terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Desejo


Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Tal como no ano passado, o Artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa. Tenham um excelente ano de 2014. 

domingo, 29 de dezembro de 2013

A discussão continua em 2014

A jornalista Ana Sá Lopes, que ainda recentemente colocou a questão, a propósito do livro A Troika, a Crise as Alternativas Urgentes, analisou esta semana no jornal i o guião político para as Europeias de 2014 que o Alexandre Abreu, eu e o Nuno Teles escrevemos recentemente. Entretanto, o resistir.info decidiu simpaticamente disponibilizá-lo aos seus leitores, com sublinhados a vermelho, que é cor, da sua responsabilidade.

Aproveito para recuperar uma entrevista a Jacques Sapir traduzida pelo mesmo sítio: “Se agora olharmos para as possibilidades de renegociar os planos de austeridade que foram impostos pela UE e pelo BCE ao Sul da Europa (porque, no seio da Troika, a UE e o BCE foram os defensores das linhas mais duras, contrariamente ao FMI), vemos que elas são praticamente nulas. Se a Grécia ou Portugal recusarem um plano, os pagamentos europeus cessarão imediatamente. Se nesses países, os dirigentes políticos compreendessem que mais valia sair do Euro do que aceitar esta morte lenta, e se eles dissessem à Troika: 'Encantados! Suspendam os pagamentos e nós saímos do Euro e não pagamos a dívida!', talvez, nesse caso, esses países tivessem qualquer hipótese de renegociar os planos de austeridade. Enquanto não estiverem preparados para o fazer, não têm a mínima hipótese.”

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Perder as ilusões

 
As decisões da UE que concretizam o modelo da tão desejada união bancária constituíram mais um episódio revelador do poder da Alemanha na configuração do nosso futuro. Contra a Comissão Europeia e todos os europeístas que sonham com a federalização passo a passo, mas sem o voto dos cidadãos, a Alemanha não permitiu que os bancos falidos possam ser encerrados sem ter a última palavra. Ou seja, o Conselho Europeu é que decidirá, sem pressas, porque é aí que a Alemanha tem melhores condições para exercer o seu poder. Mais ainda, o fundo destinado a suportar os custos das falências não será financiado por um imposto europeu, o que quer dizer que a união bancária não terá uma natureza federal. Na realidade, o acordo não permite acudir, no imediato e numa escala supranacional, a uma crise bancária importante. Os orçamentos nacionais continuarão obrigados, por muitos anos, a acudir a bancos internacionalizados, uma vez que a Alemanha não quer assumir mais responsabilidades com o dinheiro dos seus contribuintes. Já tem problemas que cheguem com os seus bancos regionais, que, como sempre exigiu, ficam preservados de uma supervisão supranacional.

Assim sendo, quando vemos declarações dos nossos banqueiros, ou do governador do BdP, assegurando que os bancos portugueses estão de boa saúde, temos boas razões para nos preocuparmos. Primeiro, porque se vê que precisam de dizê-lo, o que é um mau sinal. Numa depressão, e esta crise na periferia europeia já é uma depressão, alguns bancos entram forçosamente em insolvência e nem é preciso ser economista para perceber que é assim. Alguma leitura de história económica poderá ajudar quem ainda tenha dúvidas. Por outro lado, basta alguma atenção às notícias sobre a evolução dos resultados das operações internas (internacionalização à parte), ou sobre a contabilidade criativa num grande banco, para se perceber que as declarações dos banqueiros são apenas sintoma do nervosismo de quem sabe mais que nós. A esse nervosismo não será alheia a má consciência de que contam com a socialização dos seus prejuízos para se manterem bem na vida. E esta é outra razão para nos preocuparmos, uma vez que, por decisão da UE, o endividamento público continuará a ser a fonte do financiamento do resgate dos bancos.

O que nos espera em 2014 é a convergência de várias dinâmicas interligadas: o regresso à espiral depressiva, com a aplicação de um Orçamento reciclado para responder às decisões do Tribunal Constitucional; a degradação das contas do sistema bancário e a aproximação de mais resgates; a aceleração dos efeitos bola de neve (juros crescentes) e "denominador" (diminuição do produto), que farão disparar o peso da dívida pública; a desconfiança dos mercados financeiros relativamente à dívida de uma economia deprimida; a continuação da emigração em grande escala; a exasperação de algum protesto social face à inexistência de alternativa política.

Qualquer que seja a decisão da UE sobre o que fazer com Portugal, uma coisa parece certa: esta política económica é para manter. Neste cenário, com quem podem contar os portugueses para começar a ver uma luz ao fundo do túnel? Com os europeístas? Primeiro disseram-nos que a eleição de François Hollande acabaria com a austeridade na Europa. Depois disseram-nos que grandes mudanças viriam com as eleições de Setembro na Alemanha. Agora dizem-nos que as próximas eleições para o Parlamento Europeu são a grande oportunidade para uma reforma redentora da UE. Enquanto o país se afunda na depressão, este europeísmo da moeda única insiste em criar ilusões. Espero que em 2014 estas ilusões se desfaçam para podermos começar a preparar um novo horizonte para o país.

(O meu artigo no jornal i)

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Lampedusa, Europa, Século XXI

«As imagens captadas pelo telemóvel do jovem sírio Khalid chocaram o mundo. Em Lampedusa, meses após a morte trágica no Mediterrâneo de centenas de imigrantes clandestinos, descobre-se que os que sobrevivem ao mar são tratados como bichos. No centro de acolhimento da ilha italiana, ficam nus à frente de toda a gente para serem desinfectados com um jacto de água. A imagem tem conotações duras. Um campo de concentração? Um matadouro? Duas ou três palavras bastam para descrever essas imagens. Indiferença. Desumanidade. Vergonha. Em Outubro, quando mais de 300 imigrantes morreram ao largo da ilha, o Papa Francisco resumiu tudo na palavra vergonha. Passadas poucas semanas, a vergonha ainda não chegou a Lampedusa. Nem à Itália. Nem à Europa que desiste dos seus valores a troco da segurança imaginária de uma fortaleza. Ao escândalo da morte escondida no fundo do mar soma-se o escândalo da humilhação dos sobreviventes, julgados demasiado indignos para serem tratados como mulheres e homens num centro de acolhimento. A Europa que se mostra assim tem que legitimidade para dar lições de direitos humanos aos outros?
Vimos as imagens, elas suscitaram a indignação geral. Incluindo a fúria de Bruxelas, em vésperas de mais uma cimeira europeia onde o tema da imigração corre o sério risco de ser afastado do topo da agenda. E a pergunta a fazer é: o que aconteceria se não tivéssemos visto essas imagens? O que aconteceria se Khalid não tivesse obrigado os europeus a ver? Tudo continuaria na mesma. Porque na verdade está tudo na mesma. Desde as tragédias de Outubro, a UE não deu um passo para alterar as suas políticas de imigração. Continua a preferir o medo à vergonha, a indiferença à humanidade. E é intolerável que a Europa não consiga encarar de frente a questão. Os direitos humanos são de todos os seres humanos. E esquecê-lo é infelizmente mais fácil que parece.»

(Editorial do Público de 19 de Dezembro: A vergonha ainda não chegou a Lampedusa).

domingo, 22 de dezembro de 2013

Grilhetas monetárias

Através de Paul Krugman, descobri o trabalho mais recente do ortodoxo historiador económico Nicholas Crafts. Só o conhecia por ter quantitativamente defendido que se tirasse o r à revolução industrial, por assim dizer, e por defender o indefensável legado de Thatcher. Bom, Crafts parte da visão, que creio hoje ser convencional na história económica, sobre o papel do padrão-ouro na propagação da Grande Depressão e sobre as virtudes de dele ter saído mais cedo para, entre outras, poder usar a soberania monetária para sair das dificuldades: de resto, veja-se no gráfico de Crafts a diferença de performance económica entre a zona euro, um arranjo rígido, o grupo de países que acompanhou a Grã-Bretanha na libertação, em 1931, da relíquia bárbara, como lhe chamou Keynes, e o grupo de países que, como a França persistiram até mais tarde na ortodoxia económica associada ao padrão-ouro.

