A historiadora Maria de Fátima Bonifácio (MFB) decidiu partilhar com os leitores do Público a sua estupefacção com o ideal, nunca integralmente instituído no nosso país, da universalidade, esteio de um Estado social robusto (Público 5/6/2011). Trata-se de um ideal imparcial e distinto: todos os membros de uma comunidade politica, independentemente da sua condição social, devem poder aceder gratuitamente a bens e serviços públicos financiados por impostos tendencialmente progressivos. MFB decidiu também partilhar o seu preconceito, declarando nunca ter visto um argumento robusto para uma situação que considerou um exemplo de injustiça social, remetendo os leitores para as figuras da sua empregada doméstica e de Amorim, lado a lado num hospital, sem discriminações pecuniárias. Onde é que já se viu?
Dispomos de argumentos de economia moral, referentes à justeza de tal arranjo, e de economia politica, referentes às condições para a sua sustentabilidade, que permitem contrariar o seu cepticismo.
Em primeiro lugar, o ideal da universalidade está na base dos Estados sociais com maior capacidade redistributiva e com maior qualidade dos serviços, onde é maior a confiança social porque são menores as desigualdades económicas e, logo, mais elevada a legitimidade dos arranjos sociais. É fácil perceber porquê: a universalidade é o meio mais eficaz para podermos dizer com algum realismo que estamos todos no mesmo barco, que temos, enquanto comunidade, bens partilhados. Desta forma, aumenta a “moralidade fiscal”, a disponibilidade para pagar impostos progressivos mais elevados e para taxar os rendimentos do capital, sobretudo o que não tem aplicações produtivas, cuja importância tem aumentado. A probabilidade de fuga dos serviços públicos por parte dos grupos mais instruídos diminui e, logo, a pressão para o aumento da sua qualidade mantém-se. O acesso universal diminui os custos administrativos, pois economiza em controlos burocráticos desnecessários para criar barreiras contraproducentes. Diminui também a probabilidade de guetização dos mais pobres, condenados, em alternativa, a programas medíocres e subfinanciados, e dos que têm algumas posses, condenados a ficar na dependência de grupos financeiros cujo poder aumenta na proporção da vulnerabilidade das pessoas, resultando em transacções de mercado sistematicamente desiguais. A saúde é tão atractiva para os grupos financeiros, para as seguradoras, porque é muita a vulnerabilidade a explorar nas letras miúdas dos contratos. O recurso ao crédito para a educação é também uma área onde a vulnerabilidade dos estudantes e suas famílias é o outro lado de ganhos seguros para grupos predadores.
Em segundo lugar, temos a questão da sustentabilidade do Estado social, que tanto preocupa MFB. A famosa questão demográfica é menos importante do que o medíocre regime económico em que vivemos, com ganhos de produtividade reduzidos devido à fraca qualidade do capital e do investimento, oscilando entre a estagnação e a crise, com muito desemprego e precariedade, que impedem os mais jovens de planear a vida. Um regime que emergiu no final dos anos setenta com a vitória política da ideologia liberal que intelectuais como MFB ainda hoje professam. De facto, a liberalização financeira, a desregulamentação das relações laborais ou as maciças privatizações criaram uma economia que é incompatível com o Estado social. Uma economia com traços claros:
(1) intensificação da instabilidade financeira traduzida na multiplicação de crises financeiras, ou seja, de crises bancárias e/ou cambiais, cujo número triplicou quando comparamos com os “trinta gloriosos anos” do pós-guerra marcados pelo controlo estrito da finança;
(2) quebra do peso dos salários no rendimento nacional, declínio da actividade sindical e crise de uma economia europeia onde o salário continua a ser a maior fonte de procura e de crescimento económico;
(3) divórcio entre os lucros dos grandes grupos, em franca recuperação, e o investimento produtivo, em declínio;
(4) aumento dos lucros distribuídos, sob a forma de dividendos, a accionistas cada vez mais poderosos e impacientes, aliados a gestores de topo igualmente gananciosos e cada vez menos taxados.
