quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Consumo e escolhas

A austeridade é ainda mais indigna numa sociedade tão desigual como a nossa. Também por isso, não deve haver qualquer paciência para os discursos moralistas de Cavaco, que só servem para obscurecer a fractura socioeconómica que a austeridade não cessa de abrir. Deixo aqui uma crónica que escrevi para a revista The Printed Blog do passado mês:

Leio num jornal que o “consumo das famílias sofre em Julho a maior queda em mais de 30 anos” e não posso deixar de pensar que famílias há muitas e que consumos e quedas também. Afinal de contas, sei que vivo num dos países mais desiguais da Europa, onde o consumo conspícuo de bens de luxo parece estar sempre de boa saúde, o mesmo se passando com a procura de serviços de segurança privada. Quanto maior é a desigualdade económica, maior é a relevância destes padrões tão imorais quanto disfuncionais.

Em gritante contraste, e seguindo um estudo de 2009 sobre “necessidades em Portugal”, cerca de 50% das famílias portuguesas inquiridas declarava não conseguir satisfazer todas as necessidades básicas aí definidas, como aquecer a casa, comer carne e peixe de dois em dois dias ou fazer uma semana de férias pagas uma vez por ano.

Os efeitos recessivos da quebra do consumo privado gerada pelas políticas de austeridade serão sentidos sobretudo pelas famílias empobrecidas, por um consumo popular ameaçado. Os trabalhadores são consumidores e o contrário também é verdadeiro.

Sabemos que 40% das famílias tem dívidas aos bancos, em 80% para a compra de um bem essencial – a habitação. Pertencendo na sua maioria aos grupos relativamente mais desafogados, estas famílias, contrariamente ao discurso moralista dominante, pagam as suas dívidas a tempo e horas. Ou melhor, pagavam: devido ao desemprego, a insolvência é uma palavra que se torna familiar, graças, uma vez mais, a esta austeridade permanente.

Os economistas que andam por aí a dizer que o Estado deve comportar-se como uma família querem que se esqueça o óbvio: o Estado não pode comportar-se como se fosse uma família em crise e, por exemplo, cortar nos serviços públicos, no investimento e nos apoios sociais, embora tudo nos arranjos deste euro mal concebido conspire para fazer com que isto aconteça, sem sobrecarregar as famílias realmente existentes com desemprego e quebras do salário directo e indirecto.

São estes mesmo economistas neoliberais, como João Duque, que fazem equivaler a austeridade a uma escolha entre pipocas e Coca-Cola, como quando uma família vai ao cinema. Uma metáfora que se destina a ocultar a miséria de uma opção de política económica que expõe muitos indivíduos a escolhas trágicas – por exemplo, estudar ou ajudar no sustento da família.

Nem todos os consumos e nem todas as escolhas são equivalentes moralmente. Entre o luxo e a necessidade, é sempre a política que molda o que vamos podendo ser e fazer com as nossas vidas.

4 comentários:

  1. Muito bom post a desmontar o primeiro dos mantras do discurso penitente da Igreja da Austeridade, a saber:

    1. "Vivemos acima das nossas possibilidades"

    2. "Endividámo-nos agora temos que pagar como quiserem que paguemos"

    3. "É uma situação de emergência, pesados sacrifícios são inevitáveis"

    É uma retórica poderosíssima, não só pela sua eficácia persuasiva (é ver milhares de pessoas a repeti-la todos os dias) mas pela capacidade que tem de desviar a atenção das causas dos problemas para cima dos bodes expiatórios preferidos do dogma do "estado mínimo".

    É extremamente difícil de combater sem entrar em explicações que parecerão esotéricas à maioria e sem recorrer a fórmulas igualmente simplistas.

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  2. o mal do estado foi não se ter comportado como uma família desde o príncipio. agota o encolher de expectativas de família pobre doi mais.
    e , meta lá na cabeça . a economia não é uma ciência. perde o seu tempo e o dos outros ao tentar dizer que macro xpto , diferente de micro senso comum. um economista a sério tem cabeça de dona de casa , o medina , por exemplo. : é só contas que qualquer um pode fazer. e cozinhar roupa velha com o que há no frigorifico. desertificação do interior , montes de desem+pregados? daaa.
    tenho muita pena , muita mesmo , pois sofro as consequências , mas as ciências sociais , as que têm intervido na sociedade , provaram e muito mal , que de ciência não têm nadinha , de pensamento mágico ? bué.

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  3. Os gajos da massa (que realmente mandam) querem o Estado mínimo (policial). Como viram que falhou redondamente aquela conversa de "o Estado tem de ser como um empresa", agora repetem a de "o Estado tem de ser como uma família" a ver se pega.

    Pois nenhuma é válida:
    - uma empresa pode despedir empregados, um Estado näo pode matar cidadäos (pelo menos abertamente);
    - uma família näo pode escolher os seus membros, um Estado tem eleiçöes onde os "paizinhos" podem ser substituídos.

    Enfim, a retórica da da Igreja da Austeridade é poderosa, mas por isso estamos cá nós os HEREGES para a "desconstruir"!

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  4. A “austeridade digna” que Cavaco nos propõe só pode ser aquela do tempo do “pobrete mas alegrete”.

    Cavaco, os governos, os “amigos” de Bruxelas e do FMI, não conhecem o que se está a passar no “terreno”. Ou então, é outra coisa…
    Toda esta gente só fala em despedir, precarizar, cortar salários, em aumentar custos básicos (transportes, energia, saúde), em privatizar o pouco que resta. Paradoxalmente, dizem-nos que são com estas medidas que vamos chegar a bom porto! Satisfazer as necessidades básicas referidas no postal é aquilo a que esta gente passou a denominar “viver acima das possibilidades”.
    Bem, só o ideólogo Duque, “um extremista”, é que se lembra que é preciso fazer escolhas entre Coca e Pipocas…

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