quinta-feira, 20 de março de 2014

Um manifesto revelador


O chamado manifesto dos 70, intitulado "Preparar a reestruturação da dívida para crescer sustentadamente", tem sido muito discutido. Ainda bem, porque imagino que era mesmo esse o seu objectivo central. Que os fiéis do pensamento único, do "não há alternativa" thatcheriano digam que o momento é inoportuno e que o documento contém "opiniões líricas e apresentadas de forma leviana", diz tudo sobre a qualidade da democracia que desejam para o país. A sociedade portuguesa não esquecerá quem se pôs do lado dos credores.

Há quem diga que a insustentabilidade da dívida pública não é óbvia e invoque as contas apresentadas pelo FMI, ou o facto de haver operadores privados que continuam a comprar dívida pública portuguesa a dez anos. São argumentos falsos. O irrealismo, ou mesmo a manipulação, dos pressupostos usados nas simulações do FMI, designadamente quanto às taxas de crescimento real do produto, à evolução dos preços na produção, ao crescimento da procura interna e ao excedente primário orçamental, foi muito bem escalpelizado por Ricardo Paes Mamede no Ladrões de Bicicletas ("Irrealismo ou barbárie").

De facto, para quem apenas vê folhas de cálculo, tudo é sustentável. Há um respeitável economista que diz não perceber porque é que elevados excedentes orçamentais primários não podem ser assumidos por muitos anos. Deve valorizar pouco o sofrimento que hoje esmaga muitos portugueses. Contudo, talvez consiga perceber se lhe lembrar o motim na armada britânica, em 1931, na sequência de uma brutal política de austeridade destinada a acalmar a finança internacional, o que implicou grandes cortes nos salários da função pública. Dias depois, a Grã-Bretanha abandonou o padrão-ouro e desvalorizou a moeda, logo começando a criar emprego. Estes economistas "sérios" têm grande dificuldade em perceber que a insustentabilidade da dívida pública e privada é uma matéria de escolha política, portanto, também de escolha moral, não é uma escolha técnica no quadro de uma restrição orçamental europeia inamovível.

Mesmo sendo insustentável, os operadores do mercado de capitais continuarão a comprar dívida portuguesa até ao dia em que perceberem que o BCE não vai poder comprar dívida pública sem limites. No dia em que, por razões de constitucionalidade alemã, os mercados não tiverem um comprador de último recurso, e esse dia vai chegar, ficará à vista o irrealismo do pressuposto do FMI sobre a taxa de juro. A menos que a actual maioria política alemã altere a Constituição para a tornar compatível com as intervenções do BCE, hipótese muito pouco provável, o que nos espera após a dita "saída limpa" é um teste dos mercados à capacidade de intervenção do BCE. Com a actual instabilidade financeira internacional, não me parece que tenhamos de esperar muito.

Há também quem sugira que a Alemanha e seus satélites já estão disponíveis para melhorar substancialmente as condições de juro e prazo, após as eleições europeias e um terceiro resgate à Grécia. É a conversa do costume sobre os amanhãs que cantam na zona euro. Infelizmente, desse espírito também enferma o manifesto ao dizer que uma nova Comissão Europeia vai desencadear um processo institucional que nos permitirá beneficiar de uma mutualização da dívida pública acima de 60% do produto. Toma o desejo pela realidade (ver Jörg Bibow, "Euro Delusion and Denial Keep Authorities Entranced").

Sendo o manifesto subscrito por europeístas de várias correntes ideológicas, a sua proposta assenta em dois pilares muito frágeis: (1) a viabilidade política da renegociação das dívidas na UE; (2) a capacidade de crescimento da economia portuguesa com os instrumentos de política de uma região autónoma, sob tutela do Tratado Orçamental. Ainda assim, é um mérito do manifesto ter dito a verdade aos portugueses: não há futuro no presente quadro institucional europeu. O PS já declarou que nunca porá em causa o statu quo e, por isso mesmo, já recebeu a bênção da chanceler Merkel. À esquerda, ainda não há alternativa credível.

 (O meu artigo no jornal i)

13 comentários:

  1. então agora já estás a favor da nossa continuação no Euro e de todo o enquadramento jurídico da UE?!...e explica-me lá o que é um restruturação honrada... é que me faz lembrar daquela conversa muito em voga em diversos sectores do PS e da direita em geral e que diz que nós somos honrados e que por isso pagamos as nossas dívidas!

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  2. Caro Carlos,
    Se me permite, sugeria que relesse com atenção o post do Jorge Bateira, pois parece-me que não o percebeu.

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  3. Sinceramente não percebo como elogia o manifesto quando já no final identifica a fragilidade total de um dos seus pilares principais: "(1) a viabilidade política da renegociação das dívidas na UE".
    Não tenha dúvidas, a dívida vai continuar a ser reestruturada tal como tem sido feito até agora: de forma negociada, incremental e fora do olhar público. Pode não concordar com esta forma de o fazer mas esta é a única forma realista e viável politicamente dentro da UE. E é ao não perceber isto que o manifesto falha. Repetindo o que disse, e com o que concordo: não é politicamente viável na UE uma reestruturação "oficial" e em larga escala da dívida. A alternativa é, como defende, a saída do euro mas isso não está no manifesto.

