quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Entre o sórdido e o sonso: «salários emocionais» para «colaboradores»


Foi recentemente publicado, na página do Human Resources Portugal, um artigo cujo título é, sem precisar de mais nada, todo um programa: «A importância do salário emocional na compensação dos colaboradores». Atentem bem na sequência das ideias-chave, entre o sórdido e o sonso: «salários emocionais», «compensação» e «colaboradores».

Citando a Cobee, apresentada como «a primeira plataforma digital europeia de gestão de benefícios para colaboradores», dá-se nota de que «complementar o salário habitual com uma compensação não monetária faz toda a diferença nos níveis de satisfação das equipas, e traz também inúmeras vantagens para as empresas», definindo-se o «salário emocional» como «uma recompensa extra, além do salário tradicional, que promove a qualidade de vida e o bem-estar dos colaboradores».

No concreto, está-se a falar, por exemplo, de maior flexibilidade de horários e melhor conciliação com a vida familiar, acesso a programas de formação, adaptação de espaços para melhorar o bem-estar dos trabalhadores, criação de locais para exercício físico, etc. Ou seja, de coisas que já existem, mas sem qualquer relação com a questão salarial. De práticas que fazem já parte do dia-a-dia de empresas decentes (e inteligentes), mas que aqui apenas são mobilizadas, num linguajar de hipocrisia delicodoce, como «compensação» pelo não aumento dos salários. Chegam a chamar a isto «employee experience», assegurando que assim se conseguem maiores níveis de satisfação «sem ter de ampliar o orçamento das empresas».

Do neoliberalismo dito progressista

Para lá de alardear um cosmopolitismo na melhor das hipóteses inconsequente, o neoliberalismo em versão progressista continua a querer promover a consolidação de formas globalizadas de capitalismo, de resto cada vez mais desiguais, instáveis e insustentáveis. Estas continuam a ser acompanhadas por intervenções supletivas para apanhar alguns “cacos”, em modo “correcção das falhas de mercado”, em modo de políticas públicas na margem, entregues a uma tecnocracia tão arrogante quanto limitada. 

António Costa é em larga medida um produto desta filosofia europeia, da Terceira Via ao PRR, passando pela Agenda de Lisboa. É este no fundo o consenso das políticas públicas europeias no seu melhor. A expressão políticas públicas desagrada-me cada vez mais neste contexto estrutural, tendendo a evacuar a política propriamente dita, a que pode mudar a economia enquanto processo instituído num território delimitado. 

Entretanto, lembram-se do Fundo Europeu de Ajustamento à Globalização? É compreensível se não se lembrarem, já que foi uma das políticas inconsequentes nesta lógica. Agora, temos o Fundo de Transição Justa. A mesma lógica, apenas cada vez mais “cacos”. 

Todo o artigo dito de esclarecimento sobre a Galp do coerente António Costa assenta na palavra fundo, um significante em larga medida vazio, que não esconde uma política conformada com um capital financeiro obcecado com a distribuição de dividendos e gerador de custos sociais, de resto apoiado e tudo. 

A social-democracia numa periferia sem instrumentos de política capazes parece estar reduzida a estas figuras. Já são mais de duas décadas demasiado marcadas por esta desmobilizadora política, terreno fértil para todos os monstros e monstrinhos reacionários.

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Tendências eleitorais nas mais recentes autárquicas (II)

Tal como sucede em eleições legislativas, e ao contrário da tendência à esquerda, os partidos à direita chegam facilmente a entendimentos e coligações para disputar autárquicas. Tem sido assim pelo menos desde 2001, numa tendência que se foi reforçando até ao domingo passado. De facto, se naquele ano cerca de 70% dos votos à direita provinham de candidaturas isoladas dos principais partidos (94% no caso da esquerda), em 2021 esse valor recua para 43%, resultando já a maior parte dos votos (57%) de coligações. À esquerda, a opção dos partidos por candidaturas isoladas foi sempre amplamente maioritária, com percentagens no total nunca inferiores a 90%. Em ambos os casos, a votação em partidos sem representação parlamentar foi sempre residual.


Quanto às eleições do passado domingo, e face às tendências eleitorais aqui assinaladas, registe-se que a esquerda no seu conjunto - e apesar de uma ligeira descida do seu peso relativo (-3,3%) - mantém a maioria dos votos para a eleição dos executivos municipais (52,0% do total), com a direita a fixar-se nos 40%. Relativamente às autárquicas de 2017, regista-se curiosamente uma quebra do peso eleitoral de partidos ideologicamente menos definidos (de 8,4% para 6,6%), em linha com a perda de expressão de candidaturas independentes (Grupos de Cidadãos), cuja votação passa de 7,1% para 5,8%.


Em termos globais, e sobretudo pelas dinâmicas nesse sentido à direita, bem como pelo aumento de candidaturas independentes (Grupos de Cidadãos), a votação em candidaturas isoladas dos partidos representados na AR continuou em declínio, tendo-se passado gradualmente de um valor em torno dos 80%, registado em 2001, para cerca de 70%, em 2021. A opção por coligações, a que a esquerda quase não adere, é de facto a forma de candidatura que mais cresce ao longo deste período, recolhendo em 2021 cerca de 24% dos votos expressos. Ou seja, 8 pontos percentuais acima do valor registado em 2001.

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Nós. Nas notícias internacionais. Por boas razões

Retrato de um país onde os negacionistas estão reduzidos aos números adequados à sua condição de seita obscura.


(notícia aqui)

Portugal precisa de baixar os impostos para sair da crise?


Embora ainda não tenha sido dado o tiro de partida oficial para as negociações do Orçamento de Estado de 2022, há quem já se comece a posicionar neste debate. O Conselho Nacional das Confederações Patronais (CNCP) apresentou recentemente um conjunto de 20 propostas que pretende ver aplicadas já a partir do próximo ano. Reconhecendo que "o necessário esforço de reequilíbrio das contas públicas não pode constituir-se, na situação presente, na primeira prioridade da política orçamental", as confederações patronais defendem alterações ao sistema fiscal em Portugal - a ideia, dizem, é promover "uma política fiscal amiga do crescimento e do desempenho do tecido produtivo nacional". Para isso, querem não apenas prolongar a vigência dos créditos fiscais extraordinários ao investimento, como também garantir a redução do IRC, da derrama estadual (que passaria a abranger apenas as empresas com lucro superior a €5 milhões) e das tributações autónomas, defendendo ainda a redução das taxas de IRS.