Crafts indica-nos que agora é ainda pior, dado que, com excepção da Grã-Bretanha demasiados países europeus estão mais endividados do que na década de trinta, e, sobretudo, estão agora presos a um banco central, o europeu, ortodoxo e independente, que inviabiliza uma estratégia assente na erosão do valor real da dívida por via de uma inflação e de um crescimento económico superiores: a austeridade e o viés deflacionário estão inscritos na Zona para desgraça dos devedores. Um banco central “subserviente” ao poder político foi um dos pilares de uma indispensável estratégia de repressão financeira, condição para reduzir o fardo da dívida, por via de taxas de juro reais negativas e taxas de crescimento reais bem positivas. Foi assim a partir dos anos trinta e sobretudo a partir dos anos quarenta, dado que aí, devido à guerra, a dívida pública britânica, por exemplo, ultrapassava os 200% do PIB, como já assinalei em polémica com Pulido Valente, sendo depois reduzida graças também à possibilidade de tal repressão associada à soberania monetária. A história económica ajuda-nos, entre outras coisas, a analisar melhor os erros que estão a ser cometidos, na mais benigna das hipóteses, e a tentar aumentar as ferramentas na caixa política.

De resto, temos a obrigação de saber que pouco ou nada se consegue fazer, sobretudo para quem tem também problemas de inserção dependente, sem quebrar com grilhetas monetárias, sejam de ouro ou de euros. O passado está cheio de incumprimentos soberanos. Hoje, a recuperação de uma certa soberania monetária começa a jusante disso. Depois, logo depois, terá de vir a repressão financeira, com controlos de capitais e tudo o mais. É que para haver alguma liberdade monetária para os países tem de haver alguma repressão do capital financeiro.

sábado, 21 de dezembro de 2013

De novo, apenas e só, a espuma das coisas

1. Quase não tinha ainda terminado a comunicação ao país e já o Tribunal Constitucional era acusado, no subtítulo de primeira página do Diário Económico, de «chumbar a convergência de pensões da CGA com a Segurança Social» e a SIC mostrava, em nota de rodapé, que o «chumbo do Constitucional custa[ria] 388 milhões de euros». Ora, como é óbvio, não só o TC não chumbou, de per se, «a convergência de pensões da CGA com a Segurança Social» (mas sim a violação do princípio da confiança inscrita na proposta de Orçamento), como constitui uma escolha jornalística manifestamente enviesada referir que o dito chumbo teria um «custo» de 388 milhões (quando se poderiam referir, na mesma linha, os ganhos para a economia portuguesa que decorrem do alívio da austeridade resultante desta decisão do TC). Por leviandade, simples mau hábito, intencionalidade ou preguiça, os meios de comunicação social continuam, com irreprimível frequência, a reproduzir a narrativa oficial sobre a crise, a austeridade e o programa de «ajuda» externa.

2. Na sequência da decisão do TC assiste-se já, uma vez mais, à discussão sobre o «activismo político» dos juízes, o pendor ideológico anacrónico do Tribunal Constitucional (escamoteando-se a unanimidade da decisão, o facto politicamente mais relevante deste chumbo), ou o seu papel de obstaculização face à necessidade de cumprir, «custe o que custar», os compromissos com a Troika. Não por acaso, o governo escolheu um fato orçamental que estava talhado para não passar pelo crivo do Constitucional. Não por acaso se continua a pretender confundir a análise baseada em princípios e valores (equidade, proporcionalidade, confiança) com opções de natureza política e ideológica. O governo sabe, desde há muito, que só já dispõe de um álibi para justificar o fracasso da sua estratégia de «ir além da Troika»: os chumbos do Tribunal Constitucional.

3. De idêntico modo, está já instalada a discussão sobre o quadro de medidas que permitem «compensar» esta decisão do Tribunal Constitucional. De um lado, as propostas punitivas, que cavalgam o chumbo para justificar o aumento de impostos e o reforço da austeridade. De outro, as propostas alternativas, com contornos fiscal e socialmente «mais justos», ancoradas na necessidade de inverter o desequilíbrio na repartição de sacrifícios entre o capital e o trabalho. E nesse plano ficará, uma vez mais, a contenda política. No nível subparadigmático face ao que seria verdadeiramente importante discutir: faz sentido persistir na fracassada receita da austeridade? Não é hoje claro que esta não resolve, antes agrava, os problemas do país? Continuamos a pretender ignorar os factores estruturais que nos conduziram até aqui e a que a crise de 2008 apenas veio dar expressiva visibilidade? Não aprendemos nada ao longo dos últimos dois anos? Estaremos destinados a assistir, ciclicamente, ao simples confronto entre austeridade «benigna» e «maligna», como quem luta pela posse de um remo enquanto o barco se afunda?

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Corridas para o fundo

O resultado da multiplicação das conversas do bloco central sobre sistemas fiscais “competitivos” e sobre prendas de Natal às empresas está à vista neste gráfico da taxação das empresas na Europa retirado de um estudo anual da Comissão Europeia sobre tendências fiscais. E ainda temos mais alguns factos sobre a taxação nacional nesta área que convém não ignorar. O problema estrutural foi e é criado, como temos aqui insistido, por um processo de integração feito para gerar corridas para o fundo, jogos de soma negativa, conduzidas por Estados desprovidos de instrumentos decentes e eficazes de política de desenvolvimento. Os resultados estão à vista. O que explica que as empresas não invistam é o excesso de capacidade produtiva por utilizar: falta de procura, qual destas três palavras não entenderam? Neste contexto, a consequência mais saliente desta prenda será a perda de receitas fiscais. De resto, poucas coisas ilustram melhor a hegemonia neoliberal: a capacidade de fixar um quadro estrutural e intelectual onde demasiadas forças de oposição só respondem às perguntas colocadas pelo poder...

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Confiança

Tribunal Constitucional chumba por unanimidade convergência das pensões. A questão estrutural não desaparece: quem manda aqui? Conjunturalmente, o Tribunal dá mais um contributo para a economia, atenuando a austeridade. Mesmo que o governo vá para um suposto plano B, é preciso relembrar que não há nada mais recessivo do que cortes na despesa.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Suicídio Deflacionário

A estratégia deflacionária seguida em toda a zona euro, com efeitos mais acentuados nos países que estão a ser alvo de programas de ajustamento, empurra as dívidas públicas para níveis ainda mais insustentáveis. A taxa de inflação anual em Novembro na zona euro foi 0,9% e a mensal foi mesmo negativa (-0,1%). A Grécia e o Chipre tiveram taxas anuais negativas de -2,9% e -0,8% respetivamente e Portugal (0,1%), Irlanda (0,3%) e Espanha (0,3%) tiveram taxas próximas de 0%. Não só alguns países da zona euro estão já em situação de deflação, como os restantes apresentam taxas de inflação muito reduzidas. Uma inflação muito reduzida, conjugada com um crescimento real do PIB medíocre, tem consequências muito negativas na sustentabilidade da dívida pública. É o que acontece com Portugal atualmente.

Perante este quadro, e para garantir a sustentabilidade da dívida pública, a troika exige a Portugal saldos primários cada vez mais elevados que permitam cobrir o diferencial positivo da taxa de juro implícita na dívida e a taxa de crescimento do PIB nominal. O problema é que a receita da troika para saldos primários crescentemente positivos é mais austeridade e, como consequência desta, menos crescimento e menos inflação.

Este ciclo vicioso só agrava a já evidente trajetória insustentável da nossa dívida pública. Outra forma de vermos esta questão é analisando o efeito que a queda da inflação tem nos juros da dívida pública: apesar da taxa de juro nominal a dez anos ter baixado de 8,6% em Setembro de 2012 para perto dos 6% em Novembro de 2013, a taxa de juro real a dez anos manteve-se sensivelmente igual - aumentou ligeiramente de 5,3% para 5,6%. Isto aconteceu desta forma porque em Setembro de 2012 a taxa de inflação (média dos doze meses, INE) era de 3,3% e em Novembro de 2013 já tinha caído para 0,4%. Por outras palavras, a redução da inflação anulou os ganhos obtidos com a redução da taxa de juro nominal.

A dívida pública portuguesa entrou numa trajetória claramente insustentável e quanto mais depressa percebermos isso, mais depressa se perceberá a necessidade de a reestruturarmos.

