Luís Aguiar-Conraria (LAC), professor da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho, entendeu que devia fazer uma crítica às declarações do reputado professor Paul De Grauwe numa entrevista ao jornal Público.
LAC não gostou da afirmação:
O dogma do orçamento equilibrado é o pior tipo de dogma que existe. Não há qualquer razão para termos orçamentos equilibrados. Se emitirmos dívida para criar activos que sejam produtivos, por exemplo, investindo em infra-estruturas que sejam necessárias, em transportes públicos, no desenvolvimento de novas energias, se os governos fizerem isso, faz todo o sentido emitirem dívida.LAC relaciona a política de investimento em rodovias, em particular “as auto-estradas sem custos para o utilizador”, com o baixo crescimento da economia portuguesa no passado. A partir desta associação avulsa, pretendeu tornar evidente que João Cravinho estava errado ao pensar que haveria algum contributo daquele investimento para a sustentabilidade da dívida pública. Eu próprio entendo que aquela política foi um erro, do ponto de vista ambiental, do ponto de vista da prioridade dada à rodovia em detrimento do caminho de ferro, do ponto de vista financeiro pelo que significou de sujeição do interesse público aos interesses da finança (financeirização). Feita esta ressalva, e descontada a linearidade mecanicista atribuída ao argumento de João Cravinho (investimento em rodovia => crescimento económico => receitas fiscais), espanta ver um economista qualificado desvalorizar os efeitos multiplicadores do investimento público sobre o emprego e a produção da economia. Apesar dos erros que se terão cometido na política de investimento público em infraestruturas, desde o 25 de Abril até à adopção do euro, LAC não pode negar que esse investimento contribuiu, no quadro de causalidades complexas e sistémicas, para uma acelerada melhoria do nível de vida da população portuguesa. É que há mesmo um efeito multiplicador keynesiano do investimento público, mesmo que lembrar Keynes possa causar mal-estar a muitos (demasiados) economistas. Nesse período, o peso da dívida pública portuguesa no PIB não era problema e, para isso, seguramente contava a capacidade de fazer política orçamental e a existência de um Banco (que era mesmo) de Portugal.
Percebe-se que LAC se preocupe com a dívida pública a propósito do investimento do Estado, da reposição de rendimentos na função pública e da melhoria dos apoios sociais. Diz-nos que “se já era arriscado contar com o ovo no cu da galinha no virar do século, quando a dívida pública andava nos 60% do PIB, ainda mais arriscado será apostar num aumento da dívida agora, quando é o dobro.” Por que razão já era arriscado investir nos primeiros anos deste século? A resposta de LAC vem nos parágrafos seguintes e refere-se à desconfiança dos mercados financeiros que, já nessa altura, poderiam deixar de financiar o país. LAC bem sabe que, também nessa altura, a Alemanha tinha um nível de dívida semelhante ao nosso e a Espanha um nível muitíssimo inferior. Todos corriam o mesmo risco?
Ou seja, LAC ainda hoje vem defender uma tese sem qualquer fundamento científico, a de que a crise que afectou Portugal a partir de 2010 foi uma crise de dívida pública, aquilo a que os media chamam “crise da dívida soberana”, como se Portugal tivesse moeda e dívida soberanas. LAC parece ignorar alguns textos importantes escritos por Paul De Grauwe. Permito-me recordar um deles, de divulgação, mas nem por isso menos rigoroso, em que mostra com clareza como a crise da Zona Euro foi gerada pelo endividamento do sector privado, no quadro de um modelo centro-periferia e, acrescento eu, também por falta de um banco central digno desse nome, o que permitiu aos operadores financeiros fazer subir as taxas de juros para níveis insustentáveis. Podemos discutir alguma argumentação de De Grauwe – no meu caso até discordar da sua tese do “mau desenho institucional” da Zona Euro porque entendo que as causas são mais profundas – mas continuar a insistir no nexo de causalidade [dívida pública => crise de financiamento do Estado] releva de uma posição ideológica que recusa tomar em consideração a volumosa literatura científica que não alinha pelas suas opções teóricas. Para uma análise mais fundamentada sobre as causas da crise da Zona Euro, sugiro aos leitores este texto.
