sábado, 8 de novembro de 2008

O pecado original

A governação do PS, sob Sócrates, tem vários problemas fundamentais, mas se eu tivesse que erigir o seu pecado original diria que é a falta de diálogo social, sobretudo na educação. Este pecado original não só vem à revelia da tradição que o PS sempre defendeu, como também diverge das modernas tendências da governação democrática nas sociedades europeias (ver abaixo).

Esse pecado original foi hoje, mais uma vez, evidenciado pela gigantesca manifestação de professores do ensino não superior: cerca de 120 mil docentes (ou seja, à volta de 85% dos membros da classe) desfilaram pelas ruas de Lisboa em protesto contra uma avaliação que classificam de “injusta, burocrática e ineficiente” (e para a qual alegam ter propostas alternativas), mas também contra o modelo de gestão escolar (centrado exclusivamente na figura do director, em termos executivos, e que retira a maioria aos professores no órgão deliberativo), defendendo em alternativa um modelo de governação mais colegial e que mantenha os docentes em maioria, e o novo estatuto da carreira docente (sobretudo a divisão dos professores em titulares e não titulares, que pretendem ver eliminada, defendendo em alternativa uma progressão “meritocrática” mas sem quotas).

O pecado original resulta da ilusão de que é possível reformar alguma coisa, em algum domínio que seja, mas nomeadamente na educação, sem mobilizar os profissionais para as mudanças (por maioria de razão quando estes são altamente qualificados e gozam de significativa autonomia), não só tornando claras para esses profissionais as vantagens das mudanças, mas também oferecendo algumas contrapartidas para algumas perdas que porventura se perspectivam no seu estatuto e direitos (é sempre necessário algum trade off numa negociação…) – e nesta área as perdas têm sido muitas, mas o trade off tem sido reduzido ou nulo. (Sobre a importância da mobilização dos profissionais para o bom desempenho das instituições, e o défice da mesma nesta governação PS, veja-se o excelente artigo “autópsia a um reformismo iluminado”, de Jorge Bateira, Le Monde Diplomatique, nº 18, Abril de 2008, também recordado no post anterior).

É flagrante que o Ministério da Educação (ME) nunca conseguiu cativar os profissionais para as mudanças que pretende imprimir. Prova disso é a ausência de um qualquer acordo, com um qualquer sindicato. Inicialmente, alegou que o problema era dos sindicatos, que não seriam acompanhados pelos docentes nas suas reivindicações. Porém, quer a manifestação de cerca de 100 mil docentes, em 8/3/08, quer a mais recente de cerca de 120 mil docentes, em 8/11/08, evidenciaram à exaustação que os professores, na sua esmagadora maioria, subscrevem as críticas dos seus representantes sindicais. O ME diz agora que se trata apenas de pontos de vista diferentes, esquecendo-se que, mesmo se fosse efectivamente apenas isso, deveria imperativamente promover a aproximação de posições, a bem das reformas. Adicionalmente, o primeiro-ministro, aquando desta como da anterior manifestação de professores, diz que “não se impressiona com números, só com argumentos racionais” (cito de memória). Esta alegação, porém, é completamente inconsistente com outras actuações suas/do seu governo: que tipo de impressão lhe causaram os bloqueios de camionistas e de pescadores que quase paralisaram o país este ano, e a que tão rapidamente cedeu? Terão sido argumentos racionais? Ou terá sido apenas a força dos bloqueios?

Aquando da manifestação de 8/3/08, escrevi no Público (11/3/08): “se algumas tendências de mudança na governação democrática europeia existem, nomeadamente dos anos 1960 para cá, elas vão no sentido de se defender e estimular uma crescente participação dos cidadãos nos processos de tomada de decisão, muito para além do voto. Neste domínio, não só se tem assistido a um crescimento das chamadas “formas não convencionais de participação política” (manifestações, ocupações, bloqueios, boicotes, etc.), como tem existido um recurso crescente a novos canais institucionais para a expressão e incorporação das preferências (referendos, iniciativas legislativas populares, petições, etc.). Mais, o uso de formas não convencionais será tanto maior quanto menos bem funcionarem os mecanismos tradicionais de concertação. Passando ao caso português, é imperioso concluir que a gigantesca manifestação de cerca de 100 mil professores não só demonstra uma enorme insatisfação de cerca de dois terços desta classe profissional, como evidencia que os mecanismos de concertação não têm funcionado, dando razão aos sindicatos. Mas esta manifestação, com pessoas de todos os partidos e quadrantes ideológicos (nomeadamente muitíssimos votantes PS, em 2005…), foi também uma grande lição de participação cívica.” Triste é verificar que a situação não só não melhorou desde então, como se terá até agravado (a julgar pelo número de manifestantes). Positiva é apenas mais uma impressionante lição de participação cívica.

