quarta-feira, 14 de maio de 2014

Ajustar a troika


Façamos um exercício. Imaginemos que os desvios das previsões do Memorando de Entendimento (MdE), verificados entre a versão inicial e a 11ª Avaliação, para os anos de 2011 a 2016, se vão repetir nas estimativas estabelecidas pela troika para o período entre 2014 e 2019. Ou seja, vamos supor que as discrepâncias observadas até aqui reflectem a margem de erro inerente aos cálculos das instituições internacionais, constituindo por isso um bom instrumento para ajustar, tendo em vista uma aproximação à realidade, as mais recentes previsões do FMI relativamente a Portugal. E vamos supor também, por momentos, que a austeridade funciona (conduzindo ao cumprimento dos objectivos do próprio programa de «ajustamento»), o que nos leva a não questionar, portanto, a lógica subjacente às tendências de evolução que a troika estabelece nos diferentes indicadores.

Já assinalámos neste blogue por várias vezes (por exemplo aqui), a discrepância crescente entre as previsões iniciais inscritas no Memorando de Entendimento (assinado em Maio de 2011) e os resultados e previsões (rectificativas) que foram sendo estabelecidos ao longo das sucessivas revisões do MdE. Tal como já sublinhámos o facto de o optimismo inflamado da troika se ver consecutivamente obrigado a postergar no tempo o ansiado início do sucesso do programa, à boa moda dos «amanhãs que cantam», mas sempre no amanhã que está por vir. Os gráficos ali em cima ilustram bem tudo isto: a descoincidência entre a linha vermelha (previsões iniciais) e a linha azul (previsões da 11ª Avaliação) demonstra a persistente margem de erro da troika, podendo-se igualmente constatar que em regra, nos termos das previsões iniciais, as estimativas de inversão de tendências já deveriam ter ocorrido (o que de facto não sucede, como demonstra a divergência entre as previsões e a linha a negro, relativa a resultados).

Realizando este exercício de «correcção dos erros da troika» (linha a roxo, nos gráficos), a partir da replicação das suas próprias falhas, constatamos que a previsão relativa à evolução do desemprego aponta para um aumento até 2017, estagnando a partir daí num valor próximo dos 18% (que indicia a consolidação do «novo normal», num claro contraste com a visão optimista de descida acentuada deste indicador a partir de 2013, nos termos da 11ª Avaliação). Quanto à dívida pública em percentagem do PIB, a previsão ajustada indicia uma subida até 2015 e estagnação em 2016, iniciando-se apenas nesse ano a trajectória de descida. E quanto ao PIB, que se estimava na versão inicial do memorando começar a crescer logo em 2012, atingirá em 2019 cerca de 185 mil milhões de euros (um valor inferior ao previsto na 11ª Avaliação, que o situa, nesse ano, em cerca de 200 mil milhões de euros).

O pressuposto deste exercício não tem qualquer fundamento estatístico, pelo que dificilmente chega sequer a ser discutível. Mas nessa matéria, de fiabilidade, convenhamos que as previsões da troika também não oferecem muito mais. Se nos recordarmos que a versão inicial do memorando previa que a economia estivesse já a crescer a 1,2% em 2013, quando na verdade assistimos a uma contracção na ordem dos -2,1%, estamos conversados. Aliás, percebe-se muito bem por que razão a tese da sustentabilidade da dívida pública - esgrimida por todos quantos querem evitar, irresponsavelmente, que se discuta a sua reestruturação - não tem chão minimamente firme que a suporte.

12 comentários:

  1. Caro Nuno,

    Os gráficos são da tua autoria, ou podem ser encontrados noutra fonte? Se for o segundo caso, onde?

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  2. Caro Nuno Serra,
    Gabo-lhe a "paciência" para ainda analisar "desvios das previsões", seja do que for, a mais de 3 meses quanto mais a 2 ou 3 ou 20 anos. Eu não sou economista mas se há algo que até um leigo como eu já percebeu é que o novo "normal" é que previsões a mais de 3 meses servem apenas para empregar economistas, econometristas, estatísticos e afins: nenhuma vale o papel em que é impressa. E isso vai passar a ser (já é) o novo "normal".