(crónica publicada às quartas-feiras no jornal i)

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Pela Dignidade, pela Democracia e pelo Desenvolvimento: Defender Portugal

"É tempo de defender Portugal de resgates que o empobrecem, desesperam e põem em perigo a liberdade e a democracia. É tempo de recusar a submissão passiva de Portugal a uma União Europeia transformada em troika permanente. Precisamos duma alternativa política que dê força e sentido prático à resistência e ao protesto. Os portugueses precisam de uma maioria para governar em nome da dignidade, da democracia e do desenvolvimento. É tempo de juntar forças."

Manifesto 3D, lançado hoje, pode ser lido na íntegra e subscrito aqui.

Leitura obrigatória


O impasse em que nos encontramos, descrito por um dos políticos franceses que mais cedo percebeu o drama do euro:

A Alemanha aparece como a garantia, de última instância, de um sistema – a moeda única – que ela aceitou em 1989-1991 sem, no fundo, o ter verdadeiramente desejado: se dependesse dela, o calendário da moeda única teria sido adiado indefinidamente. Na verdade, ela tinha fixado as regras dessa moeda única, as suas, mas a aceitação de um calendário para a sua entrada em vigor – 1997 ou, o mais tardar, 1999 – foi o preço que teve de pagar em 1990 pela sua reunificação. Os franceses estão mal colocados para dela se queixarem.
[…]
Ulrich Beck [A Europa Alemã] escreve que "a impossibilidade de controlar as coisas foi intencionalmente criada e pretendida no plano político". Com efeito, tal era a "aposta Pascaliana" de François Mitterrand, aceite por Helmut Kohl, sobre um "para além das nações". O fracasso desta aposta era previsível. Ulrich Beck imagina que teria sido possível nessa altura colmatar as deficiências estruturais da moeda única se tivessem sido criadas, em simultâneo, "as instituições cuja vocação teria sido a de supervisionar e coordenar eficazmente a política económica e financeira dos países europeus", em suma, se a Europa se tivesse tornado desde o início uma entidade federal, quer dizer uma nação. Como é evidente, a Europa de 1991 não tinha chegado a esse ponto, apesar dos belos discursos. Há um sinal que não engana: o Tratado de Maastricht proíbe qualquer financiamento do Banco Central Europeu aos Estados (…) e não prevê qualquer solidariedade financeira entre estes. O verdadeiro redactor do tratado, Karl-Otto Pöhl, e o chanceler Kohl, tinham percebido o que vinha aí: entenderam precaver-se desde logo contra a tentação de alguns Estados se comportarem como “passageiros clandestinos”, ou seja, de se endividarem sem limites, obrigando as "assinaturas" mais seguras a assumir o peso das suas dívidas, a começar, com certeza, pela Alemanha.
[…]
 E aqui chegámos: porque a sua assinatura é de longe a mais segura, a Alemanha está hoje em posição de decidir pelos outros todos. No entanto, ela não pode aceitar o encargo das enormes transferências que implicaria uma escolha verdadeiramente federal. Como todos os "federalistas fanáticos", Ulrich Beck não quer ver isto.

(Minha tradução de parte das páginas 248-9)

O segundo resgate vem a caminho - e a culpa não é do Tribunal Constitucional

As declarações de ontem de Mário Draghi e daqueles que nos (des)governam fez-me lembrar um comunicado (com o mesmo título deste post) emitido pelo Congresso Democrático das Alternativas há cerca de três meses. Vale a pena ler e reler:

"O governo tem vindo a afirmar que as decisões do Tribunal Constitucional (TC) estão a tornar cada vez mais provável a necessidade de um segundo resgate. Ao insistir nesta ideia, o governo tem três objectivos: 1) Desresponsabilizar-se pela crise económica e social que atravessa o país; 2) Justificar as privatizações e os cortes nos serviços públicos e nas prestações sociais que se prepara para anunciar com a proposta de Orçamento de Estado (OE) para o próximo ano; e 3) Ir instalando na sociedade portuguesa a ideia de inevitabilidade da continuação da actual estratégia de governação para lá de 2014.

 Face a isto, é fundamental compreender e afirmar com clareza que:

O Estado português não conseguirá, tão cedo, financiar-se nos mercados internacionais - mas isto não decorre das decisões do TC


Portugal tem uma dívida pública superior a 130% do PIB, um endividamento externo historicamente elevado, uma estrutura económica débil e um sector financeiro enfraquecido. O país não dispõe de instrumentos de política económica para lidar com estes problemas e quem deles dispõe – ou seja, as instituições europeias - recusa-se a pô-los em prática, preferindo usar o seu poder de chantagem para impor aos países periféricos e, por arrasto, ao conjunto da UE, um modelo de sociedade que não foi sufragado nas urnas.

Nestas condições, a dívida portuguesa é impagável e é isso que explica a persistência das elevadas taxas de juro dos títulos da dívida portuguesa. É por essa razão que o "regresso aos mercados" nunca passou de uma ilusão, usada pelo governo para justificar os sacrifícios até aqui impostos ao país e aos portugueses.

A estratégia do governo e da troika não resolve – antes agrava – os bloqueios que economia portuguesa enfrenta

Segundo o governo, a destruição dos serviços públicos e a desregulação das relações de trabalho são o caminho para sair da crise. No entanto, após três anos de austeridade tornou-se ainda mais claro que esta estratégia não resolve, antes agrava, os bloqueios que a economia portuguesa enfrenta – desde logo, um endividamento insustentável e uma estrutura produtiva débil. Se esta trajectória não for interrompida, Portugal terá uma sociedade ainda mais desigual e entregue às lógicas de mercado. Esse será o único "sucesso" do "programa de ajustamento" do governo e da troika.

As alternativas existem e são urgentes

O caminho da devastação social e económica não se inverterá enquanto não se impuser uma renegociação da dívida pública portuguesa que seja consentânea com uma política de relançamento do emprego, de valorização do trabalho e de restabelecimento dos direitos que asseguram uma sociedade decente. Os portugueses e portuguesas que não se revêem no actual rumo têm de continuar a reunir forças para resistir à estratégia de retrocesso social e para construir as condições para uma alternativa de governação que faça frente à chantagem e devolva ao país um sentido de esperança no futuro."


segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Círculo vicioso


O que têm em comum uma proposta de reforma do IRC bem desenhada e calibrada, como agora se diz, para servir os grandes grupos económicos, a Associação de Empresas de Segurança, que agora pretende ir ao pote das prisões abertas à iniciativa dita privada, ou as últimas novidades da rede social de Relvas, Passos, Branco, Branquinho e restante tropa-fandaga empreendedora? São outros tantos sintomas do que acontece à autonomia e autoridade do Estado democrático no tempo em que uma incensada lógica dos negócios está na condução da política e da fragilizada esfera pública. Reparem como este processo se auto-alimenta: o Estado é declarado incapaz de fazer o que quer que seja, a não ser criar condições supostamente boas paras os negócios, seja por via fiscal, seja por via de engenharias que substituem o serviço público e a sua ética pela lógica do lucro sem limites; a colonização neoliberal gera toda as predações e logo vêm os idiotas úteis dizer que a culpa disto tudo é do Estado que não sai da economia, o que por definição não pode ocorrer, e que os mercados, termo vaporoso destinado a ocultar os poderes capitalistas, fariam bem melhor; mais pretextos para novas e mais radicais rondas de privatizações, parcerias, concessões e outras predações. E assim sucessivamente. Um dos círculos viciosos mais salientes do neoliberalismo realmente existente fica claro, que isto está tudo ligado.

domingo, 15 de dezembro de 2013

Um livro para este tempo

O direito à desvalorização das moedas nacionais não é senão uma expressão institucional do respeito pelas nações, representadas através dos seus Estados, enquanto comunidade económicas de vida e de destino singulares (...) [C]onstitui uma espinha cravada na garganta do totalitarismo de um mercado único (...) Um sistema internacional que permite a desvalorização (...) tolera a diversidade e permite uma coexistência que preserva a autonomia, com uma coordenação cautelosa nas margens (...) Sendo assim a abolição do euro na sua forma atual equivaleria à abolição do padrão-ouro.