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  4. Também não percebo como elogia o manifesto por "ter dito a verdade aos portugueses" quando na verdade conclui o contrário: aquilo que o manifesto defende não é viável. Não é viável politicamente na UE reestruturar as dívidas (como constata) e o quadro institucional não se vai alterar significativamente (basta ver, como bem aponta, o caso PS). Logo o que se conclui é que o manifesto apresenta uma falsa alternativa: penso que no fundo é isso que conclui daí que não perceba o elogio ao manifesto "ter dito a verdade".

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  5. Caro Jorge Bateira, este seu post tornou claro no meu espírito algumas coisas que sobre as quais ainda não tinha reflectido acerca do manifesto. Daí a minha sequência (quase febril) de comentários.
    Depois de reflectir sobre o que escreveu e sobre o que eu escrevi nos dois comentários anteriores, cheguei a uma conclusão: só a saída do euro também não é alternativa. Não muda nada. Para ter algum efeito teria de ser acompanhada por um haircut. Sem isso, por muitos instrumentos de política económica que retomássemos nenhum permitiria continuar a manter o serviço da dívida: seria necessário um verdadeiro haircut.
    Penso que é esse o caminho alternativo para o qual está a apontar (saída do euro e haircut) e que o manifesto na verdade veio iludir ainda mais (como parece concluir no seu post). Isto sim seria falar claro aos portugueses.
    Para prosseguir o raciocínio era necessário agora saber com certeza quem detém que montantes da nossa dívida, quem sofreria o haircut e em que percentagens, se é viável um haircut negociado, e qual o impacto (interno) que isso teria. Como não sou economista, sugiro-lhe (peço-lhe) que procure esclarecer este ponto num próximo post (ou que, por favor, indique uma fonte credível com estes dados).

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  6. Caro António Carlos

    A tomada de consciência, pela sociedade portuguesa, de que não temos futuro dentro do euro tem sido lenta. Por isso, considero este manifesto um passo na direcção certa dado que reconhece (implicitamente) que a austeridade falhou e que é preciso renegociar a dívida. Quebrou-se um tabu na sociedade portuguesa. Isto é um avanço.
    Agora é preciso quebrar o seguinte: questionar abertamente a participação na zona euro. É preciso alargar o debate fora dos media convencionais para os obrigar a ir atrás.

    Sobre a dívida não tenho agora tempo para desenvolver. Ficam apenas alguns tópicos que terão de ser trabalhados: (1) Todos os contratos celebrados ao abrigo da lei nacional passam automaticamente os respectivos montantes para a nova moeda que, sendo desvalorizada em 40%, leva a um corte idêntico na dívida externa relevante; (2) não me informei sobre a legislação que cobre a dívida externa oficial; imagino que não seja a nacional e, se assim for, mantém-se em euros e será renegociada; (3) a dívida na posse dos bancos converte-se automaticamente na nova moeda (1:1) e, após a sua nacionalização (mesmo que temporária, terá de ser), o Estado decide a sua reestruturação mais adequada; (4) a dívida na posse da segurança social também passa à nova moeda e será sujeita a restruturação, por exemplo baixando apenas os juros.
    Tudo isto terá de ser estudado por uma equipa técnica com diversas competências. Já que a academia portuguesa não parece interessada, não haverá aí gente com vontade de trabalhar nisto? É uma tarefa urgente para lutar contra a retórica do medo.

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  7. Julgo que no manifesto se dá por adquirido que os 20 mil milhões que estão anunciados no novo Quadro Comunitário de Apoio se mantêm. Estranho é que entendem que quem decide essa ajuda não se reserve o direito de dizer se, como e quando haverá de reestruturar-se a dívida!!!
    Imagino que os grandes defensores da saída do euro não ignorem que se despedem desse apoio, mas sintomático é que nunca falem em tal.

    O descrédito da literatura leva este país de escrivões a fazerem-se notar em áreas que requerem mais do que o cnhecimento da língua e dos dramas sociais!!!

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  8. José ou o descrédito de alguém que teima em juntar argumentos do tipo "escrivões", conheciomento de línguas" e "dramas sociais".
    A utilização deste último conceito por parte de jose é de facto bem significativa da posição dum extremista neoliberal, que tem pelo tema o desdém próprio dos admiradores de Friedman (enquanto não hesita em catalogar quem tem opinão diferente da dele da forma trauliteira como o faz).
    Entretanto sublinhe-se a surdez específica que jose nutre pelo que já lhe disseram n vezes sonre os credores e os devedores,particularmente Jaime Santos.Será por ignorância, má-fé, teimosia ou fundamentalismo ideológico próprio duma escola de chicago com ligações ao chile de 73?
    A sua porfia faz lembrar o rumo seguido pelos que nos governam,cegos,surdos e mudos advogados firmes e sem tibieza dos interesses do grande capital.Alguns até sonham com os trocados a haver,enquanto aprendem alemão
    De

