Celebrando o bicentenário de Charles Darwin, e os 150 anos da sua obra ‘A Origem das Espécies’, têm sido publicados alguns textos que, confesso, me deixam algo incomodado. Um deles é a entrevista dada ao jornal Público (P2, p. 10, Sábado, 24 Janeiro 2009) pelo Prof. Michael Ruse, filósofo da ciência na Universidade da Florida. Dois outros exemplos estão publicados aqui e aqui.
Michael Ruse realça a perenidade da ideia de ‘selecção natural’: “a teoria continua, como no primeiro dia, a explicar a organização do mundo vivo. … nem o advento da biologia molecular nem o poder da genética moderna conseguiram tornar obsoleta a sua teoria da evolução. … A teoria evoluiu, mas continua a ser a mesma.”
De facto, o esquema de Darwin (variação-selecção-retenção) acabou por se combinar com a genética e formar aquilo que hoje se designa por “Síntese Moderna”, o neo-darwinismo. Quanto a teorias críticas do neo-darwinismo, Ruse menciona com alguma displicência a teoria do Equilíbrio Pontuado de Stephen Jay Gould. Como é evidente, a polémica com o criacionismo interessava mais à jornalista.
Eu, que gosto de espreitar para lá dos limites da minha disciplina, há anos que conheço os contributos de D. Depew e B. Weber. Estes autores, um filósofo da biologia, outro bioquímico, discutem as limitações do evolucionismo moderno e defendem que o neo-darwinismo tem de abandonar alguns dos seus pressupostos para poder dialogar com as teorias sobre a emergência da vida (processos catalíticos, auto-organizados, ao nível da química) e integrar os contributos da biologia do desenvolvimento (a variação não é apenas acaso) e da ecologia (variação e selecção são interdependentes).
Uma outra corrente da biologia com que Depew e Weber dialogam, a Teoria dos Sistemas em Desenvolvimento (Developmental Systems Theory) de que Susan Oyama é líder, vai mais longe e faz uma crítica arrasadora do neo-darwinismo erigido em paradigma dominante na biologia dos nossos dias. Esta corrente contesta o geneticismo e defende que o material genético não é o único recurso que herdamos e nem sequer poderia dar o seu contributo sem a colaboração dos restantes recursos herdados, o que inclui todo o corpo da mãe e as condições materiais e culturais do ambiente que sustenta a geração de um novo ciclo de vida. Ou seja, a unidade evolutiva não é o gene (este não tem nenhum ‘programa’ onde já esteja pré-formado o futuro ser) mas o ‘ciclo da vida’. É, portanto, uma teoria da evolução mais aberta à interdisciplinaridade, muito mais distante do neo-darwinismo.
Isto, já para não falar de Stanley Salthe, um respeitado biólogo que é ainda mais radical na rejeição do neo-darwinismo.
Afinal, tal como na economia, também na biologia há um paradigma dominante (o neo-darwinismo) que neste momento está a ser desafiado a partir de diferentes pontos de vista mais ou menos convergentes. Neste livro, neste outro, e ainda neste, é possível encontrar uma variedade de textos de investigadores de vanguarda que rejeitariam rotundamente o título dado à entrevista ao Prof. Ruse: “O darwinismo está bem e recomenda-se”. E também esta frase: “a Evolução Darwiniana continuará a constituir o princípio unificador da biologia, e logo, do nosso entendimento da Vida.”
O que é que se passa com a comunidade dos biólogos portugueses para que seja um economista a vir recordar que o pluralismo é inerente à aventura científica, e que há mais biologia para além do (neo)darwinismo?
Da ultima frase da entrada sobre neo-darwinismo:
ResponderEliminar"However, what some see as threats to the modern synthesis, others see as theories that can be included within the umbrella of a broader, more pluralistic modern synthesis (Gould 2002"
O darwinismo (sem Neo) é o principio unificador: evolução por selecção natural.
Os detalhes continuarão a gerar debate e a ser o campo onde a ciência avança...
