Pedro Lains e a história
Pedro Lains decidiu conceder atenção ao texto que publiquei na edição portuguesa de Le Monde Diplomatique, coisa que muito sinceramente lhe agradeço, tanto pessoal como academicamente. Ele é autor de uma obra valiosa (embora discutível, como qualquer outra) e isso dá peso aos seus comentários. Depois de deixar entender que lhe pareceria justificado que o texto não tivesse visto a luz do dia, declarou, a propósito do que eu escrevi, com a autoridade própria dos sacerdotes: «tantos mitos, tanta confusão»! (o ponto de exclamação é meu, e eu sou o herege que perturbou o que Pedro Lains quer solidamente instalado). Qual é o motivo de tal heresia? O que é que Pedro Lains quer pôr na ordem? Está devidamente sublinhado a azul (vá lá . . .) na transcrição que fez no seu blog e é o seguinte: eu escrevi que nos anos 60, apesar de um processo intenso de industrialização, não houve em Portugal «uma modernização do conjunto da sociedade. Não assistimos a um alargamento dos mercados de trabalho, nem da qualificação das pessoas, nem do seu bem-estar».
Há, pelos vistos, uma controvérsia sobre os anos 60. O meu ponto de vista é muito simples: sabendo-se, como todos sabemos e eu recordei, que essa é uma fase de crescimento e industrialização, o que é que vale o facto de tal industrialização ter sido contemporânea de uma intensa emigração, isto é, da deslocação de volumes significativos de mão-de-obra para as economias europeias que tinham criado mercados de trabalho amplos e generalizado o bem-estar? Não significa nada? Ficamos a glorificar os «factos característicos do crescimento» e paramos aí a conversa? Pedro Lains que o faça. Ou que se limite a acrescentar, como quiser, umas nuances à sua análise. Mas eu não faço isso. Porque sei que na década de 60 o emprego total em Portugal só em dois anos é que cresceu na casa dos 2% e houve 5 anos em que cresceu menos de 1%. O PIB, esse, crescia a taxas elevadas, superiores, em termos médios, à casa dos 5% que Pedro Lains nos indica para o período 1952-73. E não posso esquecer que, ao lado do crescimento e da industrialização, houve emigração massiva, uma enorme debilidade dos mercados de trabalho para acolherem a população que estava a sair da agricultura. E também sei que essa emigração foi largamente clandestina e que a democratização económica, vista pelo acesso ao consumo ou às políticas públicas, foi tão débil que éramos nessa época o país que todos sabemos: na educação, na saúde, nos direitos mais elementares à inserção na sociedade (não duvido, claro, que ambos tenhamos a mesma opinião sobre o significado de não haver democracia política).
Para Pedro Lains isto é apenas o lado acessório, o pormenor a acrescentar. O que é que ele esperava? Que estando o produto a crescer a taxas elevadas e as indústrias de base (siderurgia, cimentos, química, mais tarde construção naval) a consolidar-se não acontecesse nada? Que havendo taxas elevadas de investimento em capital físico isso não se reflectisse em nada? Claro que reflectiu: criou-se mais emprego que antes, mas pouco, distribuiu-se rendimento sob a forma de salários mais elevados, mas eles mantinham um nível baixo, a mão-de-obra das novas actividades assumia novas qualidades, mas os níveis de qualificação mantiveram-se baixíssimos. Basta ver o peso da alimentação na estrutura de despesas das famílias . . .
Mas não foi esta a única heresia («confusão», «mito»!) que incomodou Pedro Lains. Eu também disse (pois disse...) que, por causa de tudo isto ,«a internacionalização da economia se fez primeiro e mais intensamente pela exportação de mão-de-obra do que pela exportação de produtos ou serviços». Qual é a dúvida? Sobre o peso das exportações no PIB os meus dados são os do site do Banco de Portugal. E se lá não encontro a passagem de 17% para 30% entre 1960 e 1970 que Pedro Lains assume, também não vou agora discutir números. O que sei é que as exportações de mercadorias se limitaram a passar de 10% para 13% do PIB neste período de industrialização, enquanto a emigração se contou por centenas de milhares de pessoas. Não sabemos comparar as duas coisas?. É aqui que eu baseio a minha afirmação de que os mercados de trabalho europeus internacionalizaram mais a economia portuguesa, através da emigração, do que as exportações da nossa indústria.
