quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Leituras

«Os vistos gold são uma imoralidade (...) digna de país de Terceiro Mundo, onde certos princípios elementares são torpedeados porque é preciso ganhar a vida. Que essa iniciativa tenha nascido numa área partidária que se assume como democrata-cristã, eis a triste ironia de tudo isto. (...) A razão é óbvia: os vistos gold são uma escandalosa violação de um princípio de igualdade que deveria ser sagrado. (...) Nenhum de nós admitiria que direitos fundamentais como a residência ou circulação estivessem dependentes do tamanho da nossa conta bancária. (...) Mas é isso que a Lei 29/2012 permite a cidadãos estrangeiros: comprar o direito a viver em Portugal e a passear pela Europa por 500 mil euros. (...) Pior: três curtos meses depois de a lei ter entrado em vigor (...), os requisitos originais estavam a ser facilitados por despacho: a necessidade de criar postos de trabalho passou de 30 para 10. (...) Chamar aos vistos gold "Autorização de Residência para Actividade de Investimento em Portugal" é apenas um nome pomposo para um processo que pisca os dois olhos à lavagem de dinheiro e onde nunca houve verdadeira "actividade de investimento". (...) Esta é uma lei que se sabia, à partida, ter uma gigantesca probabilidade de atrair dinheiro sujo.»

João Miguel Tavares, O baixo preço da nossa dignidade

«Na prática, ninguém ainda sabe o que realmente lucrou a economia e o Estado portugueses com o negócio dos vistos dourados. A brochura diz-nos 1.075.749.834,75 de euros, mas as dúvidas agora suscitadas (...) aconselham-nos a ter cautela. (...) Exemplo: escritura-se um imóvel por 500 mil euros (quantia mínima para se obter um visto), mas paga-se apenas 300 mil euros ao vendedor, que na verdade somente recebe 200 mil, dado que os restantes 100 mil euros foram para comissões. No fim da linha, resulta de "ganho oficial" para o Estado os tais 500 mil euros. Embora a vantagem real tenha sido menor. (...) O Estado foi conscientemente enganado pelo próprio Estado. (...) Caindo, no limite, por terra, além da seriedade do projeto, a sua derradeira missão: oxigenar a economia com capital.»

Pedro Ivo Carvalho, Mil milhões de coisa nenhuma?

«Os dados são revelados pela própria Confederação Portuguesa da Construção e do Imobiliário, parte interessada na manutenção dos vistos: 1076 milhões de euros entraram no país em investimento estrangeiro captado pelos vistos "gold", dos quais 972 milhões correspondem a aquisição de imobiliário nacional. Ou seja, os outros 100 milhões foram directamente para transferências bancárias. Pobre país que vende a sua cidadania desempoeirando e escoando as suas casas de 500 mil euros, permitindo negócios obscuros, fuga de capitais e lavagem de dinheiro sem criar um único posto de trabalho. Seguramente, nem habitando as casas ou comprando mobília. Só imobiliário, nada de mobiliário. Pessoas, zero. Só fantasmas e milionários sem rosto absolutamente desinteressados em financiar, investir ou capitalizar empresas.»

Miguel Guedes, Ouro made in China

«A corrupção em Portugal não acontece porque há alguns vígaros que prevaricam; existe e prospera porque há gente que se apropriou indevidamente da democracia e do Estado. (...) Como escrevia o historiador social-democrata Tony Judt: "A desigualdade é corrosiva. Apodrece as sociedades a partir de dentro." (...) Num país cada vez mais injusto do ponto de vista económico, político, social, o que se pede não é que se diga "não sei", mas que as pessoas sejam capazes de mostrar que não querem mais esta situação. Aquilo que sustenta os corruptos é o nosso silêncio e a nossa incapacidade de imaginar uma solução radicalmente diferente da rotatividade contentinha que temos vivido nos últimos 40 anos entre os mesmos grupos de interesses.»

Nuno Ramos de Almeida, Isto é mais um problema de política que de polícia

«A comercialização de facilidades na emissão de vistos em troca da compra de casas de luxo transforma um acto de soberania num mero negócio. Num país que trata mal os imigrantes e que quase não aceita exilados políticos isto torna-se ainda mais aviltante. Presumindo a inocência dos envolvidos e a seriedade da investigação, sei apenas que a um Estado que institucionaliza a compra de vistos sobra pouca autoridade moral e simbólica para combater os que achem que o cumprimento das suas funções pode ser aligeirado em troca da soma certa de dinheiro.»