(Não sou Biólogo. Embora tenha estudado para o ser...)
Caro L. Rodrigues
ResponderEliminarOs biólogos que a minha posta refere não discutem os detalhes da teoria da selecção natural. Põem em causa os seus pilares!
Por isso, a entrada sobre o neo-darwinismo termina com uma frase que talvez possa ser subscrita por Depew e Weber, mas já não pelos restantes autores referidos.
Obrigado pelo comentário.
Acho isso tudo uma grande treta. A resposta certa é intelligent design.
ResponderEliminarBateira,
ResponderEliminarExplicita lá quais são os "pilares" que são postos em causa?
Porque é a falar que a gente se entende.
"Esta corrente contesta o geneticismo e defende que o material genético não é o único recurso que herdamos e nem sequer poderia dar o seu contributo sem a colaboração dos restantes recursos herdados, o que inclui todo o corpo da mãe e as condições materiais e culturais do ambiente que sustenta a geração de um novo ciclo de vida. Ou seja, a unidade evolutiva não é o gene (este não tem nenhum ‘programa’ onde já esteja pré-formado o futuro ser) mas o ‘ciclo da vida’. É, portanto, uma teoria da evolução mais aberta à interdisciplinaridade, muito mais distante do neo-darwinismo."
ResponderEliminarGostava que me explicassem isto. Não herdamos apenas genes dos nossos pais? Existe uma fertilização de um ovulo por um espermatozoide, cada um leva os seus cromossomas, estes misturam-se, e o resultado final é o mapa genetico da criancinha. O que é que se pode herdar, além de genes?
Caro Alexandre,
ResponderEliminarA resposta à sua pergunta é simples: além do material genético, herdamos também os nossos pais e o meio natural-social-cultural da família onde nascemos.
Fico satisfeito que queira aprofundar o assunto, mas justamente prevendo isso tornei acessível através da entrada 'Susan Oyama' um texto relativamente acessível do ponto de vista técnico embora em inglês.
Muito telegraficamente, o neo-darwinismo não é compatível com o seguinte:
1. Em vez de causalidades lineares, são múltiplas causas entrelaçadas num sistema complexo e auto-organizado que sustentam o desenvolvimento do indivíduo;
2. Sensibilidade à contingência e ao contexto, o que significa que causalidades exteriores ao material genético interferem nos processos em que estes participam;
3. Herança de um sistema alargado de recursos que participam interactivamente no processo de desenvolvimento do organismo;
4. O desenvolvimento é um processo de construção envolvendo vários recursos, incluindo os genes. Não é simplesmente a 'transcrição' de informação pré-existente nos genes;
5. Nenhum dos recursos controla a totalidade do processo interactivo de desenvolvimento;
6. Em vez de se tratar de uma questão de indivíduos (ou populações) moldados pelo seu ambiente, a evolução é um processo de construção e reconstrução de ciclos de vida, de sistemas 'organismo-ambiente' que mudam ao longo do tempo.
Ver Introdução de Oyama et al. 'Cycles of Contingency'.
Obrigado pela participação.
"A resposta à sua pergunta é simples: além do material genético, herdamos também os nossos pais e o meio natural-social-cultural da família onde nascemos."
ResponderEliminar1 pergunta: este "herdar" tem a ver com a influencia do meio no desenvolvimento da pessoa? Ou com uma noção de "cultura gravada no dna"? No fundo, isto nem interessa, as 2 hipoteses são conceitos nada radicais e bem aceites.
"Fico satisfeito que queira aprofundar o assunto, mas justamente prevendo isso tornei acessível através da entrada 'Susan Oyama' um texto relativamente acessível do ponto de vista técnico embora em inglês."
Foi o pdf que disponibilizou? Li e fiquei um pouco na mesma.
