terça-feira, 2 de outubro de 2018
Serviços públicos: menos saída, mais voz
No debate em torno da organização de serviços públicos como a saúde e a educação, a direita liberal defende habitualmente que o Estado não deve prestar directamente esses serviços, mas sim assegurar a provisão através do financiamento de prestadores privados. Esta lógica de cheque-ensino, cheque-dentista ou cheque-outra coisa qualquer é em geral defendida com base no argumento da liberdade de escolha: os utentes dos serviços de saúde ou os pais dos estudantes do ensino primário devem poder optar entre diferentes prestadores em concorrência entre si, escolhendo aqueles que oferecem maior qualidade e punindo os restantes através da rejeição.
Esta é, por excelência, a solução mercantil para problemas de qualidade insuficiente ou em declínio: a punição através do abandono da relação de troca. Num importante livro de 1970 sobre as reacções ao declínio nas empresas, organizações e estados (“Exit, Voice and Loyalty”), o economista político Albert Hirschman apelidou este tipo de reacção de “saída”, opondo-a em geral à alternativa da “voz”, que designa o esforço de intervir activamente nos processos em questão a fim de inverter o declínio e melhorar a qualidade. No exemplo dos pais dos alunos do ensino primário, a “saída” consiste em trocar de escola, enquanto a “voz” corresponde a envolver-se activamente, por exemplo através da Associação de Pais, contribuindo para a identificação de problemas e adopção de soluções.
A saída e a voz encontram-se em geral numa relação de substituição, funcionando como alternativas: se uma está mais disponível, a outra tende a ser menos utilizada. Quanto maiores as oportunidades de envolvimento e participação na definição e melhoria dos serviços públicos, menos os utentes tendem a querer mudar de prestador; mas também, inversamente, quanto mais a lógica do sistema incentivar a troca de prestador em caso de insatisfação, tanto menores tendem a ser a participação e o contributo dos utentes para identificar os problemas e melhorar a qualidade. A saída é a reacção impessoal, mercantil, em que cada um prossegue os seus próprios interesses imediatos; a voz é a reacção política, assente em relações interpessoais e comunitárias e no compromisso relativamente ao interesse colectivo.
A extensão da lógica mercantil aos serviços públicos, independentemente da questão distinta do financiamento, tem por isso dois grandes problemas. O primeiro é que a prossecução descoordenada do interesse individual por parte de cada um conduz muitas vezes a resultados muito insatisfatórios do ponto de vista colectivo: por exemplo, o congestionamento na tentativa de acesso aos serviços considerados de maior qualidade, a par de espirais de declínio nos serviços considerados de menor qualidade. O segundo problema, ainda mais fundamental, é que isso desincentiva a participação cívica e destrói os laços comunitários que nos unem enquanto cidadãos residentes num determinado território e utentes comprometidos para com os serviços públicos presentes nesse território.
Muitos serviços públicos, em muitos contextos, necessitam de ser melhorados. Mas para isso são necessários mais voz, mais participação cidadã e recursos adequados – não o reforço dos mecanismos de saída. Nesta discussão, a opção liberal pelo favorecimento da “liberdade de escolha” é também a opção que erode a cidadania e destrói os laços comunitários.
(Expresso online, 27/09/2018)
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10 comentários:
Afinal tal estratégia, já começa a ser muito gasta, onde o povinho por mais bruto e ignorante que seja, já percebeu, que tudo não passa de um roubo encapotado de hipócritas e criminosos, que por um lado dizem mal do Estado, mas a sua livre iniciativa, dita liberal, privada, é uma mão invisível que tudo retêm no perpétuo assalto generalizado das empresas lucrativas, que o povo português pagou dos seus impostos durante décadas. Um liberalismo de iniciativa privada montada sempre na garupa, do cavalo do povo, que sendo já mula ainda é montado sem piedade. Veja-se o que fizeram à PT, EDP, Ana, TAP e quem se instalou por lá, como recompensa pela traição que fizeram aos nossos avós. Para quando dizerem a verdade que estão todos feitos com os senhores da divida e que os governos são um faz de conta, onde 60% da riqueza vão para juros e que os restantes são para fazer a festa da vivência miserávelista de grande parte dos portugueses? Comecem a passar a verdade nas TVs para que o Colectivo acorde, para que possa refazer o que os outros destruíram.
