Paulo Ferreira dedica o seu editorial do Público de hoje ao aniversário da falência do Lehman Brothers, momento que marcou o início de uma onda de pânico no sistema financeiro internacional e que se transformou rapidamente na maior crise económica e social, de escala planetária, desde a 2ª Guerra Mundial. O Director Adjunto do Público aproveita a data para defender aquilo que tem vindo a tornar-se no dogma pós-crise: a noção de que a crise se ficou a dever à falta de regulação e supervisão dos sistemas financeiros e que qualquer tentativa de «tirar conclusões ideológicas mais vastas já é uma passada que os acontecimentos dificilmente suportam» (cito).
O truque retórico é velho (e frequentemente eficaz): as minhas ideias baseiam-se em factos e não requerem mais demonstração; as tuas são «ideologia» e cabe-te a ti demonstrá-las.
De facto, eu não tenho grandes dificuldades em tirar conclusões bastante mais vastas do que aquelas a que chega Paulo Ferreira. Já aqui tive oportunidade de escrever que, para prevenir novas crises e para garantir um crescimento sustentado e socialmente menos injusto, é preciso ir além do reforço da supervisão e da regulação do sistema financeiro, nomeadamente controlando os movimentos de capitais e diminuido o peso do sector financeiro nas economias contemporâneas (dois objectivos indissociáveis, na verdade).
Por mais de uma vez chamámos aqui a atenção para este gráfico:
Há duas mensagens que saltam à vista neste gráfico: 1) a actual crise não é senão o mais recente episódio de uma sucessão de crises que afecta a economia mundial desde a década de 1970 (117 episódios entre 1970 e 2003, segundo o Banco Mundial); e 2) esta sucessão de crises está intrinsecamente ligada ao aumento da mobilidade do capital a nível internacional (elemento central de um modelo de desenvolvimento económico assente na acumulação de capital financeiro e no aumento de poder de negociação do sector financeiro face aos restantes agentes económicos - incluindo empresas do sector não-financeiro, Estados, trabalhadores e consumidores).
Pode ser confortável para Paulo Ferreira (e para muitos outros) pensar que com mais regulação e supervisão bancária a instabilidade desaparece - e com ela o crescimento anémico e as desigualdades sociais. Mas, por si só, o aumento da regulação e da supervisão em nada vão alterar o modelo de acumulação que tem prevalecido nas últimas três décadas. Os dados que conheço levam-me a acreditar que é preciso muito mais do que isso.
Há algo de positivo na cegueira de Paulo Ferreira, e nos governos em geral. Esta primeira grande crise gerou antes de mais perplexidade entre as pessoas: "então o Capitalismo, o mercado, não é infalível?". No entanto, os governos conseguiram (para já) evitar o pior sem que a maioria das pessoas tenha sido directamente afectada de modo substancial. Mas, tal com o Nuno Teles afirma e bem, esta crise não é nem será única. Insere-se num padrão, e sem medidas sistémicas, novas crises tão ou mais graves surgirão. Nessa altura as pessoas não vão ficar apenas perplexas. Vão ficar com raiva, imensa raiva. Pode-se perdoar uma vez, e voltar a ter confiança. Mas habitualmente à segunda a confiança desaparece de vez. E a raiva pode levar a uma convulsão social, e a uma mudança mais radical do sistema sócio-económico do que seria possível politicamente agora. Os governos continuam a brincar com o fogo. Esperemos que se queimem bem, e contribuam para enterrar de vez o Capitalismo.
ResponderEliminar