A insistência obsessiva de Cavaco Silva no «consenso», como garante da «estabilidade», assentou sempre no quadro mental que pressupõe a existência de uma linha de fronteira entre o «arco da governação» e os recorrentemente designados «partidos de protesto» (BE e PCP/PEV). E que, no âmbito do «arco da governação», compreende os sectores do centro esquerda (PS) e do centro-direita e direita (PSD e PP). Sejamos justos: este é o quadro mental com que, até ao passado dia 4 de Outubro, a sociedade portuguesa se habituou genericamente a encarar e a interpretar o espectro político português e a própria composição da AR. Nestes termos, a linha de fractura parlamentar atravessa o território da esquerda, sinalizando nomeadamente os distintos posicionamentos face à Europa e os diferentes graus de disponibilidade para governar.
Nas últimas eleições legislativas, como bem sabemos, os partidos de esquerda obtiveram a maioria dos lugares no parlamento (122, contra os 107 da coligação PàF) e 50,7% dos votos válidos (contra os 38,4% da coligação de direita). Mas esse não foi o dado mais relevante dos resultados eleitorais. A novidade, com um alcance verdadeiramente histórico, reside na disponibilidade efectiva para que PS, BE, PCP e PEV cheguem a um acordo que assegure o apoio no parlamento a um governo de esquerda e que, desse modo, garanta a «estabilidade» e o «consenso» a que Cavaco Silva tanto apelou. Sim, uma maioria parlamentar, só que situada à esquerda e com um entendimento diferente daquele em que o presidente estava a pensar.
As implicações deste novo quadro de relacionamento à esquerda são profundas, ameaçando tornar obsoleto o mapa mental a que por tradição se recorre para interpretar a vida política, a representação parlamentar e a própria governabilidade do país. Os denominadores comuns desse consenso - que se estão a desenhar a partir da observação dos compromissos internacionais, da defesa do trabalho, das políticas sociais públicas e do papel do Estado, bem como a partir da recusa de um modelo económico de subdesenvolvimento, assente nos baixos salários e na desqualificação - forçam a deslocação da linha de fractura convencional para o lugar onde esquerda e direita verdadeiramente se dividem. E isolam, na actual conjuntura, uma direita que glorifica a austeridade como pedra angular de todo um projecto político e legislativo. Ou seja, a direita da selvajaria neoliberal que, se se olhar ao espelho, já não consegue nele ver reflectido qualquer traço de social-democracia ou de democracia cristã. Aliás, foi a sua fúria e extremismo que muito contribuiu para o reforço e a convergência das esquerdas, instadas pelos eleitores, durante a campanha, a dialogar e a entender-se.
Como num movimento telúrico de tectónica de placas, esta deslocação da principal linha de fractura suscita medos e perplexidades. À direita, sobressai o medo que o Pedro Nuno Santos assinalou aqui, de forma particularmente cristalina: o medo de que a convergência à esquerda seja bem sucedida, apesar de todos os arremedos golpistas, da sabotagem em curso e da invocação artificial de fantasmas e demónios. À esquerda, a perplexidade de se constatar que ainda há quem considere que é possível e desejável, nas actuais circunstâncias (e com os actuais protagonistas), chegar a um acordo de merceeiro com a coligação PàF, como se água e azeite se pudessem, de súbito, misturar. Não percebendo (ou preferindo não perceber) que às vezes não há nada melhor, para se conseguir um bom avanço quando se está em posição desfavorável, do que fingir recuar.
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10 comentários:
É muito cedo para afirmar com certeza que esta mudança ocorreu: é necessário esperar pelo acordo PS+BE+PCP e, pelo menos, pela aprovação do primeiro orçamento. Esse é que será o teste decisivo.
""... o comunicado diz que os socialistas apenas viabilizam “um governo que garanta o cumprimento das obrigações do país em termos orçamentais” e pedem uma avaliação das medidas do programa do governo PSD-CDS."
http://rr.sapo.pt/noticia/37888/socialistas_querem_ver_contas_do_governo_psdcds_e_garantem_cumprimento_das_regras_num_governo_ps
Afinal o PS ainda pode viabilizar um governo PSD+CDS? Ou, sabendo de antemão que não o viabiliza, prefere adiar a queda do governo da Coligação e da formação do novo governo PS+BE+PCP?
