sábado, 14 de fevereiro de 2009

O darwinismo é o princípio unificador da biologia?



Celebrando o bicentenário de Charles Darwin, e os 150 anos da sua obra ‘A Origem das Espécies’, têm sido publicados alguns textos que, confesso, me deixam algo incomodado. Um deles é a entrevista dada ao jornal Público (P2, p. 10, Sábado, 24 Janeiro 2009) pelo Prof. Michael Ruse, filósofo da ciência na Universidade da Florida. Dois outros exemplos estão publicados aqui e aqui.

Michael Ruse realça a perenidade da ideia de ‘selecção natural’: “a teoria continua, como no primeiro dia, a explicar a organização do mundo vivo. … nem o advento da biologia molecular nem o poder da genética moderna conseguiram tornar obsoleta a sua teoria da evolução. … A teoria evoluiu, mas continua a ser a mesma.”

De facto, o esquema de Darwin (variação-selecção-retenção) acabou por se combinar com a genética e formar aquilo que hoje se designa por “Síntese Moderna”, o neo-darwinismo. Quanto a teorias críticas do neo-darwinismo, Ruse menciona com alguma displicência a teoria do Equilíbrio Pontuado de Stephen Jay Gould. Como é evidente, a polémica com o criacionismo interessava mais à jornalista.

Eu, que gosto de espreitar para lá dos limites da minha disciplina, há anos que conheço os contributos de D. Depew e B. Weber. Estes autores, um filósofo da biologia, outro bioquímico, discutem as limitações do evolucionismo moderno e defendem que o neo-darwinismo tem de abandonar alguns dos seus pressupostos para poder dialogar com as teorias sobre a emergência da vida (processos catalíticos, auto-organizados, ao nível da química) e integrar os contributos da biologia do desenvolvimento (a variação não é apenas acaso) e da ecologia (variação e selecção são interdependentes).

Uma outra corrente da biologia com que Depew e Weber dialogam, a Teoria dos Sistemas em Desenvolvimento (Developmental Systems Theory) de que Susan Oyama é líder, vai mais longe e faz uma crítica arrasadora do neo-darwinismo erigido em paradigma dominante na biologia dos nossos dias. Esta corrente contesta o geneticismo e defende que o material genético não é o único recurso que herdamos e nem sequer poderia dar o seu contributo sem a colaboração dos restantes recursos herdados, o que inclui todo o corpo da mãe e as condições materiais e culturais do ambiente que sustenta a geração de um novo ciclo de vida. Ou seja, a unidade evolutiva não é o gene (este não tem nenhum ‘programa’ onde já esteja pré-formado o futuro ser) mas o ‘ciclo da vida’. É, portanto, uma teoria da evolução mais aberta à interdisciplinaridade, muito mais distante do neo-darwinismo.

Isto, já para não falar de Stanley Salthe, um respeitado biólogo que é ainda mais radical na rejeição do neo-darwinismo.

Afinal, tal como na economia, também na biologia há um paradigma dominante (o neo-darwinismo) que neste momento está a ser desafiado a partir de diferentes pontos de vista mais ou menos convergentes. Neste livro, neste outro, e ainda neste, é possível encontrar uma variedade de textos de investigadores de vanguarda que rejeitariam rotundamente o título dado à entrevista ao Prof. Ruse: “O darwinismo está bem e recomenda-se”. E também esta frase: “a Evolução Darwiniana continuará a constituir o princípio unificador da biologia, e logo, do nosso entendimento da Vida.”

O que é que se passa com a comunidade dos biólogos portugueses para que seja um economista a vir recordar que o pluralismo é inerente à aventura científica, e que há mais biologia para além do (neo)darwinismo?

10 comentários:

  1. Da ultima frase da entrada sobre neo-darwinismo:
    "However, what some see as threats to the modern synthesis, others see as theories that can be included within the umbrella of a broader, more pluralistic modern synthesis (Gould 2002"

    O darwinismo (sem Neo) é o principio unificador: evolução por selecção natural.
    Os detalhes continuarão a gerar debate e a ser o campo onde a ciência avança...