Excertos do livro de Wolfgang Streeck, sociólogo e director do Instituto Max Planck para o Estudo das Sociedades de Colónia. Acabei agora a recensão para uma revista. Trata-se de uma original história racionalizada do capitalismo recente e das suas crescentes tendências pós-democráticas, assinalando um engajamento de uma certa sociologia com a economia política, que é demasiado importante para ser deixada apenas a economistas. Parte central do drama passa-se na Europa, claro.

sábado, 14 de dezembro de 2013

Isto tem sido um regabofe

Estes dois ilustrativos gráficos fazem parte da apresentação do Ricardo Paes Mamede no debate do ISCTE que o Nuno Serra divulgou no post abaixo. Isto tem sido um regabofe, como se pode ver pela estonteante performance da procura interna nacional, numa perspectiva comparada, até à crise internacional gerada pela financeirização. Fomos quase alemães. Aqui reside o erro central da política em curso, na hipótese benigna de que o diagnóstico da bebedeira de consumo e de investimento era sério. Entretanto, graças à austeridade, a procura interna vai cair cerca de 16% em três anos (2011, 2012 e 2013), a grande obra da austeridade e o emprego, segundo o Banco que não é de Portugal, terá caído 8%, entre 2011 e 2015, no seu cenário muito optimista de recuperação lenta. É esta a nossa vida neste quadro estrutural: estagnação, quedas violentas, recuperações lentas e insuficientes rumo à estagnação.

Entretanto, e de forma só aparentemente paradoxal, o endividamento externo nunca mais parou de crescer desde a segunda metade dos anos noventa. Tratou-se do resultado da integração dependente e disfuncional, associada à caminhada para o, e à entrada no, euro, num contexto de liberalização financeira e comercial e de correspondente perda de competitividade. No primeiro capítulo do relatório, em versão preliminar, do observatório sobre crises e alternativas procuramos dar alguns contributos, portadores de pistas novas, para a compreensão deste nosso triste destino, para lá da narrativa moralista destinada a ocultar o papel do euro e da finança de mercado e a transferir os custos do ajustamento para os mesmos de sempre.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Hoje

No Auditório B204, do Edifício II do ISCTE-IUL, realiza-se o debate promovido pela Escola de Sociologia e Políticas Públicas e pela Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida (IAC) sobre «A Crise da Dívida Soberana: Natureza, Alternativas e Consequências».

Participam na discussão Vitor Bento (Economista, Professor da UNL, Presidente do SIBS e Conselheiro de Estado), Paulo Trigo Pereira (Economista e Professor Catedrático do ISEG-UTL), Ricardo Paes Mamede (Economista e Professor Auxiliar do ISCTE-IUL) e Eugénia Pires (Economista e membro da Direcção da IAC). O debate será moderado por André Freire (ISCTE-IUL) e Isabel Castro (IAC e ex-deputada do PEV).

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Ainda não chegámos ao fim da história


Em artigo no "Público" (Derreteu-se o chocolate, 4 Dez.), Luís Aguiar-Conraria (LAC) lançou no debate público sobre pensões uma metáfora sobre o nosso sistema de segurança social. Assim, imaginemos uma fila de crianças (a metáfora das sucessivas gerações) em que cada uma dá um chocolate à seguinte. Ocorrendo crescimento demográfico, as gerações mais velhas podem vir a receber mais do que contribuíram. "E mesmo que a população não aumente em número, a verdade é que, se houver crescimento económico, o resultado será o mesmo." Porém, com o envelhecimento demográfico, "se cada um contribuir com um chocolate quando novo, quando velho vai receber menos do que um chocolate. Um péssimo negócio, mais valia guardar o chocolate no frigorífico." Percebe-se aqui a preferência política de LAC pelo modelo individualista de entrega das contribuições ao sistema financeiro. Para além da escolha ideológica neoliberal que está implícita no modelo de capitalização, por oposição a um modelo de solidariedade laboral que mantém todas as suas virtualidades, num outro texto (Um bolo muito apetitoso) alertei para as perdas financeiras destes fundos de pensões na sequência da crise de 2008. É que o tal frigorífico, às vezes, aquece e derrete irreversivelmente o chocolate que os incautos lá guardaram. Esse modelo está agora em recuo ou a ser resgatado pelos Estados, sendo a Polónia o caso mais recente.

Para além da opção ideológica pelo neoliberalismo, o raciocínio de LAC assume também dois pressupostos problemáticos. Quanto ao primeiro, o autor assume a importância do crescimento económico para o equilíbrio das contas da segurança social, o que está certo. Porém, ao referir o envelhecimento demográfico, não só o toma como uma variável exógena (errado), como ignora o contributo do crescimento económico para a resolução desse problema. À Medina Carreira, insiste no rácio dos idosos por activo, mas omite o crescimento da produtividade. Recorrendo a um mínimo de aritmética, é fácil compreender que o peso das pensões no produto da economia é uma fracção definida nos seguintes termos: no numerador, a pensão média multiplica o rácio de dependência de idosos; no denominador, temos a produtividade média dos activos. Assim, o crescimento da produtividade fará aumentar o bolo a repartir, o que pode ser suficiente para neutralizar o aumento do rácio de dependência dos idosos. Aliás, crescendo a produtividade mais do que este rácio, até permite aumentar o valor médio das pensões sem que aumente o seu peso na economia. Entre outros, ler Nicholas Barr, "Economics of the Welfare State", capítulo 9. À semelhança de Medina Carreira, falta a LAC um conhecimento mínimo para falar de pensões.

O segundo pressuposto deriva de uma visão malthusiana do nosso futuro: "O declínio demográfico e o declínio económico fazem com que haja cada vez menos pessoas com capacidade para contribuir para o sistema com o seu chocolate." No fim de contas, pressupõe que o país vai permanecer longos anos em austeridade, quer dizer, na zona euro. Se assim fosse, Portugal continuaria o seu declínio, arrastado pela conhecida dinâmica de polarização em que as regiões mais fortes, económica e politicamente, sugam as mais fracas, como aconteceu ao interior de Portugal ou aos estados mais pobres nos países federais. Acontece que a história das "desvalorizações internas" realizadas na Europa entre as duas grandes guerras, no quadro do padrão--ouro então vigente, contém um ensinamento da maior actualidade que LAC ignora: um sistema monetário socioeconomicamente insustentável também é politicamente insustentável. Por isso, mais cedo do que tarde libertar-nos-emos das algemas do euro e recuperaremos o crescimento, dando início a uma nova etapa da nossa história. Estou certo de que dela fará parte um sistema de segurança social generoso. Ainda não chegámos ao fim da história.

(O meu artigo no jornal i)

As verdadeiras gorduras da Educação

Este post é um pouco extenso. Por isso, para quem não tenha a paciência de o ler na íntegra, o gráfico seguinte ilustra a principal conclusão a que se procura chegar: uma restrição dos «contratos de associação» (celebrados entre o Ministério da Educação e escolas do ensino particular e cooperativo) às situações de efectiva inexistência local de oferta pública no ensino básico e secundário (ou aos casos em que a oferta existente tem uma taxa de ocupação de 100%), teria permitido, entre 2011 e 2014, uma poupança acumulada de cerca de 328 milhões de euros.

Para se ter uma noção do que esse montante representa, basta referir que o mesmo seria mais que suficiente para evitar os cortes acumulados, no período em causa, em domínios da Acção Social Escolar (13M€), na Educação e Formação de Adultos (20M€), na Educação Especial (30M€), nas Actividades de Enriquecimento Curricular (46M€) e nos Cursos CEF, PIEF e de Ensino Profissional Público (141M€). E ainda sobrariam cerca de 78 milhões de euros para substituir outros cortes infligidos na escola pública (como os que provocaram os despedimentos, em massa, de professores contratados nos últimos dois anos).


Esta estimativa parte das conclusões de um estudo de reorganização da rede do ensino particular e cooperativo que apontava, em 2010, para uma redução muito modesta dos apoios estatais no âmbito dos contratos de associação. Mas mesmo a poupança que se infere desse estudo (13 milhões de euros em 2011), bastaria para impedir os cortes acumulados na Acção Social Escolar entre 2011 e 2014. Por isso, quando vos disserem que não há dinheiro para a escola pública, lembrem-se destes números e do que eles nos dizem sobre a transfega imoral de verbas do Orçamento de Estado para o ensino privado, a expensas da degradação deliberada do sistema público de educação.