Basta olhar para a figura seguinte para se perceber o quanto está errado LAC.
Desde que Mario Draghi decidiu, contra a vontade do presidente do Bundesbank, mas com a condescendência de Angela Merkel, declarar publicamente que compraria a dívida pública que fosse preciso para fazer baixar as taxas de juro, os mercados desistiram da especulação contra as periferias. Contornando o Tratado, o BCE passou a financiar os Estados-membros através das suas compras de dívida pública nos mercados secundários, fazendo dos bancos comerciais os intermediários da operação. Como se vê, tudo depende da decisão política do BCE. Como bem o sabem os gregos.
LAC destaca um artigo de De Grauwe sobre os humores dos mercados financeiros e o que isso representa de risco para a dívida pública dos países da periferia da Zona Euro. O que LAC omite é a condição política para que tal risco potencial se materialize: a ausência de intervenção do BCE. Talvez LAC se tenha esquecido de que os Estados com soberania monetária, e respectivo banco central, não estão sujeitos aos humores dos mercados na dívida emitida na sua própria moeda. Obviamente, a preferência política de De Grauwe para eliminar esse risco é um salto qualitativo na união política, uma opção que não acompanho mas que não vou discutir agora. Por conseguinte, enquanto De Grauwe se mostra abertamente inconformado com a incapacidade de a UE evoluir para um Estado federal e, por essa razão, caminhar para o suicídio, LAC olha para o status quo com resignação e, admito eu, com o optimismo dos que pensam que, com tempo, tudo se resolverá. Mas deveria reflectir sobre o significado da ascensão da extrema-direita, e relacioná-la com o tempo que os povos já esperaram pela tal “Europa social”. Suspeito que já não estão dispostos a continuar à espera e vão dizê-lo mais uma vez em Maio.
O que é que preocupa LAC? A resposta é simples: no Conselho das Finanças Públicas acabou a hegemonia da “teoria da idade das trevas” (expressão de Paul Krugman), de que Teodora Cardoso era a porta-voz. Com uma recessão a caminho, a escolha de Paul De Grauwe para vice-presidente do Conselho das Finanças Públicas dá um sinal de abertura para uma análise dos orçamentos que se afasta do pensamento dominante e recupera algum do keynesianismo bastardo dos anos anteriores à hegemonia monetarista. Veremos se esta opção também implica (ou não) mudanças na equipa de economistas de Teodora Cardoso.
É com isto que LAC está preocupado. Certamente preferia que esta mudança não tivesse ocorrido e, evidentemente, não o incomoda a subordinação dos Estados aos humores dos mercados financeiros, sempre disciplinadores das finanças públicas (quando podem). Ao contrário de LAC, eu saúdo a fragilização do actual status quo da UE. Agora, tal como as minhas ideias combinam saber científico e valores para analisar a realidade e propor escolhas políticas, o mesmo também sucede com LAC. Teorias, análise da realidade, valores e escolhas políticas são indissociáveis e, por isso, é de uma enorme ingenuidade, para usar uma expressão benévola, pretender que Paul De Grauwe esclareça, sempre que fala, se o faz na qualidade de académico respeitado ou de polemista. Todos nós falamos, de forma mais ou menos velada, nessas duas qualidades, algo que é inerente à nossa condição de seres humanos, incluindo quando fazemos investigação científica e leccionamos. LAC ilustra bem a formação que os nossos alunos tiveram nas últimas décadas.
9 comentários:
Eu gostava de saber onde é que estava o mundo hoje sem investimento público. Ou melhor, não gostava nada.
«Desde que Mario Draghi decidiu, contra a vontade do presidente do Bundesbank, mas com a condescendência de Angela Merkel, declarar publicamente que compraria a dívida pública que fosse preciso para fazer baixar as taxas de juro, os mercados desistiram da especulação contra as periferias. Contornando o Tratado, o BCE passou a financiar os Estados-membros através das suas compras de dívida pública nos mercados secundários, fazendo dos bancos comerciais os intermediários da operação. Como se vê, tudo depende da decisão política do BCE. Como bem o sabem os gregos.»
