terça-feira, 5 de outubro de 2010

A anestesia

Como sabemos, a política recessiva que o Governo se propõe executar em 2011 foi saudada em todos os quadrantes neo-liberais, mas com esta ressalva: só resulta se houver “reformas estruturais”. E o Ministro das Finanças pressurosamente concordou.

Mas não se trata de reformar tudo o que for preciso para tributar a “economia paralela”, aceder com rapidez às contas bancárias sempre que haja suspeita de evasão fiscal, e muito menos encerrar o “paraíso fiscal” da Madeira.

Nem se trata de preparar políticas de inovação consensualizadas com os actores relevantes para promover a melhoria da competitividade das pequenas e médias empresas (a esmagadora maioria) cujos empresários têm regra geral baixas qualificações, ausência de visão estratégica e falta de lucidez para reconhecer que só teriam a ganhar em competir pela diferença. Aliás, ao defender a redução de salários, a CIP já assumiu que os empresários que representa (felizmente há excepções) apenas sabem competir com baixos custos salariais (obviamente, os carros de luxo do patrão e da família, entre muitos “outros custos”, são migalhas irrelevantes).

Não, para os neo-liberais, fazer “reformas estruturais” significa fragilizar o mais possível os que apenas têm o trabalho para viver: reduzir o poder negocial dos assalariados, aumentar a precariedade dos contratos, introduzir a arbitrariedade no despedimento, reduzir (em montante e em tempo) o apoio financeiro aos desempregados, mercantilizar a saúde, expandir os fundos de pensões para lançar os descontos no jogo da “economia casino”, privatizar os CTT, etc.

De facto, o que une a CIP quando clama pela redução dos salários no sector privado, o Ministro das Finanças quando pressiona para que se esqueça o acordo sobre o aumento do salário mínimo, a OCDE quando recorda que é preciso desmantelar negociações colectivas entre patrões e sindicatos, o FMI e decisores da UE, o que os une a todos é a ideologia neo-liberal.

Acreditam que o crescimento das economias é fundamentalmente determinado pelo que acontece do lado da oferta, em particular no mercado de trabalho. Obviamente, tratam o trabalho como qualquer mercadoria. Por isso sempre disseram que a causa do desemprego na Europa, em nível elevado já antes da presente crise, resulta da “rigidez” do mercado de trabalho e da existência de um “insustentável” Estado Providência.

Acontece que essas explicações são pura ideologia, uma amálgama de ideias inspiradas nos clássicos do século XIX (ver aqui) que nunca foram adequadamente sustentadas por estudos académicos. Para desespero de algumas mentes brilhantes que se dedicam a torturar as estatísticas até que estas validem as suas ideias pré-concebidas. Pouco lhes importa que a Grande Depressão ou a presente crise já os tenha desmentido (afinal, onde está a grande inflação com que ainda há pouco nos queriam assustar?).

Como conclui David Howell num estudo bem fundamentado onde critica a visão neo-liberal do mercado de trabalho,

“Há uma explicação menos elegante mas mais convincente, … uma explicação que nos diz terem sido os trabalhadores menos qualificados que pagaram o preço de uma procura agregada débil, de reestruturações sectoriais e mudanças demográficas, da mobilidade acrescida da produção industrial e do capital financeiro, e da desregulamentação do mercado de trabalho.”

É pois com a ideologia neo-liberal que as televisões estão a tentar convencer-nos que facilitar o desemprego é bom para a economia portuguesa. É uma pena, mas tem de ser. O sacrifício dos desempregados e da classe média-baixa é necessário para aplacar os “mercados financeiros”. E se os (ainda) empregados aceitarem de bom grado descer os seus salários nominais (reparem que nunca mostram as contas), acabarão por relançar o crescimento económico … mesmo sem que haja procura!

A população está a ser intoxicada com a retórica do “é inevitável e é para o nosso bem”, ao mesmo tempo que se insinua: e se houver protestos ainda vai ser pior. É que os mercados financeiros têm aversão a manifestações. Gera incerteza sobre os ganhos esperados.

Porém, algo me diz que desta vez a anestesia vai ter mais dificuldade em pegar. É apenas uma intuição porque estamos no domínio da incerteza radical. Como se resolverá a tensão política entre a Alemanha e a periferia da UE (este artigo coloca bem a questão)? Em Portugal, e no resto da periferia, será possível converter o protesto social em alternativa de governo?

É tempo de pensar o impensável (ler isto). Ou, como diz o "Manifesto dos economistas aterrorizados", é tempo de discutir a refundação da construção europeia.

6 comentários:

  1. Tenho uma questão ( não retórica): quais as vantagens que apontaria ao encerramento do paraiso fiscal da Madeira se o das Canárias ( e outros ) se mantiverem abertos ?

    Obrigado.

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  2. Caro Manuel Rocha,

    A sua questão é pertinente e a resposta talvez seja inesperada para muitos leitores.
    E é simples: por um imperativo moral.
    É tempo de nos conduzirmos (também colectivamente) segundo razões de decência.
    Acontece que neste caso, como aliás em muitos outros, a razão moral até vem acompanhada de vantagens. O encerramento do paraíso fiscal da Madeira abriria um precedente que abalaria o actual estado de coisas e passaria a ser invocado como precedente no debate público que provocaria na UE. Seria o princípio do fim dos refúgios dos capitais criminosos.

    Sabia que em momentos de encruzilhada, de grande instabilidade em sistemas altamente complexos, uma pequeno evento pode desencadear uma avalanche de acontecimentos?

    Obrigado pela pergunta.

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  3. O manifesto dos economistas aterrados de que Jorge Bateira faz eco neste seu interessante post é,seguramente,um documento que merece um amplo debate no nosso País pelas implicações que pode vir a ter na orientação da política económica nacional e comunitária. Assinalo que, entre nós, quem pela primeira vez chamou a atenção para esta tomada de posição dos economistas franceses foi Isabel Roque de Oliveira, em 15de Setembro no blogue "A areia dos dias"

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  4. Caro Jorge Bateira:

    Estou completamente de acordo com a sua resposta. A cultura de bons principios tem de começar por algum lado e de bastar como justificação.

    Cumprimentos.

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  5. É tempo mas é de acabar e já de imediato, agora, com UE tal como se encontra.
    Os povos europeus têm de se fazer ouvir e de se levantar contra toda esta iniquidade.
    Afinal de contas a ideia duma UE não era estreitar laços e unir, em todos os campos, os povos europeus e assim trazer a todos, bem estar, prosperidade e paz á europa. !?

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  6. Por onde começar para acabar com o off-shore da Madeira?

    Deverá partir de uma iniciativa de cidadãos?

    Os Ladrões de Bicicletas vão lançar uma petição para o efeito?

    Gostaria de participar mas não tenho qualquer fluência nesta área.

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