Imaginemos que desde alguns anos as investigações judiciais vinham revelando as relações perigosas envolvendo o crime organizado, instituições da Igreja, a maçonaria e alguns dirigentes políticos. Imaginemos que no espaço de alguns meses centenas de políticos, entre os quais quatro antigos primeiros-ministros, eram constituídos arguidos por corrupção e financiamento ilegal dos partidos, que muitos confessariam os crimes, outros se suicidariam na prisão, outros ainda fugiriam do país. Imaginemos que, de repente, os principais partidos que tinham gerido o Governo do país durante os últimos 50 anos deixavam de ter qualquer líder de relevo que pudesse ser apresentado como sério e incorrupto. Imaginemos ainda que se tornava público que o único dos grandes partidos que conseguiu escapar às acusações de corrupção tinha beneficiado durante anos do financiamento por parte de uma potência externa, apesar do seu declarado afastamento face à ideologia e às práticas de governo dessa potência.
O resultado na Itália de há 15 anos atrás foi aquele que seria de esperar na generalidade dos países: uma descrença generalizada no sistema de partidos existente e uma predisposição para a identificação com os discursos daqueles que se apresentavam como uma ruptura face ao sistema caduco.
A descrença afectou acima de tudo a Democracia Cristã e o Partido Socialista. Foi nesse espaço político que surgiram os partidos que estão hoje no governo: a Forza Itália de Berlusconi apresentava-se como um movimento de empresários bem-sucedidos, sem ligações à política, que se propunham governar o país como geriam as suas empresas de sucesso (na verdade, Berlusconi era já um empresário com ligações ao poder, nomeadamente ao PSI de Craxi, mas isso à época não era conhecido); a Lega Nord de Bossi aproveitava o descrédito dos políticos para atacar a distante Roma como corrupto sugadouro da riqueza produzida a norte; o antigo Movimento Social Italiano, partido mussoliniano liderado por Fini, aproveitava para se reciclar em Alleanza Nazionale e para se apresentar como uma força moderada de direita, capaz de representar aqueles que a Democracia Cristã então deixava órfãos, politicamente falando.
Enquanto o espaço do centro e da direita (que tipicamente absorvia ¾ dos eleitores) era assim renovado com o surgimento de novos partidos e novos protagonistas, à esquerda restava apenas o ex-PCI (agora PDS), com as caras de sempre e marcado pelos preconceitos de sempre, e abalado por dissensões relacionadas com a alteração de rumo político, ideológico e simbólico.
Foi apenas há 15 anos atrás, tempo insuficiente para que Berlusconi, Bossi e Fini deixassem de poder cavalgar a onda do populisto anti-política e do anti-comunismo. Tempo insuficiente, também, para a esquerda encontar um novo rumo.
Uma boa análise. Adicionaria: o desmascarar da corrupção existente em Itália não só promoveu o populismo anti-políticos mas também o populismo anti-Estado. Muitos mais italianos passaram a considerar o Estado como uma gigantesca máquina distribuidora de benesses não a quem precisa mas a quem corrompe. Como é que a Esquerda, defendendo mais, ou até só melhor, Estado pode vencer em tal clima de suspeição e descrença sobre o benefício de políticas patrocinadas pelo Estado?... A Esquerda devia ter tido coragem de dizer que o Estado teria de ser reformado de cima-a-baixo, impondo severas penalidades aos mais pequenos actos de corrupção. Não adianta chamar a atenção para o corrupto Berlusconi, quando a maior parte dos italianos já praticou pequenos actos de corrupção, e considera-os necessários para sobreviver. É efectivamente a mesmo coisa que pedir a milhões de pessoas que admitam erros em actos passados. Tais actos de contrição são altamente improváveis...
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