Com a camarilha político-partidária a parasitar tudo que é serviço público, com sindicatos corporativos, confederados e politicamente vinculados, com uma centralização que não desarma, trazer a bucólica comunidade local a intervir nos serviços públicos, não sendo ingenuidade só pode ser ardil.
Com a camarilha austeritárioa neoliberal a parasitar tudo ao serviço de interesses privados, com um patronato medíocre e pesporrento, confederado em confederações com negócios pouco claros e fraudulentos, com uma mão-garra dos mercados que não desarma, trazer a vampiresca comunidade troikista uberalles para continuar o saque do que é público, não sendo ingenuidade é não só um ardil como outra coisa bem mais tenebrosa
Podemos passar agora ao tema do post e deixarmos estas tretas ideologicamente motivadas e mercantilmente salivadas?
Ficam as perguntas: já tentou que a sua voz fosse ouvida numa qualquer instituição pública? Com que sucesso?
Que sucesso tem a voz dos internados na pediatria oncológica do Porto?
Que sucesso tem a voz dos assinantes de passe na Carris, Metro, SCTP?
Que sucesso tem a voz dos encarregados de educação da Escola 23 da Freiria em Torres Vedras (look it up!)?
Quando a voz não é ouvida, só resta a saída!
Mas contra isso temos cá a mão esquerda da Geringonça:
Ireis para a hospital particular? Fecha-se!
Ireis de carro particular? Cobra-se!
Ireis para o colégio particular? Encerra-se!
A única forma de se garantir um serviço público de qualidade é apostar na sua qualidade! Isso não depende só da disponibilidade dos utentes, mas também da vontade dos que gerem esse serviço público.
Qual o incentivo de prestarem um serviço de qualidade? Por um lado, se não há valorização do serviço prestado, e pelo outro se não há alternativa, qual o incentivo de se mudar seja o que for na forma que ele é prestado?
A voz seja ouvida em qualquer instituição pública????
Mas que disparate é este?
Estamos em campanha eleitoral nas ditas instituições?
Que demagogia é esta?
A mão esquerda da geringonça é apenas para mascarar a mão direita do pafismlo troikista?
"A direita liberal defende habitualmente que o Estado não deve prestar directamente esses serviços, mas sim assegurar a provisão através do financiamento de prestadores privados.
E serve-se de todas as manhas para justificar o abandono dos serviços públicos e para tentar passar para os privados as funções públicas.
Até da demagogia sem escrúpulos de convocar os "internados na pediatria oncológica do Porto".
"Muitos serviços públicos, em muitos contextos, necessitam de ser melhorados. Mas para isso são necessários mais voz, mais participação cidadã e recursos adequados – não o reforço dos mecanismos de saída"
Ora bem.
Daniel Ferreira pergunta se já se tentou que a "voz fosse ouvida numa qualquer instituição pública? Com que sucesso?"
Duplo embaraço para Daniel Ferreira
A voz (as vozes) , não tem que ser ouvida apenas em qualquer instituição pública. Tem que ser ouvida em quem detém o poder das instituições públicas. E quem detém tal poder tem as mais das vezes contribuído activamente para a degradação dos serviços públicos.
Se entrássemos nos joguinhos engraçados de Daniel Ferreira podíamos até dizer que a mão direita do passismo troikista foi um momento alto na degradação das funções socais do Estado. Mas como este processo passou pelas duas mãos desse mesmo passismo, pelos seus pés e por todo o seu corpo, a imagem seria manifestamente insuficiente
Mas há vozes pelas instituições públicas. Que são sistematicamente escondidas e apagadas
Tomemos o exemplo da voz "dos internados" na oncologia pediátrica no Porto.
Deixemos para lá o cheiro a demagogia barata e o conflito que a voz dos "internados na pediatria" tem com a realidade que aqui se discute.
O subfinanciamento do Serviço Nacional de Saúde traduz-se em profundos prejuízos para os utentes e para os profissionais. A inaceitável e indigna situação tornada pública sobre o tratamento prestado a crianças com doença oncológica, por exemplo no Hospital de S. João, espelha bem as consequências da política de direita e de sucessivos governos.
Ora há que apurar e exigir que o Ministro da Saúde se pronuncie sobre as inadmissíveis condições de tratamento das crianças com doença oncológica no Centro Hospitalar de São João, assim como tratar dos investimentos em infraestruturas e equipamentos no Serviço Nacional de Saúde. E há que exigir que o Conselho de Administração deste Centro Hospitalar se pronuncie.
