terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

«não levantarás falso testemunho» (Dt. 5: 1-21)

Como referimos aqui, o reitor da Universidade Católica (UCP) entendeu, recentemente, aconselhar o governo a proceder a um «corajoso aumento das propinas para o nível de custo real», argumentando que não se podia empurrar «para as costas do Estado a obrigação quase exclusiva de financiar a universidade». O discurso em que se insere esta proposta contém todavia outras passagens, que também merecem destaque.

Segundo Braga da Cruz «o Estado não pode continuar a discriminar os estudantes portugueses que escolhem universidades privadas» e que por isso não têm direito a bolsas, criticando que esse apoio «seja negado a portugueses, por não frequentarem o ensino não estatal, para ser dado a estudantes estrangeiros, apenas por frequentarem universidades estatais». Nada mais falso: não só o Estado concede bolsas a cerca de 60% dos alunos do ensino superior privado que a elas se candidatam (70% no caso do ensino superior público), como a despesa média anual por bolseiro é mais elevada (uma diferença de cerca de 400€ em 2008, o último ano com informação disponível).

Mas o reitor da Católica sugere ainda que a alteração do actual modelo de financiamento do ensino superior assente no alargamento do «sistema de bolsas de mérito ao ensino não estatal, que permite aos melhores alunos optar livremente pelas instituições onde pretendem estudar». Ora, sucede que a dita «liberdade de escolha» da instituição que um aluno pretende frequentar é algo que caracteriza desde sempre o acesso ao ensino superior, acrescendo o facto de as bolsas de mérito atribuídas pela DGES (e de que a UCP já usufrui) terem a singular característica de beneficiar «estudantes com aproveitamento excepcional, independentemente dos seus rendimentos» (sublinhado meu). O alargamento destas bolsas de mérito permitiria portanto suportar, às custas do Estado, as práticas de aliciamento dos melhores alunos (independentemente da sua condição sócio-económica), que a UCP leva legitimamente a cabo e que explicam, em larga medida, os bons resultados desta instituição, que não deixa por mãos alheias a selecção da «créme de la créme».

Torna-se portanto clara a verdadeira pretensão do reitor da Universidade Católica: reforçar, por um lado, a tranferência de fundos públicos para o ensino privado em geral e para a sua instituição em particular e, por outro, pressionar no sentido da mercadorização total do ensino superior público (com a referida elevação do valor das propinas para o custo real), de modo a evitar a «concorrência desleal» que implicitamente se infere das palavras de Braga da Cruz. Tudo isto num contexto de aumento do número de alunos que desistem da frequência do ensino superior e em que o financiamento público da acção social sofre cortes violentos (que a tutela tentou, aliás, justificar através de uma manobra infantil de ilusionismo orçamental). O que revela bem como os interesses privados da educação não têm qualquer pudor em surfar as ondas de choque da austeridade.

3 comentários:

  1. Caro Nuno Serra
    Confesso que, de todos os subsídios públicos a actividades económicas privadas, os relativos à educação até são dos que habitualmente menos comichões morais me causam. A "nobreza intrínseca" da causa, as suas "externalidades positivas", etc. e coisa e tal...
    Mas sim, tem razão. Estamos a atravessar tempos tão miseráveis, tão pobretanas Fulano a roubar a sopa do desgraçado Beltrano, que por sua vez gamou as botas em segunda mão do infeliz Sicrano, que sinceramente...
    Bom, o meu ponto - e creio que nisso concordamos a 100 por cento - é que esta malta das privadas tem de facto uma garimpa completamente insofrível. Fazem o que fazem, beneficiando do que beneficiam... e depois são uns ingratos insuportáveis, uns pirralhos mimados, sempre a berrarem por mais e nunca reconhecendo as borlas que recebem...
    Talvez devesse acabar-se de vez com Todo o financiamento público ao ensino privado, sim. Quem quer colégios e/ou privadas, pague-os/as. Se não, vão para a escola pública como os outros.
    Basta de palhaçadas.
    Isso não é "concorrência leal"? Pois não. Mas, por outro lado... quem disse que essa é de todo uma área para deixar entregue à tal de "concorrência"?

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  2. Caro João Carlos Graça,
    O ponto é exactamente esse: «fazem o que fazem, beneficiando do que beneficiam... e depois são uns ingratos insuportáveis». Nenhum esmolar vem sem o ataque ao Estado e a tentativa de cilindrar a lógica da sua acção (com a mistificação suprema de que, eles sim, fazem «serviço público»).
    Também não me causa alergia que o Estado, em situações muito definidas (ausência de oferta, como em casos do básico e secundário, ou segundo um princípio de supletividade) apoie o ensino particular. E reconheço até, sem qualquer dificuldade, que muitas instituições privadas funcionam segundo parâmetros de serviço público (não fazendo, por exemplo, selecção de alunos).
    O que é verdadeiramente insuportável é a desfaçatez e a alarvice.
    Aliás, porque é que não se pode assumir que a «livre concorrência» implica que os agentes - que nela se posicionam - o fazem necessariamente com as suas próprias lógicas e objectivos (no caso do Estado, a democratização e o acesso ao ensino)? Porque é que a concorrência só é leal na perspectiva pecuniária?
    Um abraço,
    Nuno

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  3. Por acaso dou por mim a ter uma opinião completamente nova para mim depois de ler este post.

    Deixávamos de ter universidades públicas e criava-se milhares de novas bolsas.
    Desta forma o Estado continuaria a financiar a educação superior mas a escolha do aluno aumentava consideravelmente em vez de ser condicionado nessa escolha pelo preço da universidade pública versus o preço da universidade privada.

    Isto exigiria que o mercado não fosse completamente liberalizado e que, das duas uma: ou o estado não daria bolsas para todo e qualquer curso ou não permitiria a existência de alguns cursos de acordo com critérios de interesse público.

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