Vários leitores, a quem agradeço, chamaram-me à atenção para um facto de que não me apercebi quando encontrei, há uns dias, o respectivo video no facebook: a entrevista de Isabel Jonet ao Diário de Notícias e TSF (citada neste post), foi realizada em Junho do ano passado. Isto é, num momento em que a opinião pública estava a ser intoxicada com as patranhas do «Estado gordo» e do «viver acima das possibilidades».
A situação económica e social do país não assumia portanto, nessa altura, o estado de colapso em que hoje se encontra. Nem a percepção generalizada sobre a colossal fraude que constitui a opção austeritária correspondia, então, à que hoje se tem. O que não significa, contudo, que as declarações da presidente do Banco Alimentar resultassem apenas do «espírito do tempo»:
1. Como lembra a Maria João Pires, em 2007 Isabel Jonet afirmou que «caridade vale mais que a solidariedade (...), caridade é amor, solidariedade e serviço». E, mais recentemente, a economista do Banco Alimentar deu a sua benção às propostas de alteração à TSU, considerando-as «um mal menor». Ou seja, tudo indica estarmos perante um padrão consolidado de «pensamento social» (como bem assinala o Sérgio Lavos): Isabel Jonet repetiria hoje, muito provavelmente, as palavras que disse há um ano atrás.
2. As preces da presidente do Banco Alimentar (redução «ao máximo» do RSI e do subsídio de desemprego - para obrigar a malandragem a trabalhar e fazer com que o Estado não se meta «em coisas que não deve»), foram contudo atendidas pelo governo. As tendências que os gráficos aqui ao lado evidenciam (dados do quarto trimestre de cada ano) aprofundaram-se em 2012: o número de beneficiários do RSI e a percentagem de desempregados com acesso a subsídio foram reduzidos à força (e à bruta). Mas, curiosamente, a tese de Isabel Jonet não vingou: o desemprego continuou a galopar e, a bem da «nobre causa», o número de pessoas a beneficiar da sua «obra» também não cessou de aumentar (o «negócio» vai, de facto, de vento-em-popa).
3. Não é demais repeti-lo: o Banco Alimentar contribui para minorar o sofrimento de muitas pessoas. E permite, tal como outras iniciativas semelhantes, que muitos cidadãos concretizem a sua vontade de ajudar a suavizar a angústia por que passa um número cada vez maior de famílias. Outra coisa, bem diferente, é pretender que uma espécie de «indústria da caridade» faça aquilo que, por natureza, não lhe cabe (nem pode caber): concretizar direitos, assegurar universalmente o acesso a mecanismos de protecção. Isto é, pretender «meter-se em coisas que não deve»: no quadro de responsabilidades e deveres sociais do Estado, inerentes a uma sociedade democrática e civilizada (não deixem de ler este post do Porfírio Silva, em particular o segundo ponto, tão clarividente como certeiro).
4. É que, em contrário, vale então a pena recordar que muitas das instituições a que o Banco Alimentar entrega os bens, para serem posteriormente distribuídos, se caracterizam pela discricionariedade e pela casuística: há resposta se houver resposta (e para quem se entende que deva haver resposta). Os critérios de avaliação assentam com demasiada frequência em juízos morais, emoções, estados de espírito, graus de empatia, preferências subjectivas ou - nos casos mais graves - em miseráveis avaliações de contrapartidas ou de conduta, fundadas num qualquer código de interesses ou tábua de preceitos «éticos» ou religiosos. Ao que acresce, por fim, a ausência de uma lógica de cobertura territorial, de acesso, bem como a permeabilidade a interesses particulares ou favorecimentos. E ainda - importa sublinhá-lo - a opacidade: ao contrário dos serviços públicos, estas instituições não são facilmente escrutináveis (nem têm, nesta matéria, que o ser).
Quando falamos do Banco Alimentar temos de sempre de começar por dizer que apreciamos muito o trabalho que fazem, ajudando muitas pessoas. Ok. Já está.
ResponderEliminarDito isto, eu gostava imenso de saber quanto dinheiro é que o Banco alimentar recebe de entidades públicas. Alguem sabe?
Nos últimos anos o "3º sector" tem-se desenvolvido muito. É uma industria e como em qualquer outra industria os seus promotores fazem o que for preciso para capturar uma fatia maior dos recursos disponiveis.
Neste caso, envolve promover a industria da pobreza e do pedinte. è miserável.