"Muito telegraficamente, o neo-darwinismo não é compatível com o seguinte:
1. Em vez de causalidades lineares, são múltiplas causas entrelaçadas num sistema complexo e auto-organizado que sustentam o desenvolvimento do indivíduo;"
É dificil discordar disto :)
"2. Sensibilidade à contingência e ao contexto, o que significa que causalidades exteriores ao material genético interferem nos processos em que estes participam;"
Claro. Outra vez, acho que toda a gente concorda com isto.
"3. Herança de um sistema alargado de recursos que participam interactivamente no processo de desenvolvimento do organismo;"
"Herança" como? Um exemplo dava jeito...
"4. O desenvolvimento é um processo de construção envolvendo vários recursos, incluindo os genes. Não é simplesmente a 'transcrição' de informação pré-existente nos genes;"
Claro. Os genes por si só não fazem nada...
"5. Nenhum dos recursos controla a totalidade do processo interactivo de desenvolvimento;"
Yep.
"6. Em vez de se tratar de uma questão de indivíduos (ou populações) moldados pelo seu ambiente, a evolução é um processo de construção e reconstrução de ciclos de vida, de sistemas 'organismo-ambiente' que mudam ao longo do tempo."
Acho isto tudo muito confuso e não vejo nada ali que contradiga a visão new darwinista da evolução - que é simplesmente a junção dos principios de heredetariedade e de selecção natural com a noção de que o gene é o denominador minimo comum de selecção.
quando digo "a noção de que o gene é o denominador minimo comum de selecção" sei que as palavras não são as melhores :)
ResponderEliminarenfim, gene como a coisa mais parecida com unidade indivisivel do dna..
E Bateira, as alternativas que indicou são supostamente alternativas à visão da evolução centrada no gene (ou neo darwinismo). Mas essas alternativas continuam perfeitamente "darwinistas" (sem o neo).
Sim, com certeza o 'ciclo de vida'.
ResponderEliminarVejo que a ciência quer ser tão precisa, colocar tantos nomes nos bois e controlar o que acontece com o ser humano que acaba por se perder no meio dessas nomeclaturas todas e por não conseguir explicar as coisas, pára de observar e acha que encontrou a resposta.
Não sou bióloga, mas tenho grande interesse por assuntos ligados à origem da vida. Acho que a teoria de Darwin faz total sentido, estão comemorando o ano/mês de Darwin em vários veículos. Vocês chegaram a ver aquele do NatGeo? Assisti ao último e gostei bastante. Neste domingo vai passar o último capítulo, pelo que diz no site. http://natgeo.uol.com.br/especiais/mes-do-darwin/
Abraços!
Caro Jorge Bateira,
ResponderEliminarAchei a sua posta muito interessante, mas devo dizer que a discussão me parece essencialmente semântica (i.e. te sobretudo a ver com o que se entende por 'darwinismo').
Tal como explicado neste artigo ( http://www.isreview.org/issues/65/feat-MarxDarwin.shtml ), o contributo revolucionário de Darwin consistiu em dar um golpe fatal no essencialismo e teleologia anteriormente dominantes na biologia, através de um modelo de explicação da origem das espécies (categoria analítica abstracta e num certo sentido 'arbitrária') assente na pressão populacional, variação e hereditariedade e selecção natural. Que estes últimos processos ocorrem na natureza, parece-me relativamente pouco discutível. Que podem ser articulados para proporcionar a mais poderosa e 'realista' explicação da evolução diacrónica das formas e características dos seres vivos, também me parece mais ou menos evidente para quase toda a gente(excepto para os criacionistas).
Naturalmente, o que está profundamente errado é a extrapolação indevida deste modelo para a análise de questões sociais, económicas, políticas ou éticas. Devemos combater o darwinismo social pelos seus erros de análise e pelas suas perigosas implicações políticas, mas até ver não encontro motivos para que devamos pôr em causa o fundamental do modelo darwinista (tal como 'definido' acima).
Por tudo isto, parece-me realmente que o darwinismo (neste sentido) "vai bem e recomenda-se" - aliás, tomara eu que no nosso próprio domínio de estudo (a Economia) quadros teóricos igualmente materialistas e históricos fossem dominantes.