
Vale mesmo a pena ler este editorial, da autoria de Luísa Bessa no
Jornal de Negócios, sobre a economia política da globalização e o aumento das desigualdades. Em Portugal, o debate começa a avançar. Alguns comentários, prosseguindo a discussão da última posta sobre globalização: (1) é verdade que quase todo o progresso em matéria de redução da pobreza absoluta tem ocorrido na China e na Índia: «Uma mais-valia para toda a humanidade, que aparece agora inesperadamente em risco pela subida dos preços dos alimentos»; (2) é curto falar em «abertura dos mercados» para descrever os ingredientes das trajectórias destas duas economias já que as «receitas» aplicadas estiveram muito longe da vulgata neoliberal (basta ver de quem é que ainda são as empresas chinesas que hoje adquirem activos de empresas norte-americanas ou prestar atenção aos controlos de capitais que estes dois países mantiveram); (3) é um facto que temos vindo a assistir a uma crescente discrepância entre a sorte das grandes empresas dos países avançados e as condições de segmentos cada vez mais vastos das classes trabalhadoras. Regressa assim o problema do brutal aumento das desigualdades e volta-se a colocar a questão da corrosão da legitimidade política do capitalismo ou pelo menos de algumas das suas configurações nacionais (o processo de aumento das desigualdades sendo geral não tem a mesma intensidade em todo o lado). Na ausência de reformas redistributivas («uma panela de pressão cuja válvula deixa de funcionar»), cada vez mais difíceis num contexto em que a livre circulação de capitais reergue o famoso ‘muro do dinheiro’, as «medidas proteccionistas» farão necessariamente parte da agenda. Os EUA têm uma forte tradição nesta área. Outros muros. Que às vezes podem bem ser necessários.
Não é claro para mim se o autor do post partilha da afirmação entre aspas aqui
ResponderEliminar**é verdade que quase todo o progresso em matéria de redução da pobreza absoluta tem ocorrido na China e na Índia: «Uma mais-valia para toda a humanidade, (...)»**
Acho estremamente perigoso comungar do ponto de vista, ou reproduzi-lo acriticamente, de que uma subida formal do rendimento monetário disponível equivale implicitamente a uma melhoria da qualidade de vida. Não faltam sinais quer na India quer na China de que o seu crescimento económico poderá até ter piorado a qualidade de vida média das suas populações. Por exemplo, na China a maior parte da população continua a ser rural, e tem sido prejudicada pelo "desenvolvimento chinês" directamente por exemplo através da forte degradação ambiental que a China está a sofrer e que só vai piorar a curto e médio prazo, e indirectamente através do fim dos apoios estatais no campo da saúde e educação.
Argumentar que deve haver crescimento económico, ou aumento de disponiblidade financeira e de consumo, porque sim, é fazer o jogo da Direita que sabe que tal beneficia sempre as "classes altas". Mas nem sempre beneficia a esmagadora maioria da população. A esquerda não deve defender o crescimento económico. Não é esse o seu objectivo, nem tem interesse nas suas consequências mais prováveis (como o aumento da desigualdade). O que a Esquerda deve sempre defender é o desenvolvimento social, e nesse contexto, analisar que tipo de medidas de cariz sócio-económico são mais adequadas. Até pode passar pelo incentivo a uma efectiva regressão ou estagação da capacidade consumidora da sociedade, ver por exemplo
en.wikipedia.org/wiki/Zero_growth
en.wikipedia.org/wiki/Growth_Fetish
Caro Pedro Viana,
ResponderEliminarA redução da pobreza absoluta na China, na Índia ou no Vietname (caso menos falado mas mais impressionante em termos da melhoria dos indicadores sociais) é uma boa notícia. Centenas de milhões de pessoas deixaram de viver com menos de um dólar por dia. Isto não vai contra as suas importantes considerações. O crescimento é um ingrediente necessário, mas não suficiente do desenvolvimento. Sobretudo quando o ponto de partida é tão baixo. Isto também não influencia a apreciação negativa dos regimes políticos chinês ou vietnamita.