Na minha perspectiva, um dos pontos positivos da atitude do governo em funções, quando começou a governar, foi a de rejeitar a ideia de que tudo o que tinha sido feito antes dele estava mal e precisava de ser radicalmente mudado. Na educação, porém, parece que tudo o que existia antes estava mal feito, e o próprio primeiro-ministro deu essa ideia na sua última entrevista ao DN (25 e 26/10/08). Exemplo: os alegados bons resultados deste governo, nas notas, no abandono escolar, etc., seriam tudo mérito exclusivo desta governação. Mas a verdade é esta: ou as mudanças são substantivas, isto é, os alunos sabem efectivamente mais e abandonam menos a escola, e então inscrevem-se num percurso gradual e paulatino que vem de trás (embora possa ter sido amplificado por medidas recentes), ou trata-se de meros artifícios estatísticos (infelizmente, parece existir alguma evidência neste sentido: veja-se o artigo de António Barreto, no Público, 1/11/08, sobre os recentes resultados dos exames, nomeadamente a matemática), pois em apenas 3 anos dificilmente se mudam coisas fundamentais na educação…

Algumas boas medidas do ME, neste mandato, como a escola a tempo inteiro, a ideia das aulas de substituição (embora não necessariamente a sua operacionalização), etc., perdem-se no meio de uma enorme falta de diálogo social e no meio da dúvida (que se avoluma, segundo vários observadores muito mais qualificados do que eu) que muitos dos resultados apresentados derivam de artifícios estatísticos e não de melhorias substantivas. Verdade, rigor, exigência e um verdadeiro diálogo social precisam-se desesperadamente na educação portuguesa (negociando, de raiz, com os profissionais, a matriz do modelo de avaliação, do modelo de gestão escolar e do estatuto da carreira docente, etc.). A bem de uma escola pública exigente e de qualidade, o que só se consegue com profissionais altamente motivados para as mudanças.

4 comentários:

  1. Num espaço que no tempo do ambiente de consenso neo-liberal sempre afirmou, e bem, que não é por ser usado pelos rebanhos que um caminho é bom, preferia ver abordados e discutidos os factos em lugar dos números de desfilantes.E isto, claro, para não falar de uma análise mais rigorosa da composição desses números. Questões de coerência, diria eu.

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  2. As Corporações/Grupos Profissionais nunca se autoreformam - a análise histórica assim o prova.
    Defendem (e é por isso e nisso que consensam) a melhoria dos seus privilégios e/ou a defesa do status quo (em fases defensivas).
    Os Sindicatos(nomeadamente a Fenprof) e os "movimentos populares", na minha opinião, estão a preparar o caminho...para a privatização do Ensino Público a executar pelo próximo Governo da Direita que existir em Portugal.
    Descabido ?!
    (Vidé o que já está a acontecer em Itália com o Governo Berlusconi).

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  3. Bullshit. Por essa ordem de ideias nada se faz sem ser pactuado.

    Esse é o regime das relações entre o Estado e as confissões religiosas na Itália...

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  4. Concordo em linhas gerais com o diagnóstico.

    Um dos maiores problemas da política de educação deste governo, para lá de questões substantivas, reside na forma como as reformas foram apresentadas. As alterações foram percepcionadas (e assim foram comunicadas) como "repressivas", i.e., no pressuposto de que no corpo docente existia um regabofe generalizado que urgia disciplinar. E que esse era um problema fundamental na melhoria do nosso sistema educativo.

    Como é evidente, tendo por pressuposto declarado a ideia de que o corpo docente, no seu conjunto, não se rege por normas de boa conduta (chamemos-lhe assim), uma tal política assinou a sua condenação à partida ao garantir a hostilidade generalizada dos professores. Poderia ser diferente se as medidas fossem pensadas e comunicadas, procurando reforçar uma ética do professor. Isso exige partir de um pressuposto diferente, em minha opinião, mais realista: que a grande maioria da classe docente se rege por normas de conduta e que as regras formais devem procurar reforça-las, limitando os comportamentos "desviantes" (perdoe-se-me a expressão) de uma minoria - que os há e que urge sempre limitar de forma a não introduzir na classe um elemento de desmoralização. Infelizmente , o retrato do corpo docente oferecido por quem dirige a política educativa deste governo é o inverso, considerando que, sem regras formais que os obriguem, a maioria dos professores não é capaz de agir segundo o que chamei de ética do professor - o que é entendido como uma desconsideração por aqueles que são professores de corpo inteiro.

    De resto, estou convicto que os problemas fundamentais do nosso ensino residem na formação dos professores, nos conteúdos e nos métodos de ensino. Nestes aspectos, parece-me que a política educativa deste Governo poucas ou nenhumas alterações produziu.

    A questão da divisão da carreira docente em duas parece-me provocada por mera preocupação economicista. Que não é por isso menos importante. Valeria a pena, se calhar, encarar a questão de uma outra forma, reduzindo a importância da "subida de escalão" na carreira do professor. Como? Constatando que a carreira docente (e outras na administração pública) cristaliza desigualdades extremamente agudas, que não têm paralelo comparando por exemplo com qualquer país da UE-15 - o que tem o efeito perverso de fazer depender de forma inusitada a massa salarial do corpo docente da sua composição etária! Pergunto eu, faz sentido haver um desnível tão elevado de escalão para escalão - a tal forma que o rácio entre o salário de um professor à saída e à entrada na carreira ronda 2.5, valor sem paralelo na UE? Em minha opinião, não faz sentido e a negociação do Governo com os sindicatos deveria visar esta questão - a compressão da estrutura salarial da carreira docente. O sacrifício de uns seria o ganho de outros, no quadro da classe docente, ganhando-se creio alguma coesão. Parece-me que seria difícil aos sindicatos rejeitarem liminarmente uma negociação neste sentido, sem artifícios como a divisão da carreira docente...

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