segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

A inflação já voltou ao normal? Depende do que entendemos por isso

 

Este é o primeiro de uma série de cinco textos sobre o que aprendemos acerca da inflação nos últimos três anos e o que podemos esperar para os próximos tempos.


Desde que, há cerca de três anos, a taxa de inflação começou a subir para valores que a maioria dos países ocidentais não registava há algum tempo, a prioridade expressa pelos bancos centrais foi a de fazer com que esta regressasse aos 2%. Este é o “alvo” que a maioria dos bancos centrais define e em torno do qual se centra o seu mandato: tomar as medidas necessárias para garantir que o ritmo de aumento dos preços não é superior (ou, nalguns casos, inferior) a 2%, pelo menos durante muito tempo.


Ainda que o mandato dos bancos centrais não seja igual em todo o lado, existe um amplo consenso em relação ao “alvo” que definiram para a inflação. A meta dos 2% é oficial em mais de 60 países por todo o mundo. A pergunta óbvia que surge é: de onde é que veio este número? Ao contrário do que se possa pensar, o alvo não foi definido por nenhuma das maiores potências económicas que hoje o adotam, como os EUA, a Zona Euro, o Reino Unido ou o Japão. O primeiro país a adotar formalmente os 2% de inflação como alvo do banco central foi a Nova Zelândia, em 1989. E a história de como se chegou ao valor ainda é mais surpreendente.

O presidente do banco central, Don Brash, começou as suas funções num contexto em que a economia neo-zelandesa – à semelhança do resto do mundo – enfrentava níveis de inflação elevados após os choques petrolíferos da década de 1970. Com o paradigma da independência dos bancos centrais em relação ao poder político a cimentar-se, Don Brash e David Caygill, então ministro das Finanças, foram mandatados para definir um alvo para a inflação e formalizar a independência do banco central.

Durante este processo, o antecessor de Caygill no ministério das Finanças deu uma entrevista em que disse que a meta do governo era garantir que a inflação se fixasse entre 0% e 1%. Como Brash reconheceu mais tarde, “Foi quase uma frase ao calhas […] O número surgiu do nada para influenciar as expectativas na opinião pública”. E teve impacto no processo de decisão. Brash e Caygill consideraram que seria melhor ter uma margem de manobra ligeiramente maior e acabaram por definir o alvo do banco central nos 2%. A taxa de inflação da Nova Zelândia atingiu esse valor ao fim de dois anos e o alvo começou a ser adotado por outros países, como o Canadá ou o Reino Unido, até se generalizar.

O mais surpreendente é que, como os próprios intervenientes reconhecem, não havia nenhuma justificação teórica para o alvo dos 2%. Não provém de nenhum estudo académico ou de cálculos rigorosos. Foi um número que “caiu do céu” e se tornou a norma adotada pela maioria dos países.

Desde então, tem havido várias tentativas de encontrar evidências para justificar o alvo dos 2%. Uma das ideias que ganhou relevo foi a de que a inflação constitui um entrave ao crescimento. O pressuposto é o de que as economias têm melhor desempenho quando o banco central controla de forma estrita a evolução do nível geral dos preços. Contudo, não é isso que a história das economias sugere. A história mostra que níveis de inflação relativamente mais altos estão associados a períodos de crescimento real mais robusto. A investigação de Robert Pollin e Hannae Bouazza, investigadores na Universidade de Amherst (EUA) que analisaram uma amostra de 130 países ao longo de seis décadas, aponta para que o crescimento das economias seja superior quando a inflação se encontra entre 4% e 5%.


Mesmo olhando apenas para os 37 países classificados pelo Banco Mundial como sendo de “rendimento elevado”, com PIB per capita superior, o resultado é semelhante: as economias tendem a crescer mais (em termos reais) quando a inflação é relativamente superior a 2%. Se fosse este o critério, não faria sentido fixar limites tão baixos para a inflação.

Outro problema desta abordagem é que a resposta que os bancos centrais adotam quando a inflação excede o alvo dos 2% – que passa por aumentar as taxas de juro – é cega em relação às origens da inflação. Esta medida é pensada para responder a pressões inflacionistas que resultam de excesso de procura agregada: se os preços começam a aumentar devido ao facto de haver demasiada procura para a oferta existente (por exemplo, devido a um aumento acentuado da despesa pública ou do poder negocial e dos salários dos trabalhadores), a subida dos juros tem como propósito comprimir o investimento e o emprego e estancar a pressão sobre os preços.