Este tipo de propostas é normalmente fundamentado por dois argumentos. O primeiro é o de que, atualmente, se pagam demasiados impostos em Portugal. O CNCP considera que o próximo orçamento deve ter como “preocupação central […] aliviar a carga fiscal às empresas e famílias”. O segundo é o de que baixar os impostos tem efeitos positivos para o conjunto da economia - como argumentam os patrões, "a redução das taxas do IRC potencia o crescimento económico, a criação de emprego e a atração do investimento". No entanto, nenhum destes argumentos sobrevive ao confronto com os factos.

O primeiro argumento parte de um equívoco: o de que a "carga fiscal" serve como indicador do esforço a que as empresas e os cidadãos de um país estão sujeitos por via da fiscalidade. Como tem sido explicado, a carga fiscal corresponde apenas ao rácio das receitas do Estado com impostos e contribuições sociais sobre o PIB. Ou seja, um aumento da carga fiscal pode estar relacionado com a redução do desemprego (e consequente aumento das receitas de impostos e contribuições), o aumento dos salários (que passam a ser abrangidos por taxas de imposto mais altas) ou a tributação de rendimentos que anteriormente escapavam aos impostos. Além disso, a carga fiscal em Portugal continua abaixo da média da Zona Euro e da União Europeia, sendo também inferior à dos países mais desenvolvidos da região - Alemanha, França, Bélgica, Países Baixos, Áustria, bem como os países nórdicos (gráfico acima). Nestes países, maiores receitas do Estado conjugam-se com serviços públicos mais robustos e um Estado Social mais abrangente.

O segundo argumento está relacionado com a discussão em torno do "efeito multiplicador", que mede o impacto de uma determinada medida orçamental, como um aumento da despesa ou um corte de impostos, no crescimento económico. A ideia expressa pelas confederações patronais é a de que a diminuição dos impostos pode estimular o investimento das empresas, gerando efeitos positivos para o conjunto da economia pelo lado da oferta. No entanto, a evidência empírica não o tem confirmado. Em junho deste ano, Sebastian Gechert e Philipp Heimberger publicaram o estudo "Os cortes de impostos para as empresas estimulam o crescimento económico?", em que analisam a literatura relevante e mostram que os economistas não têm encontrado dados que suportem esta relação. Os cortes de impostos desta natureza têm, isso sim, o potencial de aumentar a desigualdade, uma vez que beneficiam sobretudo os empresários e gestores de topo, o que talvez ajude a explicar a posição das confederações patronais.

Na verdade, a maioria dos estudos sobre efeitos multiplicadores conclui que o impacto de um corte de impostos no crescimento do PIB é bastante inferior ao de um aumento da despesa pública, e em particular do investimento público, que além de constituir um estímulo à procura no curto prazo, também contribui para o aumento da produtividade da economia a médio/longo prazo. Ou seja, um aumento de 1€ na despesa do Estado tem maior impacto no crescimento da economia do que um corte de 1€ nos impostos cobrados. Isto é especialmente importante em períodos de crise e elevada incerteza: nestes períodos, a intervenção do Estado é decisiva para fazer face à quebra do consumo e do investimento do setor privado. É um tema para próximos artigos.


segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Três notas


1.
Começo pelo que está mais próximo, pelo que me preocupa mais: os comunistas e seus aliados conheceram um novo recuo que merece reflexão e impulso reactivo. Alguns resultados positivos em Lisboa, Porto, Belmonte ou Barrancos não compensam, nem de perto, nem de longe, a perda de municípios, como Loures ou Montemor-o-Novo, ou derrotas, como a de Almada; 

2. A seguir nas preocupações vem o BE: a sua extrema debilidade organizativa confirma-se em mais um resultado residual no poder local. Este péssimo resultado é ainda mais preocupante quando contrastado com o avanço relevante da extrema-direita, por exemplo na área metropolitana de Lisboa ou no distrito de Santarém, traduzido na conquista de dezanove vereadores a nível nacional. 

3. Finalmente, um certo PS de extremo-centro, com arrogância e relevância nacionais, perdeu, não conseguindo, por boas razões, fazer funcionar o voto útil à esquerda. Penso em Coimbra, a terceira cidade do país, mas sobretudo em Lisboa, a primeira; de resto, e não por acaso, são os dois grandes balões de oxigénio de Rui Rio e das direitas. 

domingo, 26 de setembro de 2021

E o PCP, não entra por quê?

A SIC Notícias estreia amanhã um programa de debate sobre «grandes temas nacionais e internacionais». Chama-se Linhas Vermelhas e conta com a participação de Mariana Mortágua (BE), Adolfo Mesquita Nunes (CDS-PP), Pedro Delgado Alves (PS) e Miguel Morgado (PSD). Uma vez mais, comunista não entra nem comenta. Parece que é mesmo uma das «normas não escritas» do já de si tão enviesado «pluralismo» no debate televisivo em Portugal.

A menos que o PCP tenha declinado o convite para se fazer representar, o que é muito improvável, seria bom conhecer-se o critério adotado pela SIC para compor o painel de intervenientes. De facto, se estamos a falar de partidos há muito representados no parlamento, o PCP manifestamente não poderia nunca ficar de fora. E como outro critério aceitável não se vislumbra, é provável que a questão seja mesmo, e apenas, um problema de «linhas vermelhas».