E já agora... as misericordias... alguem sabe como são utilizadas as centenas de milhões que são entregues anualmente pelo estado?
miguel
«Só que há aqui um mas. E o mas é que iniciativas como o RSI sempre vieram com regras e fiscalização atrás. Não é um regabofe, um fartar vilanagem. Umas e outras serão insuficientes, porque o são sempre, mas existem. E isso quer dizer que há algum controlo sobre se aquelas pessoas estão realmente a (re)inserir-se na sociedade ou não, se realmente precisam dos apoios ou se se estão simplesmente a aproveitar deles.
ResponderEliminarE na caridadezinha não há.
Na caridadezinha é o fartar vilanagem.»
http://lampadamagica.blogspot.pt/2012/04/sobre-rsi-caridadezinha-e-burrice.html
Para acabar de vez com as discricionaridades das caridades privadas ou assistenciais, há que tornar o direito à existência,um direito humano fundamental,num direito efectivo, através da instituição de um rendimento básico de cidadania. Tal como acontece no Brasil desde 2004 (lei 10.835/2004, apresentada por Eduardo Suplicy e sancionada por unanimidade no Senado).
ResponderEliminarMaria Isabel Jonet
ResponderEliminarMaria Isabel Torres Baptista Parreira Jonet nasceu em Lisboa em 1960. É casada e tem cinco filhos. Licenciou-se em Economia na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa em 1982. Trabalha em regime de voluntariado no Banco Alimentar Contra a Fome desde 1993, sendo presidente da Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares Contra a Fome, presidente do Banco Alimentar Contra a Fome de Lisboa e membro do Conselho de Administração da Federação Europeia dos Bancos Alimentares. Nessa qualidade apoiou a criação de 14 Bancos Alimentares portugueses. O Banco Alimentar recebeu, em 2008, o Prémio Fundação Calouste Gulbenkian. É membro do Conselho Estratégico do jornal Expresso, membro do Conselho de Orientação Estratégica da Faculdade de Ciências Económicas e Empresariais da Universidade Católica Portuguesa. Entre Junho de 2007 e Dezembro de 2008, foi membro do Conselho Estratégico do Hospital Amadora-Sintra. Trabalhou no Co-mité Económico e Social das Comunidades Europeias, em Bruxelas, entre 1987 e Julho de 1993. Foi também adjunta da Direcção Administrativo-Financeira da Sociedade Portuguesa de Seguros entre Março de 1983 e Dezembro de 1986 e na Direcção Financeira da Assurances Général de France em Bruxelas (1987).
Desde o seu aparecimento que semprei dei algo ao BACF.
ResponderEliminarDeixei de o fazer quando a dita Isabel Jonet, numa entevista na SIC Notícias, disse que "tínhamos vivido todos acima das posses" e que "tínhamos todos de trabalhar mais".
Sabia que o BACF estava ligado à Igreja Católica, mas isso não impedia que eu apoiasse uma obra que considerava meritória, apesar do meu agnosticismo e laicismo.
Mas, depois destas "pérolas" da "tia" Isabel cada vez me parece estarmos em presença de um ato de promoção da "caridadezinha", que se aproxima, a passos largos, do farisaísmo.
Aliás, a própria promoção e a ênfase no "voluntariado" não passa de uma mecanismo subtil de a ideologia neoliberal desvalorizar o Estado Social. No fundo, querem dizer-nos que, se todos dessemos uma "ajudinha" aos outros, o Estado não teria de gastar dinheiro com a ajuda aos mais desfavorecidos. E esta é uma ideia que não é fácil desmontar.
Fiquei esclarecida quando li, há uns anos, que a pobreza NÃO é consequência da má distribuição da riqueza... O mundo segundo Isabel Jonet.
ResponderEliminarÉ exactamente essa a minha opinião. De facto, de acordo com o artigo 25 da farsa que é a carta dos direitos humanos da qual todos os países da ONU são signatários (incluindo Portugal) lemos:
ResponderEliminarToda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.
(Fonte: http://www.un.org/spanish/Depts/dpi/portugues/Universal.html)
Penso que a protecção aqui referida é inteiramente da competência do Estado. Nem me incomodava tanto se, ao invés da andar a pagar para manter falácias financeiras, pagasse para viver num "Estado" solidário.
Quando me refiro à carta em concreto, digo farsa, uma vez que todos os artigos devem ser adendados com a expressão "caso tenham dinheiro para isso".
É óbvio que se as coisas funcionassem como deve ser, o banco de que falam reduzir-se-ia ao estado de futilidade.