*****
1. Em 2010, o Ministério da Educação encomendou a uma equipa de investigadores do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Coimbra um estudo sobre a «Reorganização da Rede do Ensino Particular e Cooperativo com Contrato de Associação», tendo em vista avaliar os casos em que a existência de capacidade de oferta local, das escolas públicas do ensino básico e secundário, permitiria suprimir ou diminuir os apoios estatais a estabelecimentos de ensino particular e cooperativo.
O relatório final revelar-se-ia, contudo, minimalista nas suas propostas. Dos 91 contratos de associação analisados (num total de 93), apenas se recomenda a cessação de 4, optando-se em regra por ligeiros cortes no número de turmas apoiadas em cada escola. De facto, mesmo em casos obscenos como o de Coimbra, não é proposta a denúncia de nenhum contrato, sugerindo-se somente a supressão de apoios a 33 das 115 turmas contratualizadas em 2010. Por outro lado, e porventura porque o caderno de encargos assim o estipulou, o estudo desconsidera quaisquer soluções de expansão local da oferta pública (através da construção de novas escolas ou do aumento do número de turmas nas escolas existentes). Isto é, soluções que possibilitariam reduzir ainda mais o número de contratos de associação em vigor.

2. Ainda assim, é proposto um corte global de 214 turmas (das 2.130 contratualizadas em 2010, segundo o estudo), que correspondem a uma redução de cerca de 5 mil alunos (num universo de 53 mil alunos abrangidos). Em termos financeiros, considerando o custo médio por aluno (cerca de 4.500€), estamos a falar de uma poupança imediata de cerca de 22 milhões de euros (que corresponde sensivelmente a 9% do financiamento concedido a colégios e escolas privadas com contratos de associação).
Porém, uma interpretação mais fiel ao «espírito da lei», isto é, o princípio de que estes contratos apenas deveriam ter lugar nos casos de ausência, ou de manifesta saturação, da oferta pública de educação ao nível do ensino básico e secundário (numa lógica de estrito complemento dessa oferta), permite estimar que, em relação a 2010, se deveriam manter contratos com apenas 31 escolas, que abrangeriam somente cerca de 24 mil alunos. O que, em termos financeiros, representaria uma poupança, nesse ano, de aproximadamente 130 milhões de euros (que comparam com os 235 milhões concedidos ao universo de escolas considerado).


3. Tudo leva a crer que a redução gradual do orçamento atribuído a privados através de contratos de associação, ao longo dos últimos anos (e que não esgotam os apoios do Estado ao ensino particular e cooperativo), pouco ou nada deve à aplicação das recomendações do referido estudo, antes reflectindo a diminuição do número de alunos a frequentar o ensino privado (em resultado do impacto, sobre muitas famílias, das políticas de austeridade) e a diminuição do valor médio de financiamento por aluno (que se estima seja de cerca de 3.300€ em 2014).
A estes factores, acresce a necessidade de deitar alguma areia para os olhos da Troika, simulando suficientemente o cumprimento do Memorando de Entendimento nesta matéria. Por outro lado, constata-se que ainda hoje se mantêm activos os apoios a pelo menos dois (Colégio da Imaculada Conceição e Colégio São João de Brito) dos quatro estabelecimentos de ensino privado cujos contratos o estudo da reorganização recomendava fossem cessados (como mostra a mais recente lista de apoios publicada pelo próprio Ministério da Educação). E se dúvidas restassem sobre o entendimento do ministério nesta matéria, o próprio Nuno Crato se encarregou recentemente de as dissipar, ao anunciar que a celebração de contratos de associação vai deixar de estar dependente da inexistência ou insuficiência de oferta pública, ao nível do ensino básico e secundário.

4. Anuncia-se portanto, porventura a partir do momento em que as obrigações subjacentes ao actual Memorando de Entendimento caduquem (Junho de 2014), uma nova vaga, ainda mais absurda, de contratos de associação firmados com colégios e escolas do ensino particular e cooperativo. Ao mesmo tempo que serão certamente anunciados mais cortes orçamentais na escola pública, o encerramento de estabelecimentos, mais despedimentos de professores e o agravamento do processo de deterioração induzida nas condições de ensino e aprendizagem e na qualidade do sistema público de educação. Quando justamente, desde 2011, se deveria ter começado a fechar, de forma implacável, a torneira das rendas gordurosas do ensino privado, que permitiria ter obtido poupanças acumuladas (só em contratos de associação) de cerca de 328 milhões de euros.


Sublinhe-se que neste processo não está apenas em causa continuar a financiar, com o dinheiro de todos os contribuintes, uma educação de luxo que é, em regra, só para alguns, os «escolhidos» entre famílias de elevado estatuto sócio-económico (e em prejuízo do financiamento e da qualidade da escola pública). O que está igualmente em causa é a transformação profunda do sistema de ensino, que assim trilha a acentua os passos de uma crescente dualização, tornando-se, ao arrepio de uma escola que se quer democrática e inclusiva, fonte de reprodução das desigualdades sociais. A experiência sueca está aí para o demonstrar.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O modelo

Passos Coelho garantiu ontem, em entrevista ao Negócios, que “o nosso objectivo não é criar um modelo assente em salários baixos”. Como temos aqui insistido, o essencial da política do governo da troika visa a redução, mais ou menos dissimulada, dos salários directos e indirectos, visa desvalorizar o trabalho. Por exemplo, já ouviram falar da Lei 23/2012? O modelo é agora muito mais claro.

Da estrutura e da conjuntura

O governo tem-se vangloriado muito da subida do peso das exportações no PIB, como se tratasse de uma espécie de prova definitiva da virtuosa transformação estrutural que a economia está a sofrer. Infelizmente, este aumento do peso das exportações no PIB em relação ao passado imediatamente pré-crise tem uma explicação muito simples, e que não é particularmente virtuosa: a queda do PIB (…) Para além do mais, como os dados do INE têm mostrado, quando o país volta a crescer (como tem acontecido em cadeia em dois trimestres em 2013), a procura externa líquida ou reduz-se fortemente (como no segundo trimestre), ou passa mesmo a ser negativa (como no terceiro trimestre). O Governo veio congratular-se com dados de um crescimento ténue que, na prática, repete o padrão do passado. Não há aqui nada que valide a sua estratégia económica. Quanto aos dados do BdP divulgados hoje, e que estimam uma recessão menor para 2013 do que anteriormente prevista, o governo também não tem qualquer motivo para afirmar que a sua estratégia está, finalmente, a dar resultados: o BdP estima que a economia caia 1,5% e não 1,6% porque, resumindo, o consumo público vai cair menos do que era estimado no Boletim de Outono (-1,5% e não -2%), e o consumo privado (induzido, digo eu, pela não tão intensa queda de rendimentos que resulta do abrandamento da redução do consumo público) também cai menos (-2 e não -2,2%). Basicamente, a recessão será menor porque a austeridade será menor (do que o previsto), cortesia do acórdão do Tribunal Constitucional de abril passado que repôs salários e pensões.

Hugo Mendes dá úteis notícias estruturais e conjunturais sobre a nossa economia.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Das crises e das alternativas


Amanhã, entre a Gulbenkian e a Culturgest, a tarde será rica em debates socioeconómicos e políticos por Lisboa, com duas iniciativas autónomas, mas que, creio, convergem nos temas e nas preocupações. Às 14h30m, na Gulbenkian, é apresentada e discutida uma versão preliminar do relatório do Observatório sobre Crises e Alternativas do CES. Às 18h, Christophe Ramaux estará na Culturgest a discutir a crise europeia e o futuro do euro. 