Adenda: A imagem ali em cima é uma adaptação da original, com o prolongamento de uma das margens. Talvez assim se perceba melhor que estamos perante um debate inaceitavelmente amputado e empobrecido. Como o seria também se estivesse em falta, pondo agora as coisas no prisma oposto, um representante da área do CDS-PP ou da área do PSD.

sábado, 25 de setembro de 2021

Tendências eleitorais nas mais recentes autárquicas (I)

Apesar da natureza específica e contextual das eleições autárquicas, em que por exemplo o perfil e características pessoais dos candidatos à presidência dos municípios podem baralhar as leituras partidárias mais intuitivas (ou evidenciar sentidos de voto distintos face a outros escrutínios), é possível constatar algumas tendências de resultado nas eleições para as autarquias entre 2001 e 2017.


Uma dessas tendências tem que ver com o recúo gradual de voto à direita (cerca de -10 pontos percentuais), que reflete o aumento das votações à esquerda (cerca de +5 pontos percentuais) e em partidos com perfil ideológico menos definido (de 2,5% para 8,4% no período considerado). Outra tendência é a da relativa perda de terreno dos atuais partidos com representação parlamentar, quando avançam sozinhos (de cerca de 81% para 74%) e do aumento do peso relativo das coligações e candidaturas de independentes (Grupo de Cidadãos), mantendo-se inalterada a percentagem de votos noutros partidos que concorrem isoladamente (a rondar 1% do total).

Os resultados de amanhã permitirão verificar se estas tendências se mantêm, nomeadamente quanto ao aumento da votação à esquerda - que não deixa de trazer à memória os resultados que criaram as condições para a solução política encontrada na sequência das legislativas de 2015 (e que se repetiu, em termos de votos, nas de 2019) - e aumento da percentagem obtida por candidaturas independentes.

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Vão trabalhar, malandros


Os pobres não trabalham porque têm demasiados rendimentos; os ricos não trabalham porque não têm rendimentos suficientes. Expande-se e revitaliza-se a economia dando menos aos pobres e mais aos ricos.

Ao ouvir o programa fiscal e laboral das direitas, pela voz reacionária de um Rui Rio em campanha, ecoando o patronato medíocre, que nunca quer aumentar salários, lembro-me sempre da síntese irónica de John Kenneth Galbraith nos anos oitenta. Até os conservadores britânicos já seguiram em frente, dados os resultados catastróficos da desigualdade extrema e das crises associadas. É caso para dizer por cá: vão trabalhar programaticamente, malandros.

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

O nosso dinheiro

“É que – nunca é demais insistir – o dinheiro é nosso. Temos o direito de perceber como ele anda a ser usado”. Assim termina Susana Peralta a sua crónica, onde apela a uma maior transparência do governo relativamente ao orçamento. Concordando com o que afirma (quem é que não quer mais transparência do orçamento?) e compreendendo que se trata apenas de um artigo sobre a transparência do orçamento, parece-me ainda assim que existe uma grande desproporcionalidade entre a primeira frase (o dinheiro é nosso!) e a timidez do apelo que é feito em seguida.

Subjacente a esta desproporcionalidade creio estar uma conceção convencional do dinheiro, comum nos manuais de Economia, segundo a qual este surge (quer atualmente, quer na sua origem histórica) de forma “natural”, como resultado das ações descentralizadas de indivíduos, das suas opções e preferências numa lógica de mercado livre, havendo até quem descreva este processo como o mais democrático possível. Daqui decorre que qualquer interferência neste processo é vista como ilegítima e desrespeitosa das escolhas e preferências dos indivíduos devendo, portanto, ser a mínima possível. Esta conceção, instrumental para a legitimação duma sociedade submissa à lógica do mercado, não corresponde à realidade atual nem a sua história de origem do dinheiro tem qualquer sustentação empírica.

Uma perspetiva alternativa (apoiada por factos e lógica) atribui, para o bem e para o mal, ao Estado, ou a uma autoridade central, um papel fundamental na criação e formulação de dinheiro e do sistema monetário, sendo este um bem público, uma criatura do Estado. Segundo esta visão, não existe nada de “natural” na forma como o dinheiro surge na economia, sendo este antes uma construção coletiva com beneficiados e prejudicados e efeitos profundos no funcionamento da economia. Christine Desan é atualmente a principal figura desta perspetiva e a que a melhor tem exposto e divulgado, apelando a uma democratização do sistema monetário. Recomendo o seu livro “Making Money: Coin, Currency, and the Coming of Capitalism”, ou estes excelentes artigos, assim como a conferência que organizou há dois anos intitulada Money as a Democratic Medium ou uma das inúmeras palestras e entrevistas que facilmente se encontram por aí.


No pico da sua hegemonia, a conceção convencional de dinheiro foi institucionalizada - e ainda mais reificada do que era até então - com a criação do euro, onde o dinheiro parece menos nosso do que nunca, tendo o campo de contestação política do seu desenho passado para um nível europeu, convenientemente longe das tricas políticas nacionais. Mas isto não pode limitar o horizonte das nossas reivindicações e aspirações sobretudo num cenário de emergência social e climática. É importante que tenhamos presente o carácter público e comunitário da forma que medeia praticamente todas as interações duma economia monetária para que consigamos legitimar as transformações da nossa sociedade de que tão urgentemente precisamos. É que – nunca é demais insistir – o dinheiro é nosso. Temos o direito de exigir que este seja reformulado para dar uma resposta mais eficaz às nossas necessidades e aspirações.

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

«Bolsas» e «seguros», que não são liberdade nem escolha


Na candidatura a Oeiras, a Iniciativa Liberal tem um outdoor que promete «Bolsas» para frequência de Creche e Jardim de Infância e, na página do facebook, um «Seguro Municipal de Saúde», para assegurar «aos cidadãos os cuidados (...) que necessitam, independentemente de o prestador ser público, cooperativo ou privado». Alegam que com este seguro «a escolha é tua» e que assim se garante, «de forma inequívoca, a universalidade no acesso». Só não explicam quanto custa (pouco não é certamente) nem de onde vem o dinheiro para financiar estas medidas.