O crescimento económico com redistribuição, sobretudo em países pobres, é um objectivo de esquerda. Não é porque sim, é porque as pessoas têm que comer, vestir, poder ter acesso a uma casa decente, ir à escola, ter acesso a serviços de saúde. As condições materiais para uma existência humana.
É evidente que é curto, como já disse, falar apenas de crescimento. Ainda por cima quando a obtenção de resultados rápidos em termos sociais, por exemplo nas áreas da saúde e da educação, exige poucos recursos...
"A redução da pobreza absoluta na China, na Índia ou no Vietname (...) é uma boa notícia. Centenas de milhões de pessoas deixaram de viver com menos de um dólar por dia."
ResponderEliminarE depois?... Que adianta ter mais de um dólar por dia se se em troca se passou a viver num pequeno quarto com mais pessoas, numa cidade poluída, habitada por uma mole humana indiferente e viciada no consumo? Ou se se é obrigado a abandonar de modo de vida pela competição com a produção agro-industrial?
O joão rodrigues não se apercebe que partilha duma visão claramente etnocentrista através de afirmações como "a redução da probeza absoluta é uma boa notícia. Centenas de milhões de pessoas deixaram de viver com menos de um dólar por dia."? E que, apesar das boas intenções, aplaudir cegamente o atingir de tal objectivo pode efectivamente equivaler a apoiar medidas que prejudicam gravemente milhões de pessoas? Exemplos não faltam: constroi-se uma barragem, expulsam-se centenas de milhares de pessoas, que até eventualmente vão aumentar o seu rendimento nas cidades onde foram parar. Estarão gratas pelo o que lhes aconteceu?... Ainda mais extremo: hoje os descendentes dos aborigenes australianos vivem em comunidades socialmente destroçadas, mas claramente muito mais "ricas" que as dos seus primitivos antecessores. Será que vivem realmente melhor?...
"O crescimento é um ingrediente necessário, mas não suficiente do desenvolvimento."
Não concordo. Diria antes: o crescimento (económico) **pode** ajudar ao desenvolvimento (social). Mas não é condição necessária para o desenvolvimento social. Eu sei que talvez seja pedir demais a um economista, mesmo "heterodoxo", que ponha sequer a hipótese de que o crescimento económico pode não ser benéfico do ponto de vista social. Muitos pensariam que tal equivaleria a renegar o próprio fim da sua área de estudo. Mas tal não é verdade: tratasse simplesmente de pedir que se subalternize a "eficiência económica" ao bem-estar social, e que portanto não se pretenda medir o desenvolvimento (social) através de medidas quantitativas (ex. PIB per capita) de natureza económica.
"Sobretudo quando o ponto de partida é tão baixo."
Quão baixo é o ponto de partida de comunidades indígenas?... Serão **efectivamente** assim tão miseráveis?
"O crescimento económico com redistribuição, sobretudo em países pobres, é um objectivo de esquerda." Não, não é. O desenvolvimento social é. E este não passa necessariamente pelo crescimento económico.
"Não é porque sim, é porque as pessoas têm que comer, vestir, poder ter acesso a uma casa decente, ir à escola, ter acesso a serviços de saúde. As condições materiais para uma existência humana." Pode parecer que não, mas tudo o que afirma não deixa de ser relativo. Será que uma tribo amazónica come, veste-se e tem casas decentes? As condições materiais para uma existência humana decente são fortemente dependentes das expectativas criadas e das possibilidades oferecidas. Será que há 100 anos atrás ninguém tinha uma vida decente porque não havia frigoríficos e televisores? Então porque é que hoje se alguém não tem frigorífico ou televisor é desde logo etiquetado como "pobre" e portanto preso num "modo de vida indecente"?...
"É evidente que é curto, como já disse, falar apenas de crescimento. Ainda por cima quando a obtenção de resultados rápidos em termos sociais, por exemplo nas áreas da saúde e da educação, exige poucos recursos..." O problema é que a aceitação do conceito de crescimento económico como sinónimo de desenvolvimento social pela Esquerda faz o jogo da Direita, para quem o crescimento económico é **sempre** benéfico, pois leva a um aumento constante do Poder material e societal das elites.