Ramaux é professor de economia da Sorbonne e autor deste excelente livro sobre o Estado social, como meio “para sair do caos neoliberal”, na linha da escola francesa da regulação, essa síntese de economia política institucionalista e historicista, de Marx e Keynes. Ramaux identifica aí quatro pilares que caracterizariam o Estado social enquanto expressão sistémica, mas subteorizada nas ciências sociais, do ideal democrático de justiça social em múltiplas esferas: protecção social através da transferência de rendimentos sob a forma de prestações sociais, regulação das relações laborais através do direito do trabalho e da negociação colectiva, serviços públicos universais e gratuitos no acesso e políticas económicas centradas em objectivos sociais, nomeadamente no pleno emprego. O sucesso neoliberal na erosão e derrube destes pilares foi desigual nos países europeus, tendo sido no campo da política económica que a contra-revolução foi mais longe. É claro que os pilares estão ligados entre si, como de resto estamos a ver na época da austeridade permanente inscrita nas regras europeias. O Estado social enquanto sistema é o alvo da finança. Daí que não surpreenda que, embora hesitante na questão do euro, sendo que o seu diagnóstico das disfunções europeias é razoável, Ramaux acabe por alinhar com aqueles que consideram que o Estado-nação e a soberania democrática foram, são e serão elementos centrais da construção, defesa e ampliação do Estado social, peça-chave da teoria e prática socialistas. De resto, e se o debate for, como tem sido em França, entre globalistas e soberanistas na economia política, para simplificar um pouco, mas não muito, os termos de um debate em curso, a propósito, por exemplo, da necessária desglobalização, Ramaux está na margem certa...

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

A política dos grandes negócios

Alexandre Soares dos Santos é um especialista em ética e planeamento fiscais holandeses e um dos homens mais ricos de Portugal. Um patriota, em suma, com todo o espaço para exibir o seu consistente pensamento sobre a nação e a sua unidade nos jornais. Em entrevista ao Negócios de hoje mostra-nos que o espírito político das cabeças dos grandes grupos económicos, esteios maiores do anterior regime, está bem vivo entre nós, ainda que com adaptações. O 25 de Abril, já se sabe, foi uma desgraça, ai aqueles três D’s: Angola ainda podia ser nossa, mas em estilo confederal, os grupos económicos monopolistas tinham poder e havia ordem, no fundo. Não estou a brincar, esta gente sente-se com tanto poder que já não tem de disfarçar.

Mas bom, o que lá vai, lá vai. Agora não se trata de voltar à ditadura, o grande capital ainda não precisa desta fórmula política, mas sim de defender uma “democracia musculada”, “porque não podemos discutir muito”, de recorte presidencialista e com senado e tudo, tendo por base um acordo a “dez anos” entre PS e PSD para destruir o que resta da economia política do 25 de Abril, mudando a constituição, claro. Só lido. A verdade é esta gente tem de se expandir para a área da saúde, um dos grandes negócios da austeridade, por exemplo: “é assim, é assim, toca para a frente” é o mote político de Soares dos Santos. Tudo de preferência bem limitado por um quadro europeu federal, o seu horizonte, que garanta que o essencial da política fique bem entregue a uma escala blindada face a pressões soberanas democráticas, em linha com o horizonte de valorização das fracções mais extrovertidas do capital.

Do passado ao futuro, o discurso é consistente, que esta gente não brinca. Fica, uma vez mais, muito claro que a política actual é baseada numa aliança de forças sociais capitalistas e reacionárias, nacionais e estrangeiras e que a sua declinação antipatriótica, digamos, não é defeito, mas sim feitio estrutural.

Não são tolos estes romanos


“Um debate realizado no dia 7 de Dezembro em Roma, “L’Euro contro l’Europa?” (O Euro contra a Europa?), promovido pelas fundações Nuova Italia e A/Simmetrie, reuniu na antiga bolsa de Roma trezentos ouvintes. Neste debate intervieram os Prof. Alberto Bagnai (Universidade de Percara), Diego Fusaro, filósofo marxista e investigador da Universidade de Milão, Brigitte Granville (Universidade Queen Mary, Londres), e este vosso humilde servo [Jacques Sapir] na parte científica. O antigo presidente da câmara de Roma, Gianni Alemmano, que também foi ministro da agricultura, e Stephano Fassina, responsável pelos estudos económicos do Partido Democrata (partido do centro-esquerda, maioritário no Parlamento), intervieram no debate político.

Alberto Bagnai, pela sua parte, insistiu nas incoerências que marcam a constituição e o funcionamento da zona euro. Esta foi criada, segundo os que a projectaram, para proteger a UE das desordens económicas mundiais. Ora, confrontada com uma desordem (a crise económica e o seu aspecto mais evidente, a crise da dívida soberana) a zona euro tratou imediatamente de destruir o grande mercado que pretendeu criar. De facto, é mesmo à destruição desse mercado a que assistimos através das políticas ditas de “desvalorização interna” cujo resultado imediato é tornar os países que a praticam ainda mais dependentes do mercado exterior à zona euro. Na realidade, podemos considerar que a zona euro, e em termos mais gerais a UE, foram o principal vector da globalização da Europa. Foi em nome do euro que os diversos obstáculos à unificação do mercado monetário mundial foram levantados. Foi graças à zona euro que os bancos europeus puderam disseminar na UE os activos “tóxicos” americanos. Percebe-se o alcance e a profundidade da mentira quando se vê que o peso do euro, como moeda de reserva à escala mundial, na melhor das hipóteses, pouco ultrapassou a percentagem das antigas moedas nesta zona. Acresce que o euro acaba de passar a terceira moeda usada em transacções financeiras, ficando agora o Yuan em segundo lugar. Gianni Alemanno, com base na sua experiência em negociações do comércio internacional, insistiu no facto de a UE não ser, de todo, um factor de resistência à pressão de outros países (EUA, China).
 [...]
 Até na Itália se sente que o debate progrediu rapidamente nos últimos meses. O facto de esta reunião ter sido possível, incluindo participantes à direita e à esquerda, o facto de as posições pró-euro terem ficado relativamente isoladas, são sinais que não enganam. A força crescente da contestação ao euro não é um fenómeno francês, é um fenómeno internacional que é confirmado pelo número crescente de economistas que se juntam ao movimento.”

(Ver aqui a totalidade do relato por Jacques Sapir)

domingo, 8 de dezembro de 2013

Com propriedade

Neste fim de ano, o governo acelerou o programa de reconfiguração do Estado, uma vez mais com intuitos puramente ideológicos e excedendo as próprias metas definidas pela ultraliberal Troika. É obra. Com a privatização dos CTT – Correios de Portugal e com o processo para liquidar a empresa pública Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC), seguida da subconcessão ao grupo privado Martifer, prosseguem as engenharias neoliberais que usam o Estado para transferir para o privado negócios muito lucrativos (ou que passarão a sê-lo), a golpes de reduções salariais, despedimentos, precariedade, falta de segurança, degradação da qualidade de serviços prestados e bens produzidos.

No seu artigo mensal, Sandra Monteiro vem em defesa da propriedade pública, contra a propriedade única, em defesa de uma economia plural. Sem propriedade pública de sectores estratégicos, a subordinação do poder económico ao poder político democrático, que a Constituição proclama, é uma impossibilidade. Não é, de resto, por acaso que a seguir a este ponto constitucional vem o da coexistência de vários regimes de propriedade. Pena é que toda a direita e uma parte significativa da esquerda tenham esquecido esta intuição democrática fundamental. Estamos a pagar um preço elevado por isso. É por estas e por outras que um futuro governo patriótico terá de ter a renacionalização de várias empresas na sua agenda. Nada é irreversível neste campo.

Entretanto, no Le Monde diplomatique - edição portuguesa deste mês, no âmbito de um dossiê sobre a democracia ou a dívida, destaco dois artigos de dois economistas e políticos, sem separações artificiais, admiráveis: Octávio Teixeira escreve sobre a necessidade de libertar o país da armadilha da dívida e o Presidente do Equador, Rafael Correa, sobre como a Europa está a repetir, no campo da dívida, os erros que esmagaram países como o Equador antes do início da sua libertação nacional e democrática.

sábado, 7 de dezembro de 2013

O mesmo político

O Cavaco Silva que em 1987 deu instruções para que Portugal se opusesse a uma resolução da ONU em solidariedade com a luta do ANC e dos sul-africanos (que incluía um apelo para a libertação incondicional de Nelson Mandela), e que nos anos noventa desencorajava a resistência à ocupação (e a luta pelo direito à autodeterminação) de Timor Leste - é o mesmo político que, desde 2009, tem permitido o aprofundar sem fim de um processo suicida de empobrecimento social, de destruição do tecido produtivo e de degradação da democracia portuguesa. Se dependesse só dele, ainda hoje viveríamos, muito provavelmente, em pleno Estado Novo.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Nós não

Economia da Islândia cresce 6,1% no terceiro trimestre. Não se compara com o nosso milagre económico. É por esta e por outras que, a fazer fé na nossa casta muito viajada e que gosta de moeda forte, nós por aqui não precisamos de coisas anacrónicas como controlos de capitais, reestruturações das dívidas ou desvalorizações cambiais. Isso é para países atrasados e que ainda não aprenderam que vivemos num mundo todo globalizado e pós-nacional, um mundo onde a soberania é coisa do passado e a democracia também.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Mandela (1918-2013)

Eu não sou nem mais virtuoso, nem mais abnegado do que qualquer outra pessoa, mas descobri que não conseguia nem sequer desfrutar das liberdades mais mesquinhas e limitadas que me eram permitidas, sabendo que o meu povo não era livre.

