O Documento de Estratégia Orçamental para 2013-2017, recentemente aprovado pelo Governo, é um bom resumo da estratégia de mentira macroeconómica sistemática do governo, mas também do carácter distópico do projecto subjacente. Um dos tópicos mais interessantes é o programa de redução da despesa pública, de 47,4% em 2012 para 41,9% do PIB em 2017. Ele é motivado por mais um dos números mágicos do pensamento liberal: a ideia de que o peso do Estado na economia não deve ultrapassar os 40%. Vejamos como a coisa funciona.
Antes de mais, convém ter em conta que o rácio Despesa Total/PIB pode aumentar (ou diminuir) porque a DT aumenta (ou diminui). Mas também pode aumentar (ou diminuir) porque o PIB diminui (ou aumenta). E às vezes o segundo efeito é tão ou mais relevante do que o primeiro. Qual é a consequência disto? É que um esforço de redução da despesa em contexto de recessão económica, ao agravar a recessão, combate-se a si próprio, o que é uma grande chatice.
O Governo resolve este problema, imaginando um cenário macroeconómico em que temos crescimento do PIB em todos os anos a partir de 2014, mesmo com um programa de austeridade furibundo. É prático. Infelizmente, não há absolutamente nada que justifique esta estimativa, antes pelo contrário. É só fé e, provavelmente, nem isso.
Façamos de conta que a realidade económica contava para alguma coisa e tínhamos gente séria a fazer o cenário macroeconómico. Uma estimativa optimista para a evolução do PIB seria a de que, num contexto de austeridade acelerada, a tendência média de 2011-2013, pelo menos se manteria igual em 2014-2017. É optimista porque o primeiro ano desta série (2011) é em parte pré-memorando, embora já fosse de austeridade mas, sobretudo, porque estou a trabalhar com a estimativa do BdP para a recessão em 2013.
A consequência de uma redução de 10 pontos percentuais do peso da despesa pública em contexto de recessão económica (provocada sobretudo por essa redução da despesa) é eloquente: para operar uma transformação desta natureza, o Governo teria de fazer uma redução da despesa da ordem dos 27 mil milhões de euros, cerca de 30% da despesa, em relação a 2010.
Podemos descrever uma transformação da economia (e da sociedade) portuguesa desta natureza como o sonho de Gaspar ou como o pesadelo de todos os outros. Mas, qualquer que seja a imagem, estamos sempre a falar de ficção. Uma compressão da despesa desta ordem não é, obviamente, desejável mas, para além disso, ela não é possível no mundo real. Conseguimos simulá-la numa folha excel, mas ela não é, pura e simplesmente, susceptível de ser implementada. Felizmente.
Claro que o facto de o plano de Gaspar ser completamente irreal não quer dizer que a tentativa de o implementar e as suas consequências não sejam, essas sim, dramaticamente reais. É por isso que a saída desta crise, obriga-nos a olhar para o outro lado desta fração (o crescimento) e a variável sempre ausente dos discursos de Passos Coelho, o desemprego. O desemprego é o maior factor de insustentabilidade das contas públicas. É aí, e apenas aí que a crise pode ser resolvida.
(Também publicado em www.esquerda.net)
Já há uns tempos que ando a matutar e a realidade, essa malvada, cada vez mais mo confirma: Vitor Gaspar, enquanto verdadeiro tradutor/ideólogo do governo, ainda nao falhou em nada. Nao podemos é ter a ilusao que as pretensoes diferem muito de conduzir Portugal a um modelo social distinto do da Revoluçao Industrial...
ResponderEliminar" Ele é motivado por mais um dos números mágicos do pensamento liberal: a ideia de que o peso do Estado na economia não deve ultrapassar os 40%"
ResponderEliminarOutro número mágico do pensamento liberal é o limite de 60% para o endividamento público: felizmente a actualidade veio demonstrar que este é isso mesmo, um número mágico, e que a sua ultrapassagem não coloca problemas de maior.