Está neste momento em fase de discussão uma Directiva sobre a aplicação dos direitos dos doentes em matéria de cuidados de saúde transfronteiriços. Na proposta da Comissão, assim como no relatório que foi aprovado pelo Parlamento, os doentes europeus podem deslocar-se a qualquer Estado-Membro, aí usufruírem de cuidados de saúde hospitalares e serem reembolsados. Dir-se-ia que o princípio e o direito seriam inquestionáveis. Mas. Há sempre alguns ‘mas’ e, neste caso, os custos (directos e indirectos) que serão pagos pelos doentes estão muito acima do defensável. Podemos tomar como exemplo o caso português.
Em Portugal (ainda) cabe ao Estado, através do Sistema Nacional de Saúde, assegurar o direito à saúde de todos/as mediante um serviço de carácter universal. Ora, esta directiva obrigará à revisão do SNS, não se limitando, portanto, à regulamentação dos direitos dos doentes em matéria transfronteiriça.
Esta directiva tem como base jurídica o Artigo 95 do Tratado ainda em vigor, restringindo, assim, os tratamentos transfronteiriços a uma lógica de livre oferta e procura de serviços. Nesta directiva, não há distinção entre prestadores privados sem qualquer relação contratual com os sistemas de saúde e os outros. Com esta directiva, não é necessário haver uma autorização prévia para que os cuidados sejam prestados em outro país e não garantidos pelo SNS, o critério para validar essa escolha é tão-somente o livre critério individual – não é necessária intervenção do médico, não é necessária qualquer referenciação clínica que garanta a qualidade dos cuidados que vão ser prestados. Dispenso aqui a identificação de todos os problemas que esta Directiva suscita. O que está aqui verdadeiramente em causa é que, sob a suposta salvaguarda dos direitos dos doentes aos cuidados transfronteiriços, diluem-se as responsabilidades dos Estados-Membros em matéria de prestação, organização e garantia dos cuidados médicos no âmbito dos seus serviços de saúde. Há países onde a factura do reembolso vai pesar mais do que noutros.
No caso português essa factura vai ser muito pesada. O reembolso dos cuidados de saúde transfronteiriços não poderá vir senão do cada vez mais depauperado orçamento do SNS. Em outros países, não haverá grande mudança. Já conseguiram a liberalização e a institucionalização da saúde como um negócio. O Estado tem obrigação de garantir o direito aos cuidados de saúde de todos/as. Se não pode fazê-lo no quadro do seu sistema de saúde deve garantir obviamente o reembolso dos cuidados prestados fora. O Estado já paga hoje tratamentos no estrangeiro, dentro e fora do espaço da União, sempre que o SNS não dispõe de recursos técnicos para assegurar tratamentos ou exames disponíveis nesses países, mediante referenciação de uma equipa da DGS que se encarrega do estudo desses casos. Ora, o que esta directiva permite é que se pague um cheque em branco. E há sempre a imensa maioria a quem é concedida uma liberdade de que nunca poderá usufruir.
Independentemente do reembolso ou não, é essa imensa maioria que nunca terá condições para livremente ir a outro país tratar-se e esperar pelo reembolso. Esta proposta da Comissão já foi votada no mandato anterior pelo Parlamento, tendo passado com uma ‘esmagadora’ maioria de 52% (!) dos votos, resultado a que não foi alheio a abstenção do Partido Socialista Europeu. Falta agora o veredicto do Conselho no início de Dezembro, antes do final da Presidência Sueca. Decide-se já ou passa para a Presidência Espanhola.
O que me espanta é o silêncio. A entrar em vigor, resta-nos saber depois as implicações resultantes da revisão do SNS português e quais os cuidados e direitos de que vamos abdicar para consagrar no orçamento o reembolso dos cuidados transfronteiriços. Uma coisa é certa, o ‘turismo de saúde’ sai reforçado. Promover-se-ão cuidados cuja utilidade médica pode ser questionada, mas poder-se-ão alimentar futilidades estéticas e plásticas.
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