Não sendo plausível que a IL aumente ou crie novos impostos (pelo contrário), cabia ao partido dizer em que rubricas do orçamento municipal vai cortar para patrocinar as «bolsas» e o «seguro». Aliás, e mesmo ainda antes disso, seria de esperar que a Iniciativa Liberal assumisse que o que quer mesmo é criar um «cheque-ensino» e um «cheque-saúde», de modo a poder financiar privados com dinheiros públicos. Se estes vouchers são assim tão bons, tão «universais» e com tanta «liberdade de escolha», porque não dizem, sem disfarce nem vergonha, ao que vêm?

A questão é que a IL tem a noção que propor «cheques-ensino» e «cheques-saúde» não é um trunfo eleitoral mobilizador. Porque já perceberam que já se percebeu que estes instrumentos, apenas na aparência bondosos, significam subfinanciar serviços públicos e instituir profundas desigualdades sociais no acesso, ao contrário do que se apregoa. É que, perante a procura, e em contexto de concorrência (que obriga a alardear elevados níveis de supostos «sucessos»), são os privados quem detém, na verdade, a dita «liberdade de escolha», optando pelos melhores alunos (que garantem bons lugares nos rankings), pela manipulação de notas, pelas situações de doença menos problemáticas ou pela inflação de atos médicos. Ao contrário do que sucede com a Escola Pública e o SNS, que são de todos para todos.

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Não, não era


“Era difícil imaginar tanto disparate, tanta asneira, tanta insensibilidade, tanta irresponsabilidade, tanta falta de solidariedade”, afiançou agora, a propósito da Galp, António Costa, o que nada fez. 

Imagino que seja difícil tal exercício de imaginação para os julgam, por exemplo, que a propriedade pública já não conta, para os que não querem na prática incomodar as mais ricas e poderosas. Ainda me lembro de um responsável do PS que abria garrafas de champanhe por cada empresa que privatizava. 

Trata-se de uma empresa estratégica para qualquer política industrial, incluindo uma que tenha em linha de conta as questões ambientais, as que não podam estar mais longe das preocupações de quem quer extrair o máximo de valor para o acionista. É claro que outros, com uma imaginação bem mais realista, avisaram a tempo para os custos de tais opções. 

Entretanto, os trabalhadores despedidos denunciam no fundo o vazio da retórica europeísta, a que também reduziu a elite à imaginação de um centro anti-laboral: “Ninguém fica para trás? Estamos aqui, somos os primeiros a ficar para trás”. 

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Estes “jornalistas”, para quê?


Miguel Sousa Tavares informou-nos recentemente que não faz mais entrevistas. É uma excelente notícia, já que Tavares, como foi pela enésima vez visível nas entrevistas a Pedro Nuno Santos e a António Costa, é um exemplo acabado da mediocridade do que passa por elite no jornalismo mediático, a que substitui o estudo pelo achismo preguiçoso e pelo preconceito de classe mais desavergonhado.

Desde o Equador que não lia Sousa Tavares, mas esta semana chamaram-me a atenção para um artigo no Expresso, onde justifica a menção ao tal jovem dos seus círculos sociais que ganha 2700 euros: “não fui buscar os 2700 euros por acaso”, uma vez que “a taxa de incidência de IRS é de uns aterradores 45%”, garantindo Tavares que o desgraçado jovem paga 1300 euros ao Estado.

Não há terceira hipótese: Tavares é ignorante ou é desonesto, já que omite a diferença entre taxa média e taxa marginal que é aqui explicada com exemplos e tudo. Quem paga impostos sabe a diferença e quem é rico sabe que 45% é a taxa marginal, aquela que incide apenas sobre a parte - sublinho, apenas a parte - do rendimento coletável acima - sublinho acima - dos 36000 euros anuais. A taxa média para este jovem pouco ultrapassará portanto um quarto do rendimento coletável, sublinho outro detalhe omitido na contabilidade fictícia de classe patrocinada por Tavares.

Estes “jornalistas”, para quê?

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

E sem o SNS, como estaríamos hoje?

Na passada quarta-feira o Serviço Nacional de Saúde cumpriu 42 anos de vida. Por feliz coincidência, foram nesse dia divulgados dados sobre a taxa de vacinação completa contra a Covid-19 à escala mundial, com Portugal a posicionar-se no topo da tabela, com 82% da população a ter já recebido as duas doses da vacina. Trata-se, claro, de uma posição circunstancial, que se pode alterar. O que importa é mesmo o facto de estarmos no conjunto de 16 países do mundo que têm mais de 5 milhões de habitantes e pelo menos 60% da população com vacinação completa.


Como em tudo na crise pandémica, são múltiplos e entrecruzam-se os fatores que contribuem, em cada país, para o maior ou menor êxito, ou fracasso, do processo de vacinação. No nosso caso, e entre outros fatores, é de destacar o facto de os portugueses serem «os europeus que mais consideram que os benefícios da vacina contra a covid-19 superam os riscos (87%) e que mais defendem o “dever cívico” da vacinação (86%)». O que, conjugado com a extraordinária capacidade de organização e resposta do SNS neste âmbito, contribui, e muito, para explicar o sucesso da vacinação, que as comparações internacionais registam.

Agora imaginem que não dispúnhamos hoje de um serviço público de saúde - o SNS - com a sua rede de unidades e recursos fundada numa lógica de cobertura territorial e que assume os princípios da universalidade, gratuitidade e equidade no acesso, intrinsecamente comprometido com o direito constitucional à saúde e organizado de modo a assegurar a necessária coordenação, coesão e coerência na implementação de orientações e decisões. E que tínhamos, ao contrário - como a direita pretende - um «sistema» de saúde assente na indiferenciação entre público e privado (com o Estado a financiar este último), numa amálgama de perfis institucionais, «filosofias de vida» e objetivos distintos (desde logo na questão do lucro). Se assim fosse, estaríamos como hoje estamos no processo de vacinação? Certamente que não.

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Neoliberalismo "reloaded"?