Aparentemente, nada disto deveria ser matéria para grandes incómodos («mitos», «confusões»!), visto que se conhecem razoavelmente os contornos da economia e da sociedade. As coisas têm, aliás, a sua lógica e as explicações assentam em complementaridades inevitáveis entre as várias dimensões em presença. Mas não. O problema é que há quem queira ver na economia portuguesa dessa época um «tigre» europeu, fixar aí uma golden age do nosso desenvolvimento. E quem queira transformar essa leitura em ortodoxia com a qual se julgam os desviantes. E, aqui, é verdade que Pedro Lains tem razão em reagir ao meu texto. Eu conto-o, de facto, entre os investigadores que nos oferecem um imagem da história económica portuguesa anterior ao 25 de Abril altamente discutível, uma história em que se idealiza uma economia poderosa e se ignora a sociedade, a política, a vida das pessoas. Por isso é uma história parcial. A minha divergência é enorme. Mas não resolvo, por isso, chamá-lo gerador de confusões ou mitos. Limito-me a discordar e a classificar a abordagem como parcial. Aceito e aprecio que o incómodo de Pedro Lains o leve a discutir e a polemizar. Não faz sentido é declarar, sobranceiro, a confusão alheia. Aí tenho que lhe dizer que bateu à porta errada. Por isso, pode contar com o meu gosto pela controvérsia e com a minha frontalidade. Não pode é contar com o meu silêncio. Se quiser podemos prosseguir. Tenho gosto nisso e respeito quem discute.
O 25 de Abril faz hoje 34 anos. E não se trata de uma simples data simbólica.
Coimbra, 25 de Abril de 2008
sexta-feira, 25 de abril de 2008
Pedro Lains e a história - Resposta do Prof. José Reis
Pedro Lains, economista e investigador do ICS, inaugurou um blogue onde reage ao texto publicado no Le Monde Diplomatique pelo Professor José Reis (Universidade de Coimbra), criticando a abordagem histórica aí feita do período imediatamente anterior ao 25 de Abril. Publicamos abaixo a resposta do Professor José Reis que gentilmente acedeu ao convite que lhe dirigimos.
Muito bem!!! Alguma discussao!!
ResponderEliminarPelo que leio, a fase de industrializacao portuguesa entre 60 e 70 fez-se sem "preemio Baumol", sem verdadeira mudanca estrutural...
Onde ee que andava o Pedro Lains, quando na escola se falava de Arthur Lewis e do tratamento Harris & Todaro? Mmmm... de facto estas sobrancerias...
Basta imaginar que a grande emigracao, mais do que um sinal de sucesso (como ee que algueem pode escrever nestes termos?), foi a vaalvula de escape do sistema... imaginem os custos para o sistema se todo aquele "reserve army" de desempregados se mativesse idle em Portugal, em vez de estar fora a mandar remessas para dentro...
Existe alguma escola hoje em dia que ensine os modelos de mudanca estrutural? Quem quiser dar uma olhada a um tratamento moderno e aplicado a esta temaatica, com algumas reflexoes sobre mercados de trabalho, aqui vai: http://www.adb.org/Documents/Books/ADO/2007/default.asp
keep up the good fight (pelas ideias e pelo debate)
Joao Pedro Farinha
Um país em crescimento , com uma guerra colonial que lhe levava anualmente dezenas de milhares de jovens , e mesmo assim uma emigração ESMAGADORA...
ResponderEliminarAlgo não bate certo...
E não eram só os BAIXISSIMOS salarios, a repressão e a falta de liberdade.
Lembram-se do discurso das vacas magras do Marcelo....
Falar só em numeros , faz lembrar anedota...
Tu comes uma galinha, eu passo fome, a media, cada um comeu meia-galinha...
É isto que dizem os numeros, só que a realidade não se baseia só neles, e em estatisticas.
Já agora a industria de guerra, por exemplo a MDF, e a manutenção militar, tambem tiveram incremento nessa época.
A questão é esta:Nós nunca fomos dados a abertura dos mercados numa escala supranacional!
ResponderEliminarOs grupos economicos sempre foram construídos numa lógica de "parentes" do Estado Português, como ainda hoje se vê.
Não posso estar mais de acordo com o Prof. José Reis, um bem haja!.
Caros amigos:
ResponderEliminarA resposta do Prof. José Reis e estes 3 comentários (pelo que representam do senso comum relativamente à nossa idade de ouro de crescimento) merecem uma boa resposta. Prometo que quando tiver tempo me empenharei em tentá-la. O melhor sítio para o fazer será porventura no meu blog. Mas vai demorar um pouco. Mas tenho obrigação de ser persistente e hei-de conseguir mostar o que se passou. Notem por favor por agora: dizer que houve idade de ouro, entre 1950 e 1974, com abertura ao exterior e transformação estrutral, torna a ditadura ainda mais estúpida, e não o contrário.
Saudações,
Pedro Lains
...please where can I buy a unicorn?
ResponderEliminar