    (Não sou Biólogo. Embora tenha estudado para o ser...)

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  2. Caro L. Rodrigues

    Os biólogos que a minha posta refere não discutem os detalhes da teoria da selecção natural. Põem em causa os seus pilares!
    Por isso, a entrada sobre o neo-darwinismo termina com uma frase que talvez possa ser subscrita por Depew e Weber, mas já não pelos restantes autores referidos.
    Obrigado pelo comentário.

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  3. Acho isso tudo uma grande treta. A resposta certa é intelligent design.

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  4. Bateira,

    Explicita lá quais são os "pilares" que são postos em causa?

    Porque é a falar que a gente se entende.

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  5. "Esta corrente contesta o geneticismo e defende que o material genético não é o único recurso que herdamos e nem sequer poderia dar o seu contributo sem a colaboração dos restantes recursos herdados, o que inclui todo o corpo da mãe e as condições materiais e culturais do ambiente que sustenta a geração de um novo ciclo de vida. Ou seja, a unidade evolutiva não é o gene (este não tem nenhum ‘programa’ onde já esteja pré-formado o futuro ser) mas o ‘ciclo da vida’. É, portanto, uma teoria da evolução mais aberta à interdisciplinaridade, muito mais distante do neo-darwinismo."

    Gostava que me explicassem isto. Não herdamos apenas genes dos nossos pais? Existe uma fertilização de um ovulo por um espermatozoide, cada um leva os seus cromossomas, estes misturam-se, e o resultado final é o mapa genetico da criancinha. O que é que se pode herdar, além de genes?

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  6. Caro Alexandre,

    A resposta à sua pergunta é simples: além do material genético, herdamos também os nossos pais e o meio natural-social-cultural da família onde nascemos.
    Fico satisfeito que queira aprofundar o assunto, mas justamente prevendo isso tornei acessível através da entrada 'Susan Oyama' um texto relativamente acessível do ponto de vista técnico embora em inglês.

    Muito telegraficamente, o neo-darwinismo não é compatível com o seguinte:
    1. Em vez de causalidades lineares, são múltiplas causas entrelaçadas num sistema complexo e auto-organizado que sustentam o desenvolvimento do indivíduo;
    2. Sensibilidade à contingência e ao contexto, o que significa que causalidades exteriores ao material genético interferem nos processos em que estes participam;
    3. Herança de um sistema alargado de recursos que participam interactivamente no processo de desenvolvimento do organismo;
    4. O desenvolvimento é um processo de construção envolvendo vários recursos, incluindo os genes. Não é simplesmente a 'transcrição' de informação pré-existente nos genes;
    5. Nenhum dos recursos controla a totalidade do processo interactivo de desenvolvimento;
    6. Em vez de se tratar de uma questão de indivíduos (ou populações) moldados pelo seu ambiente, a evolução é um processo de construção e reconstrução de ciclos de vida, de sistemas 'organismo-ambiente' que mudam ao longo do tempo.

    Ver Introdução de Oyama et al. 'Cycles of Contingency'.

    Obrigado pela participação.

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  7. "A resposta à sua pergunta é simples: além do material genético, herdamos também os nossos pais e o meio natural-social-cultural da família onde nascemos."

    1 pergunta: este "herdar" tem a ver com a influencia do meio no desenvolvimento da pessoa? Ou com uma noção de "cultura gravada no dna"? No fundo, isto nem interessa, as 2 hipoteses são conceitos nada radicais e bem aceites.

    "Fico satisfeito que queira aprofundar o assunto, mas justamente prevendo isso tornei acessível através da entrada 'Susan Oyama' um texto relativamente acessível do ponto de vista técnico embora em inglês."

    Foi o pdf que disponibilizou? Li e fiquei um pouco na mesma.