Introdução

Os efeitos da actual crise económica continuam a trocar as voltas à economia internacional: escassez de componentes necessários à produção, aumento de preços para determinados bens e cadeias logísticas em ruptura. Esta situação é fruto das consequências directas e indirectas de uma crise pandémica muito peculiar: confinamentos e vacinação a diferentes ritmos nacionais e regionais; mudança de hábitos de consumo; diferentes níveis de gastos públicos e subsequentes recuperações económicas desiguais. Entretanto, um novo relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas foi publicado, dando conta da irreversibilidade das mudanças climáticas, da impossibilidade de cumprir as metas propostas e, portanto, da necessidade de uma nova e maior acção pública e privada.

Quer sejam imediatos ou de médio prazo, os desafios e riscos que se colocam não estão a ser ignorados. Decididos a não cometer muitos dos erros da crise de 2008-09, os diferentes Estados, de forma assimétrica é certo, convocaram a política monetária e a política orçamental para superar as diferentes crises. Os bancos centrais dos EUA, Japão e Zona Euro assumiram uma política expansionista de juros baixos e compra de dívida nos mercados, que preveniu qualquer crise no setor financeiro ou pressão nos mercados de dívida pública e privada. Nos EUA e na União Europeia programas de investimento público inéditos prometem não só assegurar uma rápida recuperação económica, mas também reestruturar as economias, respondendo aos desafios climáticos e aumentando a sua competitividade externa.

Depois de anos em que a austeridade foi a panaceia da política económica, há quem assegure que o neoliberalismo acabou (um anúncio já proclamado aquando da Crise Financeira Global (CFG)). Estaríamos agora num período de recuperação do papel do Estado na economia, tal como aconteceu com o New Deal norte-americano dos anos trinta. Contudo, é de notar no domínio da política monetária, que dada a hierarquia monetária internacional, nem todos os bancos centrais têm a mesma margem de manobra, como se atesta agora na política de juros altos de países mais periféricos como o Brasil ou o México, sob o genérico pretexto do combate à inflação, mas, na verdade, como forma de atrair capital especulativo de curto-prazo e estabilizar assim as suas moedas. A mesma assimetria de poder faz-se sentir na política orçamental. Enquanto as maiores economias mundiais se dispuseram a pacotes de gastos públicos inéditos e imediatos, países subordinados, como os do Sul Europeu, optaram por modestos aumentos da despesa pública, preferindo aproveitar as condições favoráveis dos mercados financeiros para promover o endividamento privado, através de moratórias e garantias de crédito.

No entanto, ainda que de forma assimétrica e com recuos já anunciados, é inegável que as sacrossantas regras para as metas de inflação e dos défices públicos foram colocadas em discussão, abrindo o campo das possibilidades políticas. Precisamos, pois, de entender melhor o que motiva estas mudanças e o seu conteúdo de forma a pensar que tipo de intervenção política pode ser articulada à esquerda neste contexto.

Onde devemos gastar os muitos milhões de fundos europeus que estão a chegar a Portugal?

As associações empresariais, Rui Rio e boa parte dos comentadores não hesitam: é preciso pôr mais dinheiro nas empresas. Apesar da proporção de fundos estruturais dirigidos ao sector empresarial não ter parado de aumentar desde a viragem do século (como aqui mostrei), continuam a dizer que é pouco.

Isto é o que nos dizem os interesses. E o que nos dizem os estudos?

O economista Pedro Gil, professor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, apresentou hoje o estudo de impacto macroeconómico do Portugal 2020 (o estudo estará em breve disponível aqui). Uma das coisas que analisa é o efeito do PIB de longo prazo de diferentes tipos de despesa.

Como mostra a tabela abaixo, os apoios às empresas têm um efeito muito menor do que o investimento público (IG) e, em particular, do que o investimento em qualificações (TRAIN).

Os modelos em que se baseiam estes resultados dependem de muitas dezenas de hipóteses, quase todas questionáveis. É verdade que o modelo foi construído pela Comissão Europeia e é usado em muitos países distintos, mas nem por isso é ciência exacta. Ainda assim, dá que pensar, não é?


terça-feira, 14 de setembro de 2021

Alojamento local e crise de habitação no Porto

Tal como no caso de Lisboa - e igualmente em contraciclo com a evolução à escala da área metropolitana e do continente - a cidade do Porto registou, na última década, uma diminuição do número de alojamentos. Aliás, esta variação negativa é também inédita em termos censitários, invertendo a tendência de gradual expansão do parque habitacional que se verificava desde 1981 (a rondar um acréscimo de cerca de 10 mil fogos por década), com a perda de 5 mil casas entre 2011 e 2021 (-3,4%, valor que contrasta com os +0,8% da AMP e os +1,4% do continente).


Tal como em Lisboa, também no Porto a relevância do alojamento local para o decréscimo do parque habitacional não pode ser ignorada nem subvalorizada. Desde logo pelos universos em causa: cerca de 8 mil unidades de AL em 2021, que comparam com a perda de 5 mil habitações. Ou seja, se pelo menos parte das unidades de alojamento local tivesse hoje uma função residencial, e não turística, o Porto não teria assistido a uma redução de casas na última década, período em que, note-se, o número de famílias residentes na cidade aumenta 1,4% (quase mais 1.500 que em 2011).


O impacto da intensificação do turismo, e em particular do alojamento local, na estrutura residencial do centro das grandes cidades, torna-se ainda mais evidente quando se procede a uma análise por freguesias. No caso do Porto, constata-se que é na União de Freguesias de Cedofeita, São Ildefonso, Sé, Miragaia, São Nicolau e Vitória - que concentra cerca de 73% da oferta de alojamento local da cidade em 2021 - que as perdas de população (-7,4%), famílias residentes (-6,0%) e alojamentos (-12,6%) são mais pronunciadas. O que recomenda, à semelhança de Lisboa, que se trave e reduza, ou redistribua, a oferta de alojamento local na cidade.

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

domingo, 12 de setembro de 2021

José Afonso - Utopia


CidadeSem muros nem ameiasGente igual por dentroGente igual por fora
Homem que olhas nos olhosQue não negasO sorriso a palavra forte e justa

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

O meu Presidente

"Nunca estamos preparados para perder alguém que tanto amamos", disse o primeiro-ministro de Timor-Leste. Sinto-me tocado por esta afirmação porque, após a notícia do falecimento de Jorge Sampaio, eu senti que não estava preparado para perder o Presidente da República que melhor me representou.

