domingo, 6 de outubro de 2024

Um jornal que faz perguntas radicais


Perante mais uma desolação cinza e negra de muitos milhares de hectares, desta vez em Setembro, um refrão proprietário ecoou nas televisões, acompanhado de uma exigência: os donos dos terrenos não têm a obrigação de os limpar se estes não gerarem rendimento adequado, pelo que o Estado deve subsidiar os proprietários florestais. Afinal de contas, os proprietários gerariam benefícios para o conjunto da comunidade, o que os economistas convencionais chamam de «externalidades positivas». 

Na realidade, os donos de terrenos rústicos florestais têm a obrigação legal de os limpar regularmente. É, entre outras, a contrapartida pelos múltiplos custos em que a comunidade política incorre para lhes garantir a criação e protecção do direito de propriedade privada. É necessário reconhecer que as acções e as omissões proprietárias têm implicações, tantas vezes negativas, sobre o que é dos outros, sejam indivíduos ou colectivos. 

Na União Europeia, não há outro país onde a propriedade privada da floresta seja tão prevalecente. Por todo este país de propriedade privada esmagadora e tantas vezes pulverizada, multiplicam-se histórias de quem tem os terrenos limpos, lado a lado com o desmazelo e a irresponsabilidade proprietária. Tudo o que fazemos com o que é nosso tem implicações sobre o que é dos outros, sejam bens materiais ou imateriais, digamos: saúde, segurança, tranquilidade. 

A propriedade é sempre uma relação social, politicamente determinada. E, por exemplo, uma coisa é plantar e cuidar de floresta autóctone, outra coisa é plantar milhares e milhares de hectares de eucalipto no quadro de um capitalismo verde-negro, totalmente desadequado na época das alterações climáticas. Este capitalismo é demasiado tolerado por um Estado com capacidades e conhecimentos brutalmente enfraquecidos nesta área, graças à destruição de serviços florestais pelos processos de neoliberalização em livre curso desde o cavaquismo. 

 A Constituição da República Portuguesa prevê o direito de propriedade privada, mas subordina-o ao interesse geral e incrusta-o num feixe de direitos e deveres económicos e sociais que o transcendem e limitam, até pela existência de outros direitos de propriedade, pública ou cooperativa, no quadro de uma economia mista, condição material mínima para a subordinação do poder económico ao político. 

Apesar disso, quem se deixe intoxicar pela comunicação social dominante, ficará convencido de que ser proprietário é só ter direitos, cada vez mais direitos, com nulas obrigações, com nulo reconhecimento de qualquer função social; ou melhor, com todos os deveres a serem transferidos para o Estado e, assim, socializados. A ideologia proprietária televisionada afiança falsamente que o que é de todos não é de ninguém, o que significaria que poderíamos retorquir: será que os deveres que são de todos, sem os quais de resto não existiria propriedade privada, não são de ninguém? 

As televisões ditas privadas usam e abusam de um bem público licenciado pelo Estado — o espectro hertziano terrestre destinado à radiodifusão —, furtando-se aos seus deveres de formar e informar, sem que haja qualquer consequência: claramente, a ideologia dominante é a dos seus proprietários, num capitalismo televisivo sem freios e contrapesos, até pelo enfraquecimento do poder dos jornalistas. Sim, por todo o lado, as relações de propriedade são relações de poder.

Entre as várias funções sociais do Le Monde diplomatique — edição portuguesa, e da cooperativa cultural que o edita, está a de contestar a ideologia proprietária que gostaria de impedir perguntas radicais: quem se apropria do quê e porquê e, correlativamente, quem tem liberdade e quem a ela está vulneravelmente exposto? Um jornal pode colocar estas perguntas livremente também graças à forma de propriedade cooperativa que o organiza e responsabiliza. 

O resto do artigo sobre desordens proprietárias pode ser lido no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de outubro. Coube-me a responsabilidade de substituir Sandra Monteiro no editorial da edição portuguesa. Assinai, apoiai este projeto cooperativo.

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