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  3. Caro R.B. NorTor, os gráficos foram construídos a partir dos dados dos relatórios do FMI, relativos à versão inicial do Memorando e à versão da 11ª Avaliação, acrescentando as estas fontes dados oficiais. A «correcção» das previsões da 11ª Avaliação resulta da aplicação do diferencial entre previsões e dados oficiais.
    Caro Anónimo, tem toda a razão. Tal como na meteorologia, é prudente não fazer muita fé nas previsões a mais de três dias. O problema é mesmo o do efeito encantatório que previsões do governo e da troika têm sobre a opinião pública, levando-as a acreditar que a luz ao fundo do túnel está no horizonte.

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  4. Em todo o caso, o histórico não engana: mostra bem a discrepância. Será interessante esperar mais 1 ano para avaliar o ajustamento feito às previsões da troika, que sempre navegou num “conveniente optimismo”. É só uma curiosidade, mas que nos valerá pouco (quem sabe, o pedido de desculpas à la Barroso …)

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  5. "O problema é mesmo o do efeito encantatório que previsões do governo e da troika têm sobre a opinião pública, levando-as a acreditar que a luz ao fundo do túnel está no horizonte."
    Concordo. Apenas não limitava a sua conclusão às previsões do governo e da troika. Qualquer previsão (veja-se a 'espiral recessiva') é hoje um mero exercício divinatório que serve apenas de 'arma' para o combate político. Um outro problema é que os agentes políticos (governo e oposição) ainda não se aperceberam que a probabilidade de 'acertarem' uma previsão é quase nula. Logo, rapidamente serão confrontados com o seu desacerto aumentando assim o descrédito conjunto na opinião pública.
    Por outro lado, as previsões são o principal alimento dos inúmeros comentadores.

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  6. Mas no caso des previsões da troika, nem seria necessário mostrar a realidade dos números (sabendo que os números em estatística dizem aquilo que quem os analisa quer que digam) bastava verificar o desvio colossal entre as previsões iniciais e as da última avaliação.

    Para os que gostam de fazer uma analogia entre o Estado (que somos todos nós) e uma empresa (que são alguns de nós), qual a empresa que confiaria três anos a fio em quem de três em três meses falha e falha e falha?

    Quanto ao optimismo das medidas, ele não é conveniente, ele é ilusório, uma farsa. Ninguém minimamente educado poderia acreditar nos resultados previstos, face às medidas propostas. Agora, os apologistas da "espiral recessiva" fizeram-no num contexto em que certas medidas não haviam sido chumbadas pelo TC. Ao contrário da troika (3 anos de previsões falhadas), ainda está para ser provado pela realidade que as referidas medidas não desaguariam na espiral recessiva. Esperemos nunca o vir a saber.

    Quanto ao descrédito na opinião pública, esse é o que a imprensa quiser que seja. Como disse noutro comentário, as posições que se digladiam aqui pelo Ladrões, não se digladiam num espaço público alargado, assim sendo é natural que as pessoas, atoladas em lama até aos queixos, queiram acreditar que agora é que é. Simplesmente, elas tanto sentem isso com estas, como com outras quaisquer.

    Exemplo? A descida da taxa de desemprego. Enquanto vemos os jornais a embandeirar em arco com as descida, quantos deram o mesmo destaque ao facto de a população activa ter descido?

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  7. "Agora, os apologistas da "espiral recessiva" fizeram-no num contexto em que certas medidas não haviam sido chumbadas pelo TC."
    Esse é que é o ponto. E não se aplica só à "espiral recessiva" mas a toda e qualquer previsão (de futuro risonho ou de futuro tenebroso). Basta ver que bastaram uma palavras (palavras!) de Mário Draghi para que o contexto mudasse e toda e qualquer previsão deixasse de fazer sentido. O contexto mudou e vai continuar a mudar e de forma cada vez mais acelerada e imprevisível.
    Eu percebo que os analistas analisem previsões, a sua exequibilidade, e o seu cumprimentos.
    Já tenho mais dificuldade em perceber porque razão agentes políticos (nomeadamente na oposição) baseiam a sua estratégia numa crítica ao não cumprimento de previsões: inevitavelmente (repito, inevitavelmente) esses mesmos políticos, quando no poder, cometerão os mesmos 'erros de previsão' e serão confrontados com isso. No final, o que vai resultar é novamente um descrédito do sistema como um todo.

