2. O que terá levado os autores a pensar que «o aumento do número de vagas parece ser consequência da lei n.º 113/97» (desencadeando supostamente uma inversão de trajectória no «mercado de ensino superior»), é porventura outra coisa: a evolução da relação entre o número de vagas e de candidatos (gráfico aqui ao lado). Sucede, porém, que a dita inversão tem início em 1996 e resulta essencialmente de uma quebra acentuada do número de candidatos a partir de 1995, ao mesmo tempo que o número de vagas continua a aumentar. O ano de 1997 não traduz portanto, novamente, nenhum ponto de viragem e, por isso, a tese dos impactos positivos da introdução de propinas na expansão do ensino superior sai, uma vez mais, gorada (*).
3. No referido relatório síntese, os autores procuram ainda concretizar o efeito das receitas próprias no aumento do número de vagas, chegando a afirmar que «a reintrodução de propinas em 1997 trouxe um claro benefício para as instituições já que as suas receitas tiveram um aumento significativo, passando de 1,2 milhões de euros em 1996 para 58,3 milhões de euros em 1997». Pois é, mas não apresentando dados sobre o quadro global de fontes de financiamento, os autores não esclarecem se essa receita foi efectivamente uma receita adicional (nem qual o seu peso relativo), ou se terá sido «descontada» nas transferências do Orçamento de Estado, como começou tendencialmente a suceder após a introdução e aumento progressivo das receitas provenientes de propinas. E ignoram, acrescidamente, que embora 1997 seja o ano em que o aumento do número de vagas ultrapassa os 10% (gráfico aqui ao lado), é também a partir daí que o aumento da oferta cresce a um ritmo cada vez menor, para começar a estabilizar progressivamente (no ensino público) até 2006. O que desmente, de forma inequívoca, a suposta relação de causalidade entre a introdução das propinas e a expansão da oferta no ensino superior público.
4. No âmbito dos benefícios da introdução de propinas para os cidadãos, os autores limitam-se a constatar evidências (como a «menor probabilidade de estar desempregado» após a frequência de um curso superior, ou a «a obtenção de remunerações mais elevadas», com benefícios indirectos nas receitas do Estado), afirmando que «mesmo que se tenha registado uma diminuição [dos] benefícios individuais com a reintrodução das propinas, estes são ainda substanciais e tornam altamente rentável, numa perspectiva individual, o investimento em educação, designadamente no ensino superior». Mas, estranhamente, não reservam uma palavra - neste relatório síntese - para as crescentes dificuldades financeiras com que se depara um número crescente de alunos, e que tem levado muitos deles a abandonar o ensino superior.
Atendendo à entidade que encomendou o estudo (a Fundação Pingo Doce) e à entidade que o elaborou (a Universidade Católica, cujo interesse no desmantelamento do ensino superior público é bem conhecido), é legítimo pensar-se que não estamos perante uma fraude científica resultante de simples incompetência ou ligeireza académica. Antes assim fosse, pois tudo leva a crer que esta manobra de propaganda pelo «elogio da introdução de propinas no ensino superior» comporta objectivos estratégicos de outra natureza. O estudo é de facto, nos tempos que correm, uma fraude bem conveniente.
(*) Não deixa de ser particularmente revelador da «qualidade» do trabalho o facto de os investigadores da Universidade Católica usarem séries de dados com início em 1995, argumentando que a «informação estatística sistematizada, no que toca ao ensino superior português, só existir de forma publicamente disponível e comparável a partir de 1995», o que «reforçou a escolha de 1996 como cenário base». Pois, mas bastaria que tivessem consultado, por exemplo, o livro de Veiga Simão, Sérgio Machado dos Santos e António de Almeida Costa, «Ensino Superior: Uma visão para a próxima década», publicado pela Gradiva em 2002. E não deixa também de ser revelador que a escolha de 1996 «como cenário base» não tenha coibido os autores de sentenciar que «antes da implementação da lei, o acesso ao ensino superior público caracterizava-se por um número de candidatos superior às vagas disponíveis», pelo que, ainda segundo os autores, «as propinas parecem ter sido um importante mecanismo para reduzir este desequilíbrio».
Muito bem desmascarado. Ainda bem que foi feito este trabalho.
ResponderEliminarSeria talvez interessante também explorar a forma como o relatório ignora os trabalhos de Belmiro Cabrito, Luísa Cerdeira e outros que mostram como as propinas e o aumento de custos para as famílias produziu o abandono escolar ou altas taxas de endividamento. Assim como parece ignorar a posição de Portugal no contexto europeu e sobretudo as tendências mais recentes em que as propinas aumentaram para valores muito elevados e a partir de 2007 os estudantes foram empurrados para os empréstimos de garantia mutua, verificando-se já uma divida de mais de 200 milhões de euros...
Abç,
João Mineiro
Nuno,
ResponderEliminarNão duvidando à partida da informação aqui colocada, ia pedir que, para maior clareza e transparência, se mencione no post a fonte dos gráficos. Obrigado.
Tiago Lemos Peixoto
Caro João Mineiro,
ResponderEliminarBem lembrado. Um estudo com intenções sérias não poderia de facto ignorar esses trabalhos. O que hoje não falta é informação e análise sobre os custos da frequência do ensino superior (entre os quais as propinas) e os seus impactos na vida dos estudantes.
Aguardemos pela versão publicada deste relatório, que nem na informação estatística tem a preocupação de ser sério. O que estava em causa era apenas, de facto, difundir uma ideia fraudulenta na opinião pública.
Abraço,
Nuno
Caro Grimmer,
ResponderEliminarTem toda a razão. Acabei por não citar a fonte dos dados em nenhuma passagem do texto. Até 2000 utilizei as séries publicadas no livro a que faço referência. A partir dessa data, a informação disponibilizada pelo GEPARI (http://www.gpeari.mctes.pt/es).
Angustiante será a leveza da apresentação do dito relatório e respetivas conclusões num qualquer telejornal à sua mesa.
ResponderEliminarE vendo os gráficos de soslaio lá se comerão mais inverdades junto com o arrozinho de grelos.
Excelente post, Nuno.
ResponderEliminarAbraço
msp
Elogio os pontos 1, 3 e 4. Mas tenho uma questão em relação ao ponto 2:
ResponderEliminarPorque é que nesse gráfico usou o número total de vagas, em vez do número de vagas no ensino público, que foi aquele em que foram introduzidas propinas e é aquele a que os autores se referem?
Guiando-me pelo gráfico 1, parece realmente que o número de vagas no ensino superior público começa a superar o número de candidatos só depois de 1997.
Espero que tenha sido um lapso do Nuno Serra, e não "fraude científica" deliberada.
Caro Ricardo Reis,
ResponderEliminarPoderia de facto ter utilizado, no gráfico 2, o número de vagas do ensino público (para comparar com o número de candidatos). Reconheço até que faria mais sentido (atendendo ao objecto do «estudo»). Colocarei esse gráfico num próximo post, mas posso desde já elucidá-lo que é apenas entre 2001 e 2007 que o número de vagas supera o número de candidatos. E que, seja como for, o período de aumento de vagas no ensino superior público (como pode verificar no gráfico 1) é um processo continuo entre 1990 e 2002, não tendo nenhuma espécie de «pico» ou ponto de viragem em 1997.