domingo, 4 de agosto de 2024

Almoço, agosto


Anteontem almocei num restaurante chamado Cantiflas. Tinha a televisão ligada, mas o som desligado. Foi melhor assim. 

Enfermeiras, agricultores durienses e operárias conserveiras protestavam numa sucessão de imagens e de legendas. Fazem muito bem, dados os salários e os outros rendimentos baixos e as condições de trabalho duras para quem produz tudo o que tem valor, do cuidado a uma lata de sardinha e a um copo de vinho. 

Como escreveu recentemente o filósofo Michael Sandel, “os arranjos económicos não definem apenas a distribuição de rendimento e de riqueza, já que também determinam a alocação de reconhecimento e de estima sociais”.  

Este país precisa de ondas e ondas de contestação social para que haja distribuições progressivas em tantos planos, já que as elites do poder não têm medo, nem vergonha, nem nada. E são até capazes de convocar a tirânica ideologia do mérito, tão bem escalpelizada por Sandel no seu último livro. São tantas as razões, as particulares e as gerais, para ligar o som. Os liberais, no sentido clássico dos que o são até dizer chega, detestam a voz dos de baixo, adoram a compulsão imposta de cima. 

Entretanto, a notícia seguinte foi a da foto. Quando as grandes empresas apresentam lucros recorde, este Governo dos ricos pretende baixar-lhes o IRC. Esta é uma uma medida que para lá de ser injusta, ainda para mais num contexto de regras euro-austeritárias cada vez mais discricionárias, só é eficaz a encher ainda mais os bolsos dos acionistas. Se as esquerdas, todas elas, se abstiverem de combater esta gente falharