terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Wise up*

Nunca tivemos uma década tão má como a do euro, diz João Ferreira do Amaral (JFA). A medíocre performance económica, sem precedentes, foi responsável pela triplicação do desemprego, mesmo antes da austeridade em força. É a vida fácil, de que fala Cavaco. Adicionem a inserção dependente, fomentada por uma moeda forte e pela abertura irrestrita aos fluxos financeiros, e temos um padrão que muitos países do Sul global já conheceram. Sem uma reconfiguração profunda da moeda única, e admitindo a sua sobrevivência, a próxima década, de ajustamente estrutural ditado por Bruxelas-Frankfurt, será ainda pior. JFA foi dos poucos economistas académicos portugueses que, na década de noventa, escreveu sobre a forma como o neoliberalismo inspirou, em Maastricht, o desenho da UEM. Uma UEM forjada para destruir o Estado social e o mundo do trabalho organizado, fazendo do salário directo e indirecto a variável de ajustamento. Estou a pensar, por exemplo, num artigo que reli recentemente, publicado num número da Notas Económicas de 1998, e cujo título exprime bem o que hoje está em causa -"Maastricht: um Tratado contra o Modelo Social Europeu".

Durante vários anos, alguma literatura de economia política comparada, que poderá ter influenciado a complacência social-democrata na Península, afirmou que o euro seria compatível com modernização social e com convergência económica do Sul. A modernização do sistema fiscal, ainda que incompleta, ou a queda das taxas de juro foram alguns dos mecanismos que evitaram a desvalorização social e salarial aberta, assim retirando força à tese de JFA, mesmo que se tenham confirmado, em Portugal, os problemas económicos então previstos. Na realidade, a neoliberalização da economia, com alguma incrustração social legitimadora, que até correspondia num PS sob hegemonia social-liberal à divisão de tarefas intelectuais e políticas entre economistas e sociólogos ortodoxos, à divisão entre as finanças e a solidariedade social, revelar-se-ia cada vez mais insustentável, o produto de uma separação artificial cada dia mais frágil, destinada a ser destruída pela inserção dependente gerada. A natureza de um arranjo monetário revela-se totalmente em alturas de uma crise à qual não é alheia, nas respostas de política pública que permite ou não. Hoje é claro que sem alterações na moeda única, as respostas só podem ser retintamente anti-keynesianas, retintamente neoliberais, o que siginifica a destruição do Estado social. É por isso que estamos obrigados, à esquerda, a fazer política com p grande, aquela que trabalha na reforma das estruturas, sem separações artificiais entre economia e sociedade. As nossas armas, a partir da periferia, são, paradoxalmente, financeiras.

De resto, e como sublinhou um colunista conservador, Ambrose Evans-Pritchard, a quem as declarações de Pedro Nuno Santos não passaram desapercebidas, a esquerda europeia, em especial a social-democrata, está obrigada a pensar seriamente sobre a natureza da integração seguida e sobre os enviesamentos políticos que geram derrotas sem fim. Um artigo a ler com atenção. Em 2011 acabou a europeização feliz.


*Ponham-se finos.

3 comentários:

  1. Caro João Rodrigues
    O que João Ferreira do Amaral diz está acertado e deveria ser o óbvio, pelo menos para quem se diz de esquerda. Aliás, deveria ser tomado como base partida para o possível diálogo em torno duma hipotética “alternativa de esquerda”, em vez das baboseiras com que por exemplo o André Freire insiste em entreter-se aqui: http://www.ionline.pt/portugal/esquerda-tem-culpa-na-situacao-estamos
    É claro que uma área económica onde o fundamental das decisões (ou pelo menos uma parte significativa delas, capaz de condicionar tudo o mais a jusante) iria ficar sem escrutínio democrático, e onde o compromisso de base era visceralmente "anti-keynesiano" configurava, de raiz mesmo, um projecto completamente inaceitável.
    Compreende-se entretanto, depois do mal feito, uma atitude expectante, em face dos também inegáveis "custos de saída". Quanto a isso, ninguém poderá evidentemente levar a mal a JFA ou aos economistas da área do PC, que têm quanto a isto uma atitude semelhante.
    Todavia, depois de mais de uma década de empastelamento, e sobretudo em face da catástrofe já não iminente, mas bem "ao vivo e a cores", o que já não se compreende de todo é o estado de aparente perplexidade, estupor e negação que é o que ainda hoje corresponde ao BE mainstream, entre nós aparentemente os órfãos (ou "as viúvas") do euro-optimismo "de esquerda"...

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  2. João Carlos,

    Não sou assim tão crítico da entrevista do André Freire, que me parece bem intencionada. Julgo-a é um bom exemplo daquilo que tenho escrito frequentemente: a sobrevalorização do plano político convencional, nomeadamente relações entre partidos, com alheamento do que hoje é crucial, a economia política.

    Gostei dessa das viúvas do euro-otimismo ;-) Ainda por cima, viuvas virtuosas, metidas em ações virtuosas.

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  3. Será o Euro culpado do despesismo desenfreado? O Estado não teria gasto o que tinha e o que não tinha se as contas fossem em escudos?

    Os juros dos empréstimos que o Estado contraiu seriam menores ou maiores se estivéssemos no Escudo? Com o Escudo já teríamos entrado em inflação galopante e não conseguiríamos pagar a dívida em Euros. Ninguém nos emprestava dinheiro para pagarmos em escudos.

    A saída da crise é a libertar as empresas de as pessoas do sufoco fiscal em que se encontram e deixar a economia recuperar.

    Enquanto a carga fiscal desincentivar a criação de empresas ou o simples trabalho por recibo verde, o país continuará estagnado.

    Foram ideias como as do JFA que nos trouxeram ao ponto onde nos encontramos. Que viríamos parar a esta situação era obvio para pessoas como Medina Carreira e para tantos outros com metade dos conhecimentos de Economia do Prof. JFA.

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