Só que a inflação pode não ser motivada por problemas do lado da procura, mas sim da oferta. E é isso que sugerem os dados disponíveis sobre a inflação dos últimos três anos: sem sinais de excesso de procura, o que motivou a subida inicial dos preços da energia (que depois se alastraram ao resto das atividades económicas que dela dependem) foram os constrangimentos da oferta provocados pelas medidas de confinamento e, sobretudo, pela guerra na Ucrânia, que fez disparar os preços do petróleo e do gás.

Aumentar as taxas de juro não tem nenhum efeito óbvio sobre os preços da energia. No entanto, o mandato dos bancos centrais – sobre o qual não temos controlo, uma vez que estes foram tornados independentes do poder político – determina que utilizem o único instrumento de que dispõem, i.e. a política monetária. Para quem só tem um martelo, todos os problemas parecem pregos.

É difícil perceber que papel desempenhou a política monetária na descida da taxa de inflação para valores próximos dos 2%. A redução da pressão sobre os preços não aconteceu por via do arrefecimento do mercado de trabalho, visto que, durante a subida e a descida da taxa de inflação, tanto o desemprego como o rácio de ofertas de emprego sobre o desemprego mantiveram-se essencialmente inalterados. O que se verificou foi uma descida dos preços da energia e uma diminuição dos constrangimentos do lado da oferta, o que pode ajudar a explicar porque é que a redução da inflação aconteceu de forma generalizada, mesmo em países onde o banco central não aumentou a taxa de juro diretora, como o Japão. Como escreveu Joseph Stiglitz, “a desinflação ocorreu apesar das ações dos bancos centrais e não por causa delas”.

Também convém ter em conta que os custos da política monetária não são iguais para todos. Um aumento das taxas de juro afeta de forma diferente grupos diferentes: por um lado, tende a prejudicar quem tem dívidas, penalizando sobretudo os que se encontram nos escalões de rendimento mais baixos, e a beneficiar os credores e/ou detentores de ativos financeiros, tipicamente nos escalões mais altos; por outro, se comprimir a atividade económica e aumentar o desemprego, que atinge primeiro os trabalhos mais precários e com piores salários, também prejudica quem ganha menos. Ao definir um alvo demasiado baixo para a inflação considerada aceitável, os bancos centrais ficam mandatados para aplicar uma política de subida dos juros que não afeta todos da mesma maneira.

Como o alvo dos 2% é arbitrário, tem sido alvo de controvérsia mesmo entre os economistas convencionais. Figuras como Paul Krugman (nobel da Economia) e Olivier Blanchard (ex-líder do FMI) já defenderam que o limite poderia ser aumentado, para evitar uma política monetária demasiado restritiva que provoque uma recessão. No Financial Times, Martin Sandbu avançou recentemente a possibilidade de o BCE implementar um sistema de taxas de juro diferentes para beneficiar investimentos em prioridades estratégicas da União Europeia (desde a descarbonização à inovação digital). Sandbu considera que o BCE não pode “fingir uma pureza tecnocrática”, embora reconheça que este tipo de políticas implica uma “realocação de recursos [entre setores] que requer prioridades democraticamente definidas”.

Esse é um dos principais problemas do paradigma atual, visto que as decisões dos bancos centrais estão longe de ser “neutras” ou “técnicas”. A política monetária, tal como a política orçamental, é política: depende de premissas discutíveis sobre as origens, os custos e os benefícios da inflação. Esta questão não se vai tornar menos relevante nos próximos anos, sobretudo porque há motivos para crer que a inflação vai continuar a ser influenciada por fatores em relação aos quais a política monetária tem pouca utilidade. Será o tema dos próximos posts.

1 comentário:

  1. Subscrevo interiramente.
    Acerca da "taxa ideal de inflacao" para o crscimento do PIB, acrescento tambem que Thomas Piketty demonstra convicentemente nas suas series de dados sobre PIB, inflacao e distribuicao de rendimentos em pelo menos 5 economias desenvolvidas que ate a revolucao industrial o tamanho das economias era quase exclusivamente determinado pelo populacao, havendo fraquissimos aumentos de produtivadade, traduzindo-se numa situacao de crescimentos de PIB a volta de 0.1 a 0.2% por ano e inflacao zero.
    A inflacao em regimes de baixo crescimento tende sempre para zero, ou concomitantemente, baixas taxas de inflacao tendem sempre a deprimir crescimento.

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