António Gama Mendes (1948-2014)
As ciências sociais portuguesas perderam no último dia de 2014 um dos seus mais fascinantes geógrafos. António Gama Mendes foi professor na FLUC e, até há pouco tempo, investigador do CES, centro que ajudou a criar. Dedicou a sua vida como professor e investigador a um vasto campo de matérias, que se cruzavam em permanência: da análise das correntes do pensamento geográfico à Geografia Urbana e Industrial, da epistemologia ao estudo do território como espaço vivido, das questões do desenvolvimento à Geografia Política ou do tempo livre. A ele se devem os mais relevantes trabalhos sobre urbanização difusa em Portugal, assentes na ideia de que, muito para lá de um processo físico, a urbanização é sobretudo um processo sócio-territorial, económico e cultural, um processo de metamorfose das relações sociais, das economias e dos modos de vida.
Fui aluno do António Gama, na disciplina de Geografia Económica e Social, no final da década de oitenta. Ele desarrumava com desconcertante naturalidade os muros que separam domínios científicos e ramificações da ciência geográfica (a começar, desde logo, pela clássica dicotomia entre o que é físico e humano em Geografia). Se os campos de conhecimento fossem lugares, o Gama tratava, em cada aula, de os ligar entre si, conduzindo-nos em viagens imprevisíveis mas que formavam, à chegada, um todo com sentido. Numa casa onde tantas vezes dominavam a memorização e a catalogação estéril, ou um descritivismo inócuo (por vezes associado ao deslumbramento cego pelas metodologias quantitativas), o Gama tratava de nos ensinar a enquadrar teorias e técnicas de análise nos seus referenciais epistemológicos, na sua genealogia científica, problematizando sempre. Porque ele sabia muito bem o que é essencial que as instituições de ensino superior façam: ensinar a pensar.
O António Gama era um homem profundamente culto e profundamente bom. Detentor de um apuradíssimo sentido de humor, revelava para com quem se cruzava uma afabilidade, humildade e generosidade infinitas. Numa universidade ainda tão atreita ao culto feudal das hierarquias e a um certo cerimonialismo empoeirado, o Gama cultivava, como poucos, a proximidade, o fácil acesso e uma disponibilidade permanente e indiscriminada. Fazendo com que nele facilmente se encontrasse, para além do mestre, um amigo leal.
(Assumimos neste blogue, e bem, a ideia de que as nossas vidas pessoais não têm interesse nenhum. Não posso contudo, porque perdi um amigo, um queridíssimo professor e amigo, a quem muito devo, deixar de dizer que, sem ele, a minha trajectória de vida, profissional, pessoal e científica, ao longo dos últimos vinte anos, tornar-se-ia ininteligível).
Louvado seja quem ensina por Bem.
ResponderEliminarSubscrevo, um excelente professor, e uma surpresa para todos os seus próximos, esta notícia...
ResponderEliminarDescanse em paz...nunca esquecerei o professor que me deu 3 cadeiras e em que não percebi uma única aula do que ele dizia...
ResponderEliminarBelo texto Nuno. São os pares que devolvem o reconhecimento merecido.
ResponderEliminarSoube há pouco da triste notícia. Também foi meu professor e digo, sem qualquer hesitação e sem menosprezo para os restantes, que era o mais culto de todo o Departamento de Geografia. Assino por baixo o texto do Nuno.
ResponderEliminarQ
ResponderEliminaruem leva-se disposição para ouvir, certamente que vinha mais rico em conhecimentos, ele tinha prazer em falar para quem o queria ouvir, poucas foram as vezes que frequentei as três cadeiras, por ser trabalhadora e mãe, mas nunca se recusou a me orientar, e na rua( para quem parecia um pouco alíenado nada lhe escapava ) tinha sempre um cumprimento acompanhado de um leve e suave sorriso.
Que tristeza vai em mim,por agora saber do falecimento do Professor Gama Mendes.
ResponderEliminarSempre tinha uma palavra amiga para comigo. Foi uma referência no ensino da Geografia na Universidade de Coimbra, um Professor com um saber e um respeito no trato que dava aos alunos incrível.
Vou guardar para sempre na Memória cada aula que tive com este Grande Senhor, com a melhor recordação dos meus tempos de estudante da UC. Uma frase que nos dizia sempre era: "O Saber nunca ocupa lugar, e quanto mais se sabe, mais se quer saber".
Descanse em paz, estimado Professor.
Quando cheguei como caloiro a Coimbra em 2011, um dos primeiros professores com quem tive aulas foi precisamente o Professor António Gama Mendes.
ResponderEliminarAs suas aulas eram fascinantes,trazia sempre consigo imensos livros e jornais diários, para poder entrar em longos discursos com a plateia que estava presente a ouvir os seus ensinamentos.
Certo dia disse-nos , citando Cícero: Uma casa sem livros é um corpo sem alma.
A ignorância é a noite do espírito, noite sem lua nem estrelas.
Tive o prazer de o entrevistar em meados dos anos 80 - Ainda conservo, no meu vasto arquivo de repórter da extinta Rádio Comercial-RDP, a gravação da entrevista em que, no final, me leu um dos seus belos poemas, pois também tinha essa faceta - Vou ver se, num destes dias, a edito no Youtube e num dos meus sites - Só agora, ouvir por um acaso o registo, me apercebi, ao ir à Internet para saber noticias suas, soube, que, infelizmente, já faleceu
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