Para mim, perdemos a melhor pessoa que exerceu o cargo de Presidente de Portugal, a pessoa que deu a melhor imagem do meu país ao mundo na forma serena, destemida e competente como conduziu a defesa da auto-determinação de Timor-Leste, um homem que, desde jovem, conduziu a sua intervenção política sempre com grande dignidade.

A vida de Jorge Sampaio merece o meu maior respeito, como pessoa e como figura pública.

Todos por um

Pela resistência à ditadura fascista – do movimento estudantil à defesa de presos políticos; pelo protagonismo na inovadora e corajosa solução política na Câmara Municipal de Lisboa num tempo de recuo; pela defesa de valores democráticos e da ética republicana na chefia deste Estado. Obrigado, Jorge Sampaio.

Dos «especialistas» à ausência de pluralismo e contraditório

Intuem-se coisas muito interessantes a partir desta notícia do Negócios, que garante, no seu título, que para os especialistas «é inoportuno mexer nas leis laborais». A primeira coisa que se deduz, atendendo ao perfil monolítico de quem o Negócios quis ouvir, é que o «verdadeiro» especialista em Direito do Trabalho está ligado a escritórios de advogados. É o caso de Carmo Sousa Machado (sócia da Abreu Advogados), Diogo Leote Nobre (sócio da Miranda Advogados), Nuno Morgado (sócio da PLMJ) e Fátima Remelgado (da RSN Advogados), os quatro especialistas consultados. Ou seja, esqueçam as universidades, incluindo os docentes da área nas faculdades de Direito, e esqueçam investigadores, sindicatos, empresas, organizações da sociedade civil, movimentos sociais e outros especialistas. Para saber se é «oportuno mexer nas leis laborais» basta consultar sociedades de advogados.


Conclui-se também, num segundo monolitismo, que isto das leis e das relações laborais é matéria exclusiva do Direito do Trabalho. Ou seja, esqueçam sociólogos, economistas e outros especialistas em questões laborais, oriundos de distintos domínios das ciências sociais. No seu conjunto, esse contributo, necessariamente menos afunilado e mais abrangente, como convém a uma verdadeira economia política do trabalho, não é para aqui chamado. Se estamos a tratar de legislação laboral, basta ouvir juristas, não é? Para quê perder tempo com quem pode melhor conhecer os impactos, sociais e económicos, para trabalhadores e empresas, de «mexidas» no atual quadro legislativo?

Não está em causa, note-se, a pertinência de ouvir juristas ou a opção por escritórios de advogados. E menos ainda o conhecimento ou as legítimas perspetivas dos consultados em apreço. Apenas se estranha que no Negócios não se estranhe a redundância de opiniões que daqui resulta, a ponto de as poder subsumir (apesar das nuances entre elas) no título taxativo que se deu à notícia. O que está em causa é mesmo este persistente enviesamento e monolitismo que, por preguiça, pressa, desleixo ou orientação ideológica, continua a viciar e a empobrecer, no campo mediático, o contraditório e o pluralismo no debate.

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

É só somar


Recebi por correio uma soma simples com um resultado político correcto, relativamente em linha com o que por aqui se tem defendido, por exemplo a propósito das liberdades, ou com a campanha autárquica.

Este bloco político em construção teve e tem ventos europeus a seu favor, das políticas da troika à impotência socialista que resulta da lógica da integração, como se viu na Grécia, passando pelos efeitos de um certo contágio político-ideológico que vem de leste para oeste.

Este bloco também resulta da necessidade nacional, oriunda dos sectores mais reacionários, incluindo do capital, de complementar este viés estrutural por superar com uma política capaz de fazer contraponto político-ideológico à esquerda que não desiste. Sim, esta gente é mais do que a crise do PSD, sendo sintoma mórbido de uma crise mais profunda e sem fim à vista.

Mesmo em modo defensivo, e com limites óbvios, a esquerda ainda protege sectores relevantes face aos vampiros, pressionando a margem mínima que ainda cabe a este Estado nacional.

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Política capital


Numa imprensa tão frágil quanto dócil para com o capital, a relação sociopolítica central num sistema com cada vez menos freios e contrapesos democráticos, titulava-se recentemente: «Grandes empresários comprometem-se a ajudar país a regressar ao Top 15 europeu» em termos de produto interno bruto (PIB) per capita. Termos relativamente grandiloquentes para dar conta da fundação, em plena crise pandémica, de uma associação, reunindo para começar 42 empresas ou grupos económicos que operam em Portugal, independentemente da sua nacionalidade, e que foi baptizada com um nome bem português: Business Roundtable Portugal (BRP). Expressão linguística da perda económica de independência política, por sua vez filha da manifestação da globalização nesta periferia do continente, ou seja, da integração europeia, o uso do inglês tem a vantagem de ofuscar o que a tradução literal daria a ver – mesa-redonda dos negócios em Portugal, dos grandes negócios, claro, dado que é da organização política das grandes empresas que se trata. 

O nome em inglês revela a coisa original, ou seja, a economia política de referência: de facto, a Business Roundtable foi criada em 1972, nos Estados Unidos, por um conjunto de grandes empresas norte-americanas. Trata-se de uma organização política capitalista ainda operacional e que foi reconhecidamente parte de uma reacção política anti-sindical mais vasta e extraordinariamente bem-sucedida no desmembramento do Estado saído do New Deal dos anos trinta. Destinava-se, assim, a restaurar as prerrogativas regulatórias do capital, ameaçadas pela militância laboral num contexto histórico, o dos anos setenta, de compressão dos lucros e juros, favorecendo igualmente a desregulamentação, a abertura de mercados e a redução dos impostos, bem como uma política económica que desse prioridade ao combate à inflação em detrimento do ameaçador pleno emprego. O neoliberalismo não se reduz a uma organizada reacção de classe, mas não pode ser compreendido sem este esforço deliberado, jamais inteiramente concluído, para restaurar em novos moldes todos os poderes disciplinares de um capitalismo idealmente expurgado das concessões colectivistas, favoráveis ao poder dos subalternos.