Se queremos cuidar da universalidade do Estado social é esta economia, cada vez menos civilizada, que temos de reformar, combatendo a austeridade recessiva e reforçando o controlo público do sistema financeiro, que se prepara para receber ajudas que podem bem chegar a 27% do PIB nacional e que se prepara para reforçar a expansão, à custa de todos, em áreas como a saúde. Só um sistema financeiro com rédea curta, ao serviço do investimento produtivo, permitirá recriar economias mistas com prosperidade partilhada.
Só com transparência democrática, com mobilização e participação dos cidadãos, é possível distinguir a despesa pública improdutiva, que resulta da promiscuidade com grupos económicos privados, da despesa que corresponde ao investimento que o Estado social faz na provisão pública, ou seja, em todos nós. A verdadeira solidariedade, que também tem de ter escala europeia, passa por aqui. Estamos todos no mesmo barco.
Público, 20/06/2011
Caro João Rodrigues
ResponderEliminarParabéns pelo seu texto. Bem escrito, dizendo o essencial, pondo o dedo nas feridas, deixando as linhas fractura assinaladas onde elas realmente estão. Nesse sentido, os respectivos méritos são de natureza tanto "intelectual" como propriamente política. E ainda bem que é assim...
Permita-me, em todo o caso, uma pequeníssima ressalva. Ao falar dos "trinta anos gloriosos" é talvez melhor começar a dizer os "trinta anos gloriosos ligeiramente imaginários", um pouco como o Robert Pollin, em Is Full Employment Possible under Globalization?, de Abril de 2008, fala duma “slightly imaginary Sweden” (aliás, nisso seguindo Robert Heilbroner). É que os tais 30 anos resultaram duma conjuntura internacional muito específica e em definitivo irrepetível, contendo aliás também uma inegável componente de "keynesianismo militar", de "warfare state" imbricado com "welfare state", a qual creio não ser talvez tanto assim do seu agrado como uma leitura mais desatenta do seu texto pode eventualmente sugerir...
É sempre bom (embora também possa complicar as coisas para além dos limites do tolerável num pequeno artigo de jornal, sim, isso reconheço) distinguir realidades e factos, de um lado, de ideologias, mitos e representações, do outro.
Ah, sim, mas nada disso obsta ao que primeiro eu disse: parabéns, João Rodrigues!
O ensino e saude universais de qualidade devem ter prioridade nos gastos publicos.
ResponderEliminarAssim devem-se cortar todas as outras despesas e manter estas.
Uma população culta e saudável acaba por ter produtividade a longo prazo.
Isto não quer dizer que a oferta de saude e ensino universais seja exlusiva do sector publico, pode e deve ser feita em concorrencia com um sector privado convencionado, como existe já com a ADSE e com as escolas associadas.
Este modelo concorrencial deve ser expandido, pois contém uma mecanismo automático para a obtenção de qualidade : a concorrência regulada.
" concorrência regulada" ???
ResponderEliminarNO ensino? não conhece as escolas superiores privadas privadas , onde o importante é pagar?
Quer exemplos?
Aurélio
Óptim texto. Conciso, objectivo e esclarecedor para quem não é economista!
ResponderEliminarSr. Aurélio,
ResponderEliminarComo é conhecido há muita falta de regulação no ensino superior privado.
É uma balda que o Mariano Gago continou a deixar andar.
Deviam fechar cursos quer no privado quer no publico, espcialmente aqueles que mandam milhares de alunos para o desemprego todos os anos.
Em contrapartida deviam aumentar vagas e apoios sociais aos cursos com maior empregabilidade como por exemplo medicina.
lamento muito informar mas nunca estivemos no mesmo barco
ResponderEliminarhá gente que tem barcos próprios
e há quem nem de barco ande
eu até no Estreito vomito quando o mar anda agitado
resumindo mesmo no mesmo barco
há sempre sensibilidades diversas
e pessoal que vai borda fora
e pessoal que é comido quando se naufraga
Não posso deixar de realçar a sua capacidade de comunicação, muitos parabéns.
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