Daniel Oliveira, Vistos gold e o espírito de um Estado corrupto


(Na foto, uma das frágeis embarcações que rumam quotidianamente a Lampedusa, repleta de pessoas em desespero, que fogem da guerra e da miséria para esbarrar, quando as alcançam, nas muralhas da Europa fortaleza. Que não haja confusões: uma coisa são vistos gold e outra são vistos death. Alinhada com a mais desenfreada volúpia neoliberal, a democracia cristã do CDS/PP resume-se hoje a isto. Por mais que proclame, com infindável cinismo, «ética social na austeridade»).

16 comentários:

Anónimo disse...

"Alinhada com a mais desenfreada volúpia neoliberal, a democracia cristã do CDS/PP resume-se hoje a isto. Por mais que proclame, com infindável cinismo, «ética social na austeridade»).

Nem mais.

Um muito bom conjunto de textos.

As conferências de portas sobre os vistos gold são agora substituídas pelas pressões nos bastidores para se calar o papel deste "submarino" nos vistos gold.

A choldra continua

De

Jose disse...

Do fim para o princípio:
Se formos a África dar trabalho e saúde e ordem, seremos colonialistas, exploradores, provavelmente racistas e seguramente ofensores de firmes nacionalidades.
Se entregues essas populações à miséria e à corrupção dos seus dirigentes, se dirigem à caridade da Europa, somos impiedosos xenófobos.
Talvez devesse-mos assumir a santidade e partir a missionar...

Jose disse...

Quem não tem cão, caça com gato.
Haveríamos de poder escolher, mas ninguém se interessa senão pela paisagem…tanta gente qualificada, tanto opinador iluminado, tantas leis e regulamentos e convenções, tanta luta anti-capitalista. Enfim, somos mal compreendidos.

Jose disse...

Vive-se nesta angústia de não aparecer quem devidamente se aproprie da denocracia e do Estado.
Não sendo a democracia e suas eleições livres um meio eficiente, como dão por provado, à messiânica visão nada importa que se lhe acrescente a construção de uma qualquer paradoxal igualdade. E vai daí, como a corrupção sempre pressupõe alguma diferença, logo esta fica do mesmo golpe resolvida. Fácil, fácil!

Jose disse...

É falso que a cidadania seja garantida, e tudo o mais tanto se me dá.

Jose disse...

Fico aterroizado com a ideia de que haja quem voluntáriamente pague impostos acima do que é devido.

Jose disse...

A sagração do princípio da igualdade tem o seu lugar no espaço do sagrado, que segundo as melhores investigações continua a não ser deste mundo.
Mas a sua invocação é um dos pilares do discurso correcto, autorizando a banalização de questões complexas.

Anónimo disse...

(Talvez "devesse-mos" ir a Africa num processo de aprendizagem da língua mãe?)

Mas o que importa sublinhar é a pulsão colonialista que subsiste em muitos dos saudosistas do império colonial.

Lembra um pouco o discurso de césar das neves.A hóstia na boca, o crucifixo numa mão e o cacete na outra.
Para que não se confunda o respeito pela dignidade humana com o alienável direito ao saque. Escondido atrás de séculos de exploração desenfreada , sob o actual disfarce de "dar trabalho e saúde"

Esta é para rir mesmo. Mas os trejeitos do colonialismo estão incrustados à pele de alguns. Não adianta nada mais do que o apontar deste facto

Mais importante é sublinhar ( mais uma vez) o que escreveu de facto o autor deste post que faz a comparação entre as duas realidades." uma coisa são vistos gold e outra são vistos death".

E a isto o sr jose remete-se a um silêncio de pesadelo...

De

Anónimo disse...

Quem não tem cão caça com gato é um proverbio interessante.

Mas cuja invocação sai fora do contexto do referido pelo Daniel Oliveira.

Para sermos honestos tudo nesse "comentário " do sr jose sai fora do texto. Mas respeitemos estes exercícios dos "mal compreendidos"

De

Anónimo disse...