Como ao que parece a voz dos "internados em pediatria" não é ouvida, não se sabe se pela instituição pública em causa, só resta para Daniel Ferreira uma saída.
A saída
Isso queria ele.
Ou de como tudo serve mesmo para justificar a passagem para os privados do que deve ser assegurado pelo Estado. Até mesmo deste choradinho a raiar a idiotia
Mas a coisa não fica apenas por aqui.
Qual papão ameaçador sobre os malefícios da mão esquerda ( repare-se, não da geringonça, mas da referida mão esquerda) decreta-se sem rebuço e indiferente ao ridículo da questão:
"Ireis para a hospital particular? Fecha-se!"
Mais uma vez abstraia-se do efeito dramático emprestado pelo Daniel Ferreira, mesmo que ele agora pareça de facto o que é, ou seja uma farsa.
Pergunta-se: Fecha-se? Mas fecha-se o quê? A pediatria oncológica? É esta a "saída" para estes casos?
Fecha-se o Hospital privado? Mas quem disse tal? Quem diz tal? O que se diz é que o público não deve financiar hospitais privados
E como se sabe o Estado paga 51% dos gastos dos hospitais privados.
Mas o tom continua
"Que sucesso tem a voz dos assinantes de passe na Carris, Metro, SCTP?"
Essa de restringir a voz aos assinantes de passe já merece algum comentário. Parece que há utentes de primeira e de segunda. Mas adiante
É que existe mesmo uma Comissão de Utentes dos Transportes Públicos de Lisboa. E procura ter voz. E tenta que a sua voz seja ouvida.
Por exemplo Cecília Sales, representante da Comissão de Utentes dos Transportes Públicos de Lisboa, diz que «não se notam grandes melhorias na rede» e que é fundamental haver um financiamento adequado para reforçar a frota e o número de motoristas.
Recordando o anúncio feito por Fernando Medina há um ano a propósito das redes de bairro, Cecília Sales lembra que nos Olivais existe autocarro circulatório há já alguns anos e que a sua permanência é fruto da luta dos utentes perante as várias tentativas avançadas pela Carris de eliminar o serviço.
Cecília Sales frisa a importância destes autocarros, particularmente em freguesias muito grandes, mas denuncia que a maior parte «está em fim de vida». «Nem para a rede normal há material circulante, quanto mais para os bairros», sublinha. Em todo o caso, reconhece que, no caso dos Olivais, houve alargamento de horário e os utentes passaram a ter autocarros ao fim-de-semana.
Mas há mais:
"A Comissão de Utentes dos Transportes, em associação com a Fectrans e a União dos Sindicatos de Lisboa (USL), lançou um abaixo-assinado contra o «inferno» em que se converteu a utilização diária da rede do Metro."
"Utentes exigem melhores acessibilidades no Metro de Lisboa. A Comissão de Utentes dos Transportes de Lisboa lança nova campanha de agitação e luta, já a partir da próxima segunda-feira, com o lema «Ano Novo, os problemas do costume: 30 carruagens paradas, 30 dias de luta".Estávamos em Janeiro deste ano
Qual a saída segundo o evangelho de Daniel Ferreira?
Como a "voz" não é ouvida, só "resta a saída".
Isso queria o Daniel Ferreira. Ele e os interesses privados que estão aí atrás
É multiplicar o número de vozes. E reforçar a participação cidadã
( A frase de Daniel :"Ireis de carro particular? Cobra-se!" é tão idiota que nem merece comentário)
Há mais
Ao longo dos últimos anos, e particularmente nos quatro anos do Governo PSD/CDS, a Escola Pública foi sujeita a um profundo desinvestimento com reflexo negativo nas suas condições de funcionamento.
A história dos contratos de associação constituiu um marco notável dos interesses privados a sobreporem-se aos interesses do erário público e revelou as verdadeiras intenções do governo troikista
Os interesses privados de meia-dúzia de donos de colégios privados bem tentaram lutar pela sua condição privilegiada no que a este caso dizia respeito. Foram organizadas manifestações de amarelo pintadas, foram mobilizados em peso os media fidelizados e convocados os "analistas" da ordem
Em vão. As vozes cidadãs impuseram-se e saíram à rua para lutar pela escola Pública.
A participação cívica foi mais forte e impôs-se sobre estas tentativas de imposição dos colégios privados...ainda por cima pagos pelo erário público.
A "saída" querida pelo Daniel Ferreira na sua apologética "saída" foi posta em causa. Com as muitas vozes que se souberam somar.
Ainda bem
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