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  9. A ideia de um Manifesto é colocar as pessoas a falar do problema. A sua solução deve ser encontrada pelas vias formais, isto é, negociações entre os Partidos no Parlamento, apresentação de um plano de reestruturação aos credores, negociação com os mesmos que imporão certamente condições para que a reestruturação se faça (alguns poderão mesmo desejar receber apenas uma parte daquilo que foi emprestado logo, em lugar de verem as maturidades estendidas por mais não sei quantos anos, como bem aponta o Pedro Nuno Santos) e eventual colocação da reestruturação a Referendo, se os Partidos não se quiserem comprometer com o ónus de aceitar essas condições em sede parlamentar. As pessoas que assinaram este Manifesto sabem isso tudo muito bem. Tudo isto pode ser feito sem dramas, não pode é ser feito sem custos, mas esses já se estão a pagar, de qualquer maneira. Não é simplesmente honesto exigir-se que um documento destes apresente à cabeça uma solução completa que só pode de facto ser apresentada por quem de direito (e depois, ainda por cima, acusar-se os subescritores de quererem substituir-se ao Governo)... Já agora, uma palavra sobre uma eventual saída do Euro: saúda-se a admissão pelo Jorge Bateira de que os custos e o enquadramento legal de tal operação não começaram sequer a ser determinados. Naturalmente, espero que se chegarmos aí, o povo seja informado dos custos e dos riscos e subsequentemente consultado, para não se repetir o que aconteceu aquando da nossa entrada no novo 'Padrão Ouro Europeu'...

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  10. Caro De, Depois de ler o seu último post, chego à conclusão que já perdemos demasiado tempo com o Anónimo que assina José. Repare que ele é mal-educado com os Adversários, revelando desde logo um tique autoritário. Depois, sabemos aquilo a que se opõe, mas não sabemos exatamente o que defende. Ele diz que o que tem que ser feito é óbvio, confundindo (ou querendo confundir) o óbvio com a sua opinião, que nem sequer conhecemos em pormenor. Não sabemos se é um neoliberal da Escola de Chicago, um anarco-capitalista (uma contradição nos termos) admirador da Senhora Rand, ou simplesmente um serventuário do poder ao estilo Moreira de Sá (e francamente, quero lá saber). Chama incompetentes aos autores do blog pela sua suposta falta de rigor com os números, quando a qualidade do trabalho de levantamento de dados feito pelos 'Ladrões' no livro da Troika e as análises feitas em alguns dos Posts fariam corar de Inveja o Paulo Portas e o documento de treta a que chamou Guião para a Reforma do Estado. Finalmente, atribui aos seus Adversários posições que estes não têm, o que é falacioso e releva da Má-Fé. Ou seja, não se tratando de uma opinião divergente séria que mereceria o nosso Respeito e eventual Réplica, não se pode simplesmente ignorá-lo?

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  11. Post muito interessante mais uma vez.

    Li até ao terceiro comentário, em que parei quando António Carlos escreve "Não tenha dúvidas, a dívida vai continuar a ser reestruturada tal como tem sido feito até agora: de forma negociada, incremental e fora do olhar público... esta é a única forma realista e viável politicamente dentro da UE. "

    A divida é dos portugueses, como se tem notado nos vários cortes feitos a pensões e ordenados.

    Vir defender que a divida deve ser negociada à porta fechada, entre governantes e Bancos de Investimento como é a troika composta, é .... que dizer, o caminho para mais negociatas fajutas? Falta total de democracia ?

    Portugal precisa de transparência, em vários níveis, e não de opacidades.

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  12. Caro Jaime Serra,
    quero explimir-lhe a minha total simpatia por esse seu apelo em que, dirigindo-se Anónimo que assina DE, propõe que eu seja ignorado.
    Tenho essa praga em missão controleira a distorcer tudo quanto entendo dizer, enquanto vai produzindo uma minha biografia não autorizada com recurso a uma monótona parcela do rico vocabulário 'anti-fascista' produzido a partir da 3ª Internacional.
    Quero ainda manifestar-lhe que meu interesse sobre a questão da dívida é meramente de avaliação crítica dos contributos que vou conhecendo.
    A dívida ir-se-à pagando se, quanto e quando for possível e interessar-me-ia muito mais saber como crescer a economia sem dinheiros públicos, mas sobre isso o desinteresse da esquerda é total!

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  13. Mais simples de tudo é a emissão de Mosler-Bonds, divida publica com uma clausula adicional que permite que seja usada para efectuar pagamento de impostos.

    Essa divida poderia ser depois usada como segunda moeda escritural, ou seja em pagamentos interbancários caso fosse deejado pelos seus detentores.

    Gradualmente toda a divida pubica actual seria convertida em M-Bonds com um prazo máximo de 5 anos de maturidade dos titulos.

    As taxas de juros destes titulos teriam tendencia a convergir para valores baixos, dado que o risco de default na pratica seria quase eliminado.

    As taxas actuais de 5 anos andam nos 3,4%, e poderiam baixar para os 2% como estão em Espanha.

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