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  8. Reflectindo mais um bocado sobre a questão das previsões.
    É um facto que o sistema actual prevê e exige a elaboração de um conjunto de previsões de curto, médio e longo prazo desde os orçamentos de estado, passando pelos DEOs, até aos estudos de sustentabilidade da SS (por exemplo). Nessa medida têm de ser feitos e vão continuar a ser feitos.
    Mas também me parece evidente que a volatilidade do contexto actual é tal que o valor destas previsões tem de ser necessariamente relativizado (mesmo as de curto prazo). Daí que não me pareça fazer sentido despender demasiado esforço e tempo a mostrar, à posteriori, que as previsões falharam: facilmente os desvios de previsão podem ser justificados com "mudanças no contexto". Isso para mim é um dado adquirido para qualquer previsão feita neste momento e não devia, no meu ponto de vista, servir de arma de arremesso político.
    Dito isto, concordo com o Nuno quando diz que previsões demasiado optimistas podem ter um efeito encantatório na opinião pública com impacto na avaliação do presente, acrescentado apenas que o mesmo pode suceder no sentido contrário: previsões catastróficas para o futuro também podem ter um efeito no presente.
    O que resta então:
    - Vai ser necessário continuar a fazer previsões;
    - As previsões devem ser consideradas à partida falíveis, com um elevado grau de probabilidade;
    - Não faz muito sentido avaliar à posteriori a acção governativa com base no 'falhanço' ou 'sucesso' (incumprimento ou cumprimento) das previsões;
    - Faz sentido, no momento em que as previsões são feitas apontar falhas metodológicas, erros nos pressupostos, graus de incerteza, robustez dos resultados, ... alertando assim (repito, à partida) para projecções notoriamente irrealistas de acordo com os dados actuais. E mesmo assim salvaguardando que tudo pode mudar a qualquer momento, incluindo os tais pressupostos que tornam irrealistas as previsões.

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  9. A questão de fundo não são as previsões, mas o que lhes dá origem.

    O importante não é que um documento previsse que o PIB ia crescer 20000000% em 3 anos, mas sim que dizia se fizermos Y o PIB cresce X. Ora, não cresceu. Mais do que não crescer, diminuiu. Para lá de diminuir, o malandro ainda diminuiu muito para lá do que estava previsto. A solução? Agravar as medidas para YY e esperar ver uma mudança. Voltou a não funcionar. E voltámos a tentar, agora com YYY...

    Previsões todos fazemos, quanto mais não seja ao sairmos de casa de manhã e escolhermos tomar, ou não, medidas para nos proteger das intempéries.

    Que credibilidade tem o fulanos que 4 vezes por ano, durante três anos, nos aconselha a subir ao Evereste apenas com t-shirts na mochila, por serem levezinhas?

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  10. O ponto é exactamente esse, caro R.B. NorTor. Não se trata de discutir o grau de fiabilidade, em abstracto, das previsões, mas sim o seu uso e significado enquanto instrumento político

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  11. Basta ouvir alguém como Lobo Xavier para percebermos que quem nos governa (e o FMI e talvez também Bruxelas e Berlim), já não acreditam na teoria da austeridade expansionista e nas previsões associadas. A questão, como diz o Nuno Serra, é outra: mostrar que somos bem comportados e que fazemos sempre o que nos mandam fazer, mesmo que seja estúpido. A credibilidade da 'teoria da dissonância cognitiva' tem limites, em particular se aqueles que desenham os programas não são depois atingidos pelos sacrifícios.

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