Por outro lado,
"... os socialistas apenas garantem que “as regras orçamentais serão cumpridas” por um governo liderado pelo partido."
Se considerarmos "O triângulo das impossibilidades da política orçamental" (http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2014/05/o-triangulo-das-impossibilidades-da.html) aqui muito bem explicado por Ricardo Paes Mamede, qual das três opções será abandonada pelo PS:
(1) cumprir do Tratado Orçamental;
(2) pagar a dívida pública nos termos actualmente previstos;
(3) preservar um Estado Social típico de uma sociedade desenvolvida.
O problema é que não foi só o Presidente que foi enganado na sua percepção, e a melhor maneira de constatar isto seria ir a eleições novamente.
Se o Presidente da República pudesse exercer todos os seus poderes possivelmente o PS nunca teria esta posição de fratura.
Por outro lado, se o PS tivesse 38% e a PAF 32%, o PS estaria a negociar com o BE+PCP ou com o PSD?
E por último, se o PS vai cumprir com as regras do tratado orçamental, não faz sentido definir a PAF como "Austeridade como programa político" pois a austeridade também vai estar do outro lado.
Bemvinda fractura!
E se há quem erradamente pressuponha estar ela 'ameaçando tornar obsoleto o mapa mental', virá a saber que não é o facto de a nomenklatura do PS, sedenta de poder, trair boa parte do seu eleitorado não lhe formata o mapa mental, seguramente formatou-lhe a vontade de não cair em semelhante logro.
E diz-me a razão e a economia, que não tardará muito que o PS venha pedir colinho à direira - oportunismo oblige!
Mas quer a Direita quer a 'verdadeira' esquerda ficarão felizes em repartir os despojos que enfim darão fim (Oremos!) ao poder dos maçónicos da 1ª República.
Que há muita gente que acha que a linha de fractura mudou de lugar, parece-me inquestionável.
Se de facto ela mudou de lugar ou não, veremos nas próximas eleições.
henrique pereira dos santos
Barroso, rey de la puerta giratoria: un tercio de sus comisarios saltaron de Bruselas a la empresa privada
Además del expresidente de la Comisión, hoy ligado al club Bilderberg y con otras 21 funciones, nueve excomisarios han cruzado la puerta giratoria en menos de un año. Entre ellos está el impulsor del TTIP en Bruselas, el excomisario de Comercio Karel De Gucht
http://www.publico.es/politica/comisarios-comision-barroso-saltaron-bruselas.html
http://www.publico.es/politica/comisarios-comision-barroso-saltaron-bruselas.html
Grande Durão Barroso...é mesmo um campeão...a normalidade como isto é olhado é por si revelador do estado em que nos encontramos, a displicência é absoluta...
Pois é, há muita gente a torcer para que não corra bem. Que bom, e que jeito dava, o mito do “arco da governação”!
Para lá da linha de fractura podem por lá continuar o Carlos Silva e Proença da UGT, o Assis e o Vitorino, entre outros. Sem qualquer rancor.
Esta deslocação da linha de fractura é tanto mais impressionante quanto dá mostras de não ser um fenómeno localizado, confinado a um pequeno país num extremo da Europa, mas uma vaga de fundo. Trata-se, porém, por enquanto, de uma deslocação incompleta. A fronteira entre os partidários da austeridade e os do crescimento mudou de lugar, mas a fronteira entre os soberanistas e os "europeístas" continua onde estava. Não vai continuar aí para sempre: tarde ou cedo todos terão que se defrontar com a escolha entre, por um lado, soberania nacional, soberania popular e democracia e, por outro lado, manutenção dos tratados e do euro. O conflito vai apresentar semblantes diferentes - está já a apresentá-los - nos diferentes países da zona euro e até fora dela. Mas é o mesmo conflito. A linha de fractura deslocou-se também, ou está a deslocar-se, à escala europeia. E nada do que se passar num país deixará de ter repercussões em todos os outros.
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