Nelson Mandela, O Longo Caminho para a Liberdade, 1995, p. 690.

Debater sempre

Tomando como excelente pretexto o lançamento do nº4 da Vírus, na sua versão em papel, realiza-se amanhã, no espaço mais agradável da margem certa do Mondego, um debate sobre o tema do dossiê desta revista de política e ideias, a Europa, ou seja, realiza-se amanhã um debate sobre Portugal.

Pela minha parte, discutirei os artigos tomando como ponto de partida  o guião, de que fui co-autor, sobre as Europeias, onde defendemos uma estratégia política em torno da desobediência às imposições europeias, da reestruturação da dívida e da saída do euro. Procurarei então assinalar as diferenças entre insistir num suposto programa europeísta em Portugal e definir e afirmar um programa de defesa dos interesses e aspirações do povo português na Europa, trabalhando internacionalmente para que outras forças de esquerda façam o mesmo a partir dos seus países. De seguida, tentarei explorar o sentido e implicações profundas da ideia, que faz o seu caminho entre as esquerdas, de renegociação da dívida com os credores, com vista à sua redução, recorrendo, se necessário for, a uma moratória do seu pagamento.

Dados estes pontos de partida, aos quais juntarei uma análise aos sentidos, ou falta deles, do conceito de europeísmo, uma exploração da ideia de cadeia imperialista e dos seus elos fracos e uma defesa do patriotismo, como companheiro de caminhada de um internacionalismo que sabe às quantas anda, acho que o debate pode ser animado.

E agora, Nuno Crato & Companhia Lda?


«Os últimos 15 anos ou 20 anos foram marcados pela forma agressiva como um pequeno grupo ideologicamente marcado, mas com privilegiado acesso ao espaço mediático, foi tomando conta do discurso político sobre a educação. A permanente desvalorização do papel público da escola foi suportada por dois conceitos que, diziam os seus proponentes, estavam a condenar à ignorância e ao desconhecimento os nossos jovens: o "eduquês" e o "facilitismo". Os resultados hoje conhecidos do PISA, principalmente ao demonstrarem que a evolução dos alunos portugueses tem vindo a decorrer de forma sustentada e consistente, são um bom momento pra confrontar o que Nuno Crato, Filomena Mónica, José Manuel Fernandes, Fátima Bonifácio e o responsável editorial da Gradiva andaram a anos e anos a fio a propagandear.»

Pedro Sales, As teses sobre o facilitismo eram, elas próprias, facilitistas

«É oficial, Portugal ultrapassou a Suécia e, desta vez, não foi no futebol. Os estudantes portugueses tiveram melhores resultados, que os suecos, a matemática, a leitura e a ciências. (...) Ao longo do relatório, a OCDE não poupa em referências e elogios a Portugal (...) um dos países que mais tem progredido desde que este estudo comparativo tem sido realizado. (...) A Suécia fez há quase 20 anos a reforma educativa que a direita portuguesa gostava de fazer em Portugal – as famílias suecas podem escolher "livremente" entre escolas municipais e escolas independentes, todas elas financiadas pelo Estado. Na realidade, os resultados de 2012 não constituem nenhuma surpresa, a Suécia cai nos estudos PISA desde que estes começaram a ser feitos em 2000.»

Pedro Nuno Santos, Portugal vs. Suécia

«Parece que a direita, a propósito da Suécia, descobriu que as variáveis demográficas e socioeconómicas são importantes para explicar os resultados. Sobre o caso sueco, guardo algumas notas mais sumarentas para o post seguinte. (...) A condição socioeconómica é uma variável explicativa essencial do desempenho dos alunos (e países), quando os resultados são ajustados ao IEESC [Índice de Estatuto Económico, Social e Cultural], os alunos portugueses passam, no domínio da matemática (o IEESC só é aplicado este ano aos resultados da matemática), do 23.º para o 5.º lugar da classificação. Já a Suécia reforça o resultado medíocre que obteve na média geral (não ajustada), afundando-se na cauda da OCDE.»

Hugo Santos Mendes, PISA: os resultados são melhores do que a primeira análise mostra

«A maioria dos professores e especialistas não se coibem de elogiar a reforma [programas e metas curriculares da matemática] feita em 2007 e criticam, veementemente, as alterações que Crato (...) pretende fazer. (...) Não resisto a deixar-vos com um excerto do relatório saído hoje: "Portugal (...) melhorou na atitude, predisposição e confiança dos seus alunos sobre a escola em geral e em relação à matemática em particular, através, por exemplo, da reforma curricular da disciplina, sintonizando-os com os interesses e as competências dos alunos do século XXI". (...) Se o bom senso imperasse, e tendo em conta a inegável progressão de Portugal na área nos últimos anos, o que se exigiria ao ministro Crato seria que tivesse em conta os vários relatórios e pareceres que existem e fizesse marcha atrás, deixando cair os novos programas, não? Reconhecer erros é, dizem, sinal de inteligência... Só se? Hum...»

Shyznogud, PISA e Matemática

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

O relatório PISA de 2015

Começaram hoje a ser divulgados os resultados do Relatório PISA de 2012, que avalia a literacia e o desempenho dos alunos em três domínios-chave: Matemática, Ciências e Leitura. O inquérito é realizado de três em três anos nos 34 países membros da OCDE, tendo em 2012 abrangido ainda outros 31 países de zonas económicas que não fazem parte da organização.

O balanço feito pelos peritos da OCDE, para lá do horizonte mais estreito da comparação entre 2009 e 2012, é uma muito positiva avaliação externa (e independente) dos últimos dez anos de políticas educativas em Portugal. Como assinala o jornal Público, o relatório hoje divulgado recorda que o país estava, em 2003, no que à Matemática diz respeito, abaixo do Luxemburgo, dos Estados Unidos, da República Checa, da França, da Suécia, da Hungria, da Espanha, da Islândia ou da Noruega, para acrescentar que, em 2012, Portugal «alcançou» níveis de resultado idênticos aos observados nestes países. Os ideólogos extremistas do «eduquês» e da narrativa da «década perdida», que ajudaram a instalar o ministro Nuno Crato na 5 de Outubro, fazendo do «privatês» e da mediocridade subdesenvolvimentista a política oficial para a educação, têm que confrontar-se, uma vez mais, com a evidência de alguns destes factos. Mais: a tão aclamada Suécia - exemplo supremo das supostas virtudes do «cheque-ensino», que Nuno Crato se prepara para implementar entre nós - afunda-se novamente na cauda dos rankings da OCDE.

Valerá a pena analisar com detalhe toda a informação contida no relatório hoje divulgado e que volta a assinalar o impacto negativo que o background familiar e social tem nos níveis de desempenho escolar dos alunos portugueses (ver figura). Este poderá ser um dos aspectos que melhor demonstram, no futuro PISA de 2015, os impactos da passagem de Nuno Crato pelo Ministério da Educação. Retenham pois o balanço que este relatório nos permite estabelecer: ele corresponde ao retrato de um ciclo que o ministro, empenhadamente, tem procurado encerrar. Sendo certo, como refere a OCDE, que «os alunos portugueses mostram como em pouco tempo é possível melhorar», oxalá o seja menos que, também em pouco tempo, se possam destruir os avanços alcançados ao longo de mais de uma década.