Vejamos de seguida esta espantosa frase:
" como a corrupção sempre pressupõe alguma diferença"

Isto é o quê?
Um exercício mal feito ,desconexo e à pressa de desculpabilização dos corruptos e da corrupção?

Um exercício que gera perplexidades e que vem ao encontro de outras afirmações de "compreensão" para o trabalho destas figuras corruptas sinistras e a roçar o abjecto.
Tudo gente de bem, príncipes dos boys , executantes governamentais dos credos neoiliberais, anafados " empresários" , gestores de topo sem vergonha , auditores néscios e pútridos.

"Fácil, fácil".
Ou outra forma de dizer que o melhor mesmo é mudar de assunto que a cumplicidade mais ou menos voluntária tem pernas curtas e que a missa da "paradoxal igualdade" nos espera já ali

DE

Anónimo disse...

Vejamos outra espantosa frase:

"É falso que a cidadania seja garantida"

Um expediente habitual este de se citar uma frase que nem sequer está no texto?

Extrapolações no mínimo dúbias a roçar ou a ignorância ou outra coisa qualquer

"Pobre país que vende a sua cidadania"

Tudo dito. Compreende-se o "tudo o mais tanto se me dá". Ou outra forma de silenciar o tudo o mais que é explicitado no texto.

Ah ,estas solidariedades com "a mais desenfreada volúpia neoliberal, a democracia cristã do CDS/PP " e com o seu pregador travestido de visto gold, o paulo portas

De

Anónimo disse...

Leia-se o que Pedro Ivo Carvalho escreve:
" escritura-se um imóvel por 500 mil euros (quantia mínima para se obter um visto), mas paga-se apenas 300 mil euros ao vendedor, que na verdade somente recebe 200 mil, dado que os restantes 100 mil euros foram para comissões."

e veja-se a "resposta" do sr jose:
"Fico "aterroizado" com a ideia de que haja quem "voluntariamente" pague impostos acima do que é devido.

A defesa da fuga aos impostos?(sobretudo pelos "negociantes" deste jaez. bons exemplares dos "empreendedores" de sucesso?)
A defesa sem prurido da ilegalidade assente na consideração individual dos "impostos que são devidos"?

Ah, mais uma vez se regista a pieguice para com tais belos exemplares dos que se julgam donos do mundo.

De

Anónimo disse...

E chegámos ao ponto já citado atrás. A "paradoxal igualdade", agora vestida deste curioso traje:
"A sagração do princípio da igualdade tem o seu lugar no espaço do sagrado, que segundo as melhores investigações continua a não ser deste mundo"

Eis a defesa do darwinismo social , tão caro a coisas como friedam e o seu colega chileno.

As "melhores investigações" remetem-nos para as teses pseudo-científicas que suportavam o esclavagismo em épocas" de antanho.
Toda uma discussão já tida n vezes e onde se tenta esconder a contestação à igualdade de oportunidades e à equitativa distribuição dos rendimentos com as triviais diferenças biológicas entre os seres humanos.

A eugenia também tentou utilizar tais processos "científicos" baseados nas "melhores investigações.

Deu no que deu

De

Unknown disse...

O José, como bom neo-liberal que é, se precisasse vendia a mãe.

Jose disse...

Para determinar a indigência de uima argumentação basta vê-la dirigida ao mensageiro, não pelo que disse mas pelo que se lhe atribui.
O grande esforço da esquerda é garantir que esta se defina por estados de alma e isentada de qualquer realismo; como uma religião qualquer.

Anónimo disse...

A objectividade obriga a estas correcções:
-Talvez "devesse-nos" assumir a santidade
-somos mal compreendidos
-E vai daí, como a corrupção sempre pressupõe alguma diferença, logo esta fica do mesmo golpe resolvida. Fácil, fácil!
-tudo o mais tanto se me dá
-Fico aterrorizado
-A sagração do princípio da igualdade tem o seu lugar no espaço do sagrado

tudo isto, todo este palavreado, não traduz mais do que "estados de alma".

É inútil contratar qualquer "auditor" mais ou menos corrupto para confirmar tal.Ou um "beato" ao calhas para pregar a missa habitual em tais casos

De