbo.economicoutlook.net/blog/)
«inda não percebeu que um Estado com moeda própria não tem problemas de financiamento do seu orçamento?»
ResponderEliminarA inflação é o territótio dos vendedores de sonhos; dos incompetentes com resposta para tudo.
Num País mal gerido com moeda própria, nunca faltará dinheiro.
ResponderEliminarFaltará sim, comida...
cumps
Rui silva
Esclarecimento aos que vêem a hiperinflação ao virar da esquina:
ResponderEliminarO financiamento monetário dos défices só se torna fortemente inflacionista quando a economia se aproxima do pleno emprego ou foi atingida por grave perturbação da estrutura produtiva. A inundação de liquidez feita nos EUA, Japão e Reino Unido nos últimos anos (QE) não produziu hiperinflação nestes países, muito longe disso.
Um défice não é, em si mesmo, bom ou mau. Deve promover o emprego sem acelerar a inflação. Ninguém defende défices inflacionistas.
Percebe-se a fobia da política orçamental que afecta os neoliberais. Gostam do desemprego porque torna mais fácil a submissão do trabalho ao capital.
Amigo Bateira:
ResponderEliminarSerá que as taxas de inflacção (em PT) bem superiores a 20% no inicio da decada de 80 deveram-se ao pleno emprego?
....
Se a moeda própria é a solução para todos os males: porque será que em 1979 e 1983 tivemos de recorrer ao FMI e aplicar austeridade?
Unabomber
ResponderEliminarInflação pela oferta e desorientação da política económica na época, não só em Portugal.
79 inflação pela oferta e acondicionamento publico por causa dos "retornados". Para além de um problema político na gestão monetária do país.
ResponderEliminar83 rescaldo do choque petrolífero e influência da politica da FED americana que fez despoletar os problemas na America Latina e que nós apanhamos por tabela(menos mas apanhamos a saída de capitais desenfreada).
Já existem estudos que explicaram isto, até uma tese de doutoramento eu tive o prazer de ler acerca do tema.
Porque raio continua esta conversa da treta? Só porque só sabem de economia pelos jornais diários e comunicação social medíocre?
JL
Provável JL
ResponderEliminarJulgo q para essa estratégia ter sucesso e evitar a inflaçao pela procura teria de haver politicas industriais activas ou seja dirigismo económico por parte do estado, como por ex em França no pós guerra para estimular a produçao doméstica. A iniciativa privada complementaria essas politicas industriais.
ResponderEliminarJL, indique lá o título e autoria da dita tese.
ResponderEliminarAnónimo das 15h26
ResponderEliminarTenho mais do que fazer do que dar prazer a anónimos idiotas e energumenos
Fica aqui um link que referencia um paper dessa tese. O resto procure, puxe pelos seus parcos neuronios.
http://www.iseg.utl.pt/aphes30/docs/progdocs/ANA%20BELA%20NUNES.pdf
JL
Amigos Bateira e JL:
ResponderEliminarAfinal parece que não é só "o pleno emprego" e as "graves perturbações na produção" que podem provocar situações de elevada inflacção.
...
Parece-me que o amigo Bateira não percebe, ou finge não perceber, que os efeitos inflaccionistas das fortes desvalorizações monetárias em economias fortes e com elevado grau de autosuficiência (exemplo: EUA, Japão, Zona Euro) são muito diferentes das desvalorizações em economias fracas e fortemente dependentes do exterior (exemplo: Portugal).
....
Se com o Escudo não conseguimos evitar que os factores adversos indicados pelo JL nos levassem a recorrer ao FMI em 79 e 83, então será que a soberania monetária teria sido suficiente para ultrapassarmos a grande crise financeira internacional de 2007/2008 sem recorrer novamente ao FMI/troika?
"Ainda não percebeu que um Estado com moeda própria não tem problemas de financiamento do seu orçamento? "
ResponderEliminarAngola tem moeda própria? Então não percebo porque teve de reformular o seu orçamento face à quebra no preço do petróleo.
Angola, por ter moeda própria, pode não depender dos mercados financeiros. Mas não deixa de depender de outros mercados (neste caso o do petróleo e das importações de que necessita). Portugal, se sair do euro, não deixará de depender de mercados fora do seu controlo.
Com soberania monetária, sempre haveria maior margem de manobra. Independentemente do resto.
ResponderEliminarCaro JL a conversa é pública, os seus contributos interessantes, o insulto um desconsolo denotando pouca vontade ou capacidade de querer mais do que ter razão.
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