Claro que muita coisa depende da decisão política do BCE e claro que as declarações de Mario Draghi – proferidas a 26 de julho de 2012 – foram importantes. Mas é um autêntico mito achar que foi por causa disso que “os mercados desistiram da especulação contra as periferias” (o que, em rigor, nem é verdade).
Nem é preciso ir muito longe. Basta olhar para a figura reproduzida. É clarinho como água que, em todos os países referidos, as taxas de juro das obrigações a dez anos (as yields, nos mercados secundários) já estavam francamente em queda (até em Espanha, embora não pareça no gráfico, porque mostra quase certamente médias mensais). Em Portugal, por exemplo, estavam em queda há cerca de sete meses.
Esta observação, evidentemente, não endossa os equívocos, ainda mais graves, do Aguiar-Conraria.
Anónimo 16:17
Veja isto: http://bruegel.org/2012/09/the-bond-market-consequences-of-mr-draghi/
Essa confusão entre ciência e opinião, só existe naqueles relativistas radicais, que não acreditam na Ciência. São as epistemologias do Sul de Boaventura Sousa Santos! Os valores dos 'economistas' não interessam a ninguém, e se não são capazes de produzir conhecimentos válidos e objectivos, temos que lhes retirar o financiamento e os microfones, porque narrativas, ao jeito de conversa de Bruxaria, não interessam a ninguém!
Ninguém nega que as decisões do BCE, e as declarações do seu presidente, influenciam. O erro está em sobrevalorizá-las, desprezando outros factores estruturais. O gráfico do post é muito claro: as quedas, aliás bem pronunciadas, já vinham de trás.
[O único ponto que poderia suscitar dúvidas seria a Espanha. O gráfico do artigo que recomenda, com as variações apenas para a Espanha e a Itália, ao longo de 2012, também não é o mais adequado. Se vir a tabela das cotações diárias, verificará que, mesmo no caso espanhol, para as obrigações a dez anos, o pico foi nas vésperas de dia 26 de julho, antes do discurso de Draghi (em média diária, foi dois dias antes). Mas isto são, evidentemente, picuinhices.]
Visto com maior distanciamento, como no gráfico do post (embora com médias mensais), a queda anterior apresenta-se com toda a limpidez. Ora, pelo menos em economia, o efeito não precede a causa...
Saúdo a sua franqueza, ao dizer que conjuga conhecimento científico com escolhas ideológicas para propor políticas. A ideologia serve justamente também para suprir a nossa incapacidade de prever o futuro com recurso aos modelos existentes. Duas pessoas racionais na posse da mesma informação não chegam às mesmas conclusões.
Sucede que não foi seguramente a primeira vez que Portugal entrou em dificuldades financeiras porque fez escolhas erradas ao nível do investimento. Por isso, não acho nada que muita prudência ao nível da gestão das finanças públicas nos faça de todo mal. Andamos o sec. XX inteiro a pagar a falência do final do sec. XIX, que condenou a Monarquia Constitucional.
Mais, o crescimento do período pós 25 de Abril, não apenas foi profundamente desigual, como não se fez sem dois pedidos de ajuda externa ao FMI, causados primeiro pelas políticas do PREC e depois pelas mãos do MF da AD, um tal de Cavaco Silva...
Caro Anónimo das 21.03
A intervenção do BCE nos mercados de dívida pública começara já em 2011 com o governador francês Trichet:
« Jean-Claude Trichet. The Frenchman had embarked on the ECB’S first-ever round of sovereign bond buying to drive down the borrowing costs of heavily indebted countries like Greece, Portugal, Spain and Italy. Weber, who had been in line to replace Trichet at the top of the ECB, denounced this as dangerous money printing to finance profligate states.»
https://www.reuters.com/article/us-ecb-draghi-plan/special-report-inside-mario-draghis-euro-rescue-plan-idUSBRE88O09A20120925
Deixo uma pergunta a Jorge Bateira: qual o efeito multiplicador em emitir dívida, que se pagará com juros, para pagar aumentos salariais na função pública, que são encargos fixos e permanentes, que serão usados pelo funcionalismo, numa relevante parcela, para adquirir produtos importados?
O caro Aónio faz logo à partida uma série de suposições:
que a emissão de dívida é para pagar aumentos salariais; que é para o funcionalismo; e que vai acabar em produtos importados.
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