    "Muito telegraficamente, o neo-darwinismo não é compatível com o seguinte:
    1. Em vez de causalidades lineares, são múltiplas causas entrelaçadas num sistema complexo e auto-organizado que sustentam o desenvolvimento do indivíduo;"

    É dificil discordar disto :)

    "2. Sensibilidade à contingência e ao contexto, o que significa que causalidades exteriores ao material genético interferem nos processos em que estes participam;"

    Claro. Outra vez, acho que toda a gente concorda com isto.

    "3. Herança de um sistema alargado de recursos que participam interactivamente no processo de desenvolvimento do organismo;"

    "Herança" como? Um exemplo dava jeito...

    "4. O desenvolvimento é um processo de construção envolvendo vários recursos, incluindo os genes. Não é simplesmente a 'transcrição' de informação pré-existente nos genes;"

    Claro. Os genes por si só não fazem nada...

    "5. Nenhum dos recursos controla a totalidade do processo interactivo de desenvolvimento;"

    Yep.

    "6. Em vez de se tratar de uma questão de indivíduos (ou populações) moldados pelo seu ambiente, a evolução é um processo de construção e reconstrução de ciclos de vida, de sistemas 'organismo-ambiente' que mudam ao longo do tempo."

    Acho isto tudo muito confuso e não vejo nada ali que contradiga a visão new darwinista da evolução - que é simplesmente a junção dos principios de heredetariedade e de selecção natural com a noção de que o gene é o denominador minimo comum de selecção.

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  8. quando digo "a noção de que o gene é o denominador minimo comum de selecção" sei que as palavras não são as melhores :)

    enfim, gene como a coisa mais parecida com unidade indivisivel do dna..

    E Bateira, as alternativas que indicou são supostamente alternativas à visão da evolução centrada no gene (ou neo darwinismo). Mas essas alternativas continuam perfeitamente "darwinistas" (sem o neo).

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  9. Sim, com certeza o 'ciclo de vida'.

    Vejo que a ciência quer ser tão precisa, colocar tantos nomes nos bois e controlar o que acontece com o ser humano que acaba por se perder no meio dessas nomeclaturas todas e por não conseguir explicar as coisas, pára de observar e acha que encontrou a resposta.

    Não sou bióloga, mas tenho grande interesse por assuntos ligados à origem da vida. Acho que a teoria de Darwin faz total sentido, estão comemorando o ano/mês de Darwin em vários veículos. Vocês chegaram a ver aquele do NatGeo? Assisti ao último e gostei bastante. Neste domingo vai passar o último capítulo, pelo que diz no site. http://natgeo.uol.com.br/especiais/mes-do-darwin/


    Abraços!

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  10. Caro Jorge Bateira,

    Achei a sua posta muito interessante, mas devo dizer que a discussão me parece essencialmente semântica (i.e. te sobretudo a ver com o que se entende por 'darwinismo').
    Tal como explicado neste artigo ( http://www.isreview.org/issues/65/feat-MarxDarwin.shtml ), o contributo revolucionário de Darwin consistiu em dar um golpe fatal no essencialismo e teleologia anteriormente dominantes na biologia, através de um modelo de explicação da origem das espécies (categoria analítica abstracta e num certo sentido 'arbitrária') assente na pressão populacional, variação e hereditariedade e selecção natural. Que estes últimos processos ocorrem na natureza, parece-me relativamente pouco discutível. Que podem ser articulados para proporcionar a mais poderosa e 'realista' explicação da evolução diacrónica das formas e características dos seres vivos, também me parece mais ou menos evidente para quase toda a gente(excepto para os criacionistas).
    Naturalmente, o que está profundamente errado é a extrapolação indevida deste modelo para a análise de questões sociais, económicas, políticas ou éticas. Devemos combater o darwinismo social pelos seus erros de análise e pelas suas perigosas implicações políticas, mas até ver não encontro motivos para que devamos pôr em causa o fundamental do modelo darwinista (tal como 'definido' acima).
    Por tudo isto, parece-me realmente que o darwinismo (neste sentido) "vai bem e recomenda-se" - aliás, tomara eu que no nosso próprio domínio de estudo (a Economia) quadros teóricos igualmente materialistas e históricos fossem dominantes.

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