O resto do artigo, política capital, pode ser lido no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Setembro.

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

A memória é um país distante (V)


«O Dr. Bruno Top Soares conta uma história inspiradora de como há 70 anos (em 1951), se tinha maior liberdade para se singrar do que em 2021. É a chapada de fist bump que o socialismo precisava. As oportunidades que o Dr. Salazar oferecia para as pessoas saírem da sua zona de conforto, com sardinhas para sete pessoas, e emigrar para Lisboa dos anos 50, com todas as suas incubadoras de empresas e sem a carga fiscal socialista, é algo que não encontramos na ditadura socialista de certificados digitais, autênticas estrelas de David para quem quer comer em restaurantes. Quem não se lembra da Web Summit do Mundo Português, com oportunidades de investimento num Portugal que era muito maior do que é hoje?
Nos anos 50 não havia socialismo em Portugal, não havia "pandemia", não havia Festa do Avante, não havia sindicatos e as crianças não tinham de se preocupar com os pequenos-almoços comunistas porque estavam ocupadas com o seu ofício no vale do Ave. As pessoas podiam ir livremente a restaurantes sem terem de apresentar certificado. Podia não haver tantos restaurantes pelo racionamento da comida e da fome, mas não havia apartheid quando se colocava a hipótese de se ir a um restaurante. Hoje é muito pior, basta lerem o 1984. Obrigado Dr. Bruno Totil Soares por nos dar esperança no futuro, com exemplos de um passado feliz.
»

Jovem Conservador de Direita (sobre o candidato da Iniciativa Liberal à Câmara Municipal de Lisboa).

Um jornal para transformações


Os maiores fogos de sempre na Sibéria; incêndios descontrolados na Grécia, Itália e Turquia; enormes cheias na China, Alemanha e Bélgica; temperaturas próximas dos 50ºC no Canadá… A noção de que a crise climática se agrava de ano para ano é cada vez mais irrefutável. O mais recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC, na sigla inglesa), só veio confirmar esta realidade e dar-lhe contornos mais precisos, baseados no melhor conhecimento científico disponível. Os impactos da crise estão a aumentar, ultrapassando inclusive as piores projecções (...) Esta crise não foi criada por todos de igual modo. Os 10% mais ricos do planeta são responsáveis por cerca de 50% das emissões anuais. Já os 50% mais pobres emitem menos de 10% das mesmas. A crise climática é hoje indissociável da crise da desigualdade económica, causada pelo triunfo do neoliberalismo nas últimas décadas. Nenhuma delas pode ser resolvida em separado. À luz do que a ciência climática indica, é urgente uma transformação profunda da economia e da sociedade (e não apenas uma mera «recuperação», para que tudo volte a ser como era antes da pandemia). Para isso, a economia terá de estar necessariamente sujeita à ecologia, cujas conclusões nos indicam que actividades humanas poderão ser mantidas e a que escala. E essa mesma economia terá de trabalhar para o bem-estar e a prosperidade de toda a população – e não apenas da pequena minoria que nos conduziu à beira do caos climático.

Excertos do editorial, da autoria de Luís Fazendeiro, no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Setembro. Boas leituras.

sábado, 4 de setembro de 2021

Razões para festa


No ano passado não fui à Festa. Aliás, fui contra sua realização quando foi anunciada, mas nada como uma campanha anti-comunista com escala inusitada, juntamente com a responsabilidade organizacional comunista, para me fazer mudar de posição. 

Este ano volto à Festa. Tendo deixado de ser militante comunista há quase duas décadas por razões que agora não vêm ao caso, mas tendo voltado a ser apoiante da CDU há meia dúzia de anos, por razões soberanistas, vou este ano à Festa por razões que não mudam assim tanto: amigos e convívio fraterno, livros e música (atenção, por exemplo, ao concerto de A garota não no Auditório 1º de Maio, hoje, às 21h00m), debates já pensar no que se vai comer. 

Entretanto, esta é a Festa do Avante, o jornal que tem o recorde mundial na clandestinidade, um dos factos a assinalar no ano em que faz noventa anos, nos cem do Partido que o produz. Um jornal que compro regularmente por duas razões. Em primeiro lugar, porque tem a melhor cobertura das lutas laborais por este país afora. Em segundo lugar, para conhecer a opinião comunista, já que, como sublinha Vasco Cardoso, a “regra de ouro” de jornais como o Público não é a tanto a suspensão dos seus colunistas político-partidários durante a campanha eleitoral quanto o facto de a opinião comunista não ter aí lugar há muito tempo, um padrão que se repete na comunicação social para milhões. 

Independentemente do posicionamento político, a verdade é que continua a não haver Festa como esta.

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Uma alternativa ao "normal verde"

 
 
Julho de 2021 foi o segundo mês com temperaturas mais elevadas no continente europeu desde que se fazem medições (Público, 31 Agosto). Sabemos que o uso de energias de origem fóssil produz gases com efeito de estufa, de que resultou um continuado aumento da temperatura da Terra. Quando for ultrapassado o aumento de 1,5 graus Celsius relativamente à temperatura do início da era industrial, estaremos perto de um limiar de grande risco. Para além de mais 2 graus, podem ocorrer alterações no clima que tornem muito difícil a vida numa parte importante da Terra. As migrações em grande escala tornar-se-iam inevitáveis.

Contudo, as energias fósseis só são responsáveis por 70% da emissão de gases com efeito de estufa. Há 30% de emissões com outras causas (destruição da floresta, degradação dos solos, gás metano produzido pela pecuária, produção de cimento, aço, plásticos, aterros de lixo, mineração de metais raros ...) e este conjunto variado de actividades tem vindo a crescer em importância. Ou seja, o aquecimento da Terra não será travado apenas com “energias verdes” se estas substituírem as fósseis mas forem usadas para reproduzir os modelos de produção e consumo do actual sistema socioeconómico, o capitalismo. Substituir os automóveis movidos a gasolina e gasóleo por outros tantos automóveis movidos a baterias de lítio, e continuar a aumentar a sua produção em nome da necessidade de manter o crescimento económico, isso não irá travar as alterações climáticas, pelo contrário. Na verdade, a retórica do “crescimento verde” não tem qualquer sustentação científica pois não existe evidência empírica que aponte para a possibilidade de um permanente crescimento económico global que não produza crescimento das emissões com efeito de estufa (ver mais aqui).