Mestres

Robert Skidelsky é o principal biógrafo de Keynes e um dos seus principais intérpretes, como se pode ver no livro aqui ao lado. Aconselho, embora com atraso, a sua última crónica – Quatro Falácias da Segunda Grande Depressão –, disponível em péssima tradução portuguesa. Conhecer o pensamento de um dos mestres, a história da economia, é mesmo decisivo para evitar ideias perigosas. Já agora, para quem quiser compreender por que é que o pensamento de Keynes é tão actual quanto heterodoxo, aconselho este artigo: Skidelsky defende  que o conceito de incerteza é a chave para uma revolução intelectual no campo da economia política e da política económica.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Empurrar com a Barriga

A Ministra das Finanças veio anunciar uma nova operação de troca de dívida, com o objetivo de prolongar as maturidades (prazo em que os montantes devem ser pagos aos credores) em três anos. É uma operação semelhante à que ocorreu em 2012, realizada com os mesmos objetivos. Sobre estas operações, há a registar que:

1. Já não há tabu nenhum sobre a restruturação da dívida. É disso que se trata com estas operações.

2. No entanto, estas operações não representam, como já vi escrito em algumas notícias, uma "redução das necessidades de financiamento do Estado Português". Significam simplesmente a deslocação dessas necessidades para o futuro, nomeadamente, para depois do mandato do atual Governo.

3. Esse adiamento tem um preço: tal como aconteceu na operação de 2012, o aumento das maturidades terá como contrapartida um aumento dos juros, ou seja, um AGRAVAMENTO das necessidades de financiamento.

4. Claro que uma extensão das maturidades poderia ser útil (associada a uma redução dos montantes e juros) para criar uma margem de manobra orçamental para políticas de crescimento económico. Mas não é esse, como se sabe, o objetivo do Governo.

5. O objetivo desta estratégia é simplesmente mascarar o desastre que constituiu o programa de ajustamento, à custa da sustentabilidade da dívida no médio prazo. É uma estratégia míope e irresponsável, que visa exclusivamente prolongar a sobrevivência do pior Governo da nossa democracia, atirando os consequências para os vindouros.

sábado, 30 de novembro de 2013

Tempo

Vamos falar do tempo: está frio. Mas quando se fala de frio aparece a questão social que não tem nada de natural: “Um estudo efectuado em 2004 pela Universidade de Dublin conclui que Portugal era um dos países da União Europeia onde se morria mais por falta de condições de isolamento e aquecimento nas casas.” A dificuldade em aquecer a casa é mais um indicador de privação material em que Portugal se destaca. Fala-se pouco destas coisas, que mais não seja porque, a fazer fé na casta, estamos num país onde “as pessoas” viveram acima das suas possibilidades e passaram demasiado tempo ao sol...

Assuntos da troika

Dado que estamos a falar de Bruno Maçães, a avaliação da imprensa grega não me surpreende nada: Secretário de Estado português [dos assuntos europeus] foi à Grécia e saiu de lá como..."o alemão". No fundo, representa todo um governo ao serviço de interesses que não são de cá.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

A espiral segue dentro de semanas


Defendendo na Assembleia da República a proposta de Orçamento para 2014, a Ministra das Finanças afirmou que "a recuperação da autonomia financeira perdida exige um processo de ajustamento que vai além das condições do programa". Para os que ainda suspiram pelo fim do protectorado, a ministra lembra que o ajustamento não decorre apenas dos compromissos com o Memorando, decorre também dos compromissos assumidos com a participação na zona euro e da necessidade de restabelecer a confiança dos mercados financeiros. De facto, quem não questiona a participação de Portugal na zona euro tem de aceitar estes constrangimentos. Mais, tem de aceitar as novas exigências do Tratado Orçamental quanto aos défices e à dívida pública, bem como o escrutínio prévio dos orçamentos dos estados--membros no âmbito do "semestre europeu". Em suma, tem de abdicar da política orçamental como instrumento de estabilização dos ciclos económicos e de promoção do investimento público em ordem ao desenvolvimento. Evidentemente, é sempre possível acreditar que um dia o ordoliberalismo alemão será expurgado dos tratados e da legislação europeia. É sempre possível acreditar que o objectivo do pleno emprego será um dia a prioridade da política económica europeia. É sempre possível acreditar no Pai Natal.

Com o novo pacote de redução de salários e pensões, o Orçamento retoma a espiral recessiva iniciada em 2011. É verdade que, após a terapia de choque inicial, a economia tem dado ténues sinais de poder vir a retomar o crescimento. Daí que, tanto o governo como os ideólogos do regime, se tenham apressado a lembrar que estavam errados os economistas radicais que clamaram contra a espiral recessiva em que o país tinha mergulhado. Para falarem assim, omitem dois elementos essenciais: primeiro, a austeridade teve um compasso de espera em 2013, deixando extinguir os efeitos multiplicadores sobre o produto; segundo, tendo as famílias (no seu conjunto) aumentado muito a poupança, e estando a relação com o resto do mundo em equilíbrio, então forçosamente o sector público terá um défice elevado. Esta última relação é contabilística, não é uma opinião. Infelizmente, a ministra das Finanças não parece conhecer as identidades básicas da macroeconomia porque, no debate parlamentar, se atreveu a relacionar a austeridade com o "equilíbrio efectivo das finanças públicas". Porque esta identidade contabilística é mesmo irrevogável, em 2014 voltaremos a ter um orçamento rectificativo para reconhecer que o défice se recusa a baixar e teremos mais encarniçamento nos cortes. Ou nos impostos, se o Tribunal Constitucional decidir que todos os portugueses, e não apenas os funcionários públicos, têm de pagar pela política errada e cruel de quem nos governa, aqui e em Bruxelas, Berlim e Frankfurt.

O que mais espanta é a forma como altos responsáveis de partidos da esquerda, acompanhados por alguns comentadores da mesma área política, aceitam o quadro teórico que informa os termos do debate orçamental formatado pelo governo e seus ideólogos. É frequente aceitarem a necessidade de reduzir os défices, como se estes não fossem um instrumento de política económica de que um governo de esquerda não pode prescindir. É frequente acusarem o governo de ter falhado as metas do défice por incompetência quando o que está em causa é a impossibilidade de tal acontecer num contexto em que não é possível a desvalorização externa da moeda e a chamada "desvalorização interna" não só é socialmente insustentável como nunca permitirá aos exportadores vender numa moeda forte e competir com países de baixos salários. É triste a pobreza do discurso das oposições, e também é por essa razão que não se vê luz ao fundo do túnel. Razões de sobra para criar uma alternativa.

(O meu artigo no jornal i; fui buscar a figura aqui)

Quem manda aqui?

Durantes meses a fio tivemos de suportar os euro-iludidos com a narrativa das eleições alemãs. Aguentem, depois é que pode começar a mudança na Europa, diziam. Agora que o SPD deu prioridade à frente interna, como se esperava que fizesse, até porque o consenso ordoliberal na Alemanha sobre a política europeia é sólido, qual é a próxima ilusão desmobilizadora com escala europeia? Talvez a mudança seja para depois das Europeias e assim sucessivamente. Enfim, repito-me:

A verdadeira mudança, a ocorrer, não será desencadeada à escala europeia, ao contrário do que insistem muitos europeístas. Terá de ocorrer, dada a lógica do desenvolvimento desigual e combinado, pelas periferias, país a país, ali onde a crise económica e social se faz sentir com uma intensidade impar e onde o esfarelamento das soluções políticas convencionais é plausível a prazo. Mais tarde ou mais cedo, aí será eleito um governo que tenha a coragem de um acto soberano democrático, recusando a chantagem austeritária e desobedecendo às regras europeias que bloqueiam tudo menos o neoliberalismo. Aí sim, as coisas começarão a mudar na escala de que a Europa ainda é feita, por contágio político e por acção inconsciente das forças económicas. O melhor é então agir como se tudo dependesse dos que aqui vivem, sem esquecer as articulações possíveis com outros na mesma situação, mas sem ilusões sobre a sobreposição da escala, internacional, das solidariedades mais ou menos abstractas com a escala, nacional, onde ocorrerão as mudanças concretas.

Foi por estas e por outras que colaborei na redacção deste guião político.