Esta trajectória de desastre não será evitada – os mais ricos julgam que podem salvar-se virando as costas ao resto da sociedade –, se pensarmos que a solução está na mudança individual, no consumo “consciente”, na separação do lixo doméstico para reciclagem, e na produção de cada vez mais do mesmo a partir das “tecnologias verdes”. Para mudar este sistema social-económico-cultural-político (o capitalismo) que destrói as condições de vida na Terra, que permite a acumulação obscena de rendimento, património e poder por uma minoria, que usa a hegemonia cultural e política para instilar uma ideologia promotora de individualismo hedonista e competição, culpabilizando os desempregados e o precariado (“incompetentes e preguiçosos”) pela sua sorte, precisamos de organizar uma luta em várias frentes e diferentes escalas. Precisamos de articular lutas sociais, ambientais, de defesa de minorias e de aprofundamento da democracia (ver mais aqui). Precisamos de movimentos sociais, sindicatos e partidos políticos que se oponham ao financiamento dos projectos das indústrias do petróleo e do gás, que contestem um comércio global poluidor e destruidor do desenvolvimento local, que proponham alternativas ao turismo massificado e que exijam a proibição das actividades predadoras da biodiversidade e transmissoras de novos vírus. 

Se, à medida que a vacinação avança, ouvir falar na televisão de que estamos a voltar à normalidade, é natural que sinta que o pior já passou. Mas pode crer, esse discurso é muito perigoso (ver mais aqui). Ele significa que as elites não querem entender o que se passou na Europa neste Verão. Basta-lhes voltar a um “normal” com “tecnologias verdes” e “transição digital”, o que sugere que se está a combater as alterações climáticas, a criar um futuro próspero e, obviamente, a planear obter mais lucros com a mesma ou maior desigualdade ... pondo em causa a vida da maioria da população. Em vez desse “normal”, precisamos de um programa de desenvolvimento que crie empregos sustentáveis e dignos, reforce o Estado social, e mude com justiça o que for preciso para que se preservem as condições de sobrevivência e dignidade de todos. Precisamos mesmo de organizar a alternativa a esse “normal verde”, começando aqui e já.

Do moralismo económico


João Miguel Tavares aproveita o regresso de férias para partilhar com os leitores do Público a extraordinária descoberta que fez na sua viagem familiar pela Floresta Negra alemã: aí vive-se melhor do que em Portugal, vejam bem. Aproveita para se referir com nostalgia às promessas de convergência ilimitada dos anos oitenta e noventa, as do cavaquismo e quejandos. 

Acontece que essa convergência limitada foi feita antes do euro, quando o país ainda tinha alguma margem de manobra, algum espaço para o desenvolvimento, como se diz na literatura. O drama é que essa margem de manobra foi em última instância usada para nos trancar num grande sarilho, ou seja, num arranjo monetário desenhado a pensar nos interesses do capital financeiro (bancário-industrial) do centro, em particular alemão. Um arranjo, obviamente acompanhado pela liberalização financeira total, que nos retirou instrumentos de política preciosos para o desenvolvimento. Numa economia monetária de produção, o euro foi decisivo. No nosso caso, foi para o pior, naturalmente: estagnação, divergência e preferências adaptativas

Tudo o resto é moralismo económico, ou seja, pura declaração de princípios liberais, com consequências invariavelmente imorais.

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Censos, alojamento local e crise de habitação (III)

Um dos resultados que mais surpreendem nos dados preliminares dos Censos de 2021 tem que ver com a diminuição do número de alojamentos em Lisboa na última década. De acordo com a informação censitária, trata-se de uma variação negativa inédita face aos censos anteriores e que traduz uma perda de cerca de 7 mil alojamentos face aos recenseados em 2011. Isto é, uma redução do número de habitações na ordem dos -2,1%, valor que contrasta com a variação registada, no mesmo período, na AML e no continente (com acréscimos, respetivamente, de +0,5% e +1,4%).

Uma das razões que explicam esta quebra (como já assinalámos aqui e aqui), tem que ver com o impacto do alojamento local na estrutura residencial da cidade, e de forma particular nas freguesias do seu centro histórico (nomeadamente Misericórdia e Santa Maria Maior), onde o peso relativo das unidades de alojamento local, no total do alojamento residencial e turístico (AL), oscila, nessas freguesias, entre os 30% e 40%, sendo também significativo (superior a 10%) nas freguesias de Santo António e de São Vicente.


Globalmente, o que se constata é que se, no limite, toda a oferta de alojamento local fosse destinada a habitação, Lisboa não teria registado as perdas de alojamentos que registou na última década, antes se verificando um aumento na ordem dos 12 mil fogos (+3,7%), face a 2011. O que significa, por seu turno, que para ter mantido, em 2021, o número de fogos de 2011, teria seria necessário que o atual número de unidades de alojamento local na cidade se situasse em 12 mil e não em 19 mil. Isto é, que representasse cerca de menos 1/3 da oferta atualmente existente.

Sabemos bem, é claro, que o alojamento local permitiu recuperar muitos fogos devolutos que, de outro modo, se teriam provavelmente mantido nessa situação. Tal como é inegável o contributo do alojamento local para a reabilitação e revitalização urbana, o turismo e o emprego e, de modo mais amplo, a economia da cidade. Mas a verdade é que também se torna evidente, face a estes dados, que Lisboa dispunha de um potencial de oferta que poderia ter sido mobilizado, pelo menos em parte, para fins habitacionais, mas que acabou por ser reorientado, de forma concentrada e excessiva, para a função turística, comprometendo o acesso à habitação. O equilíbrio é de facto, nestas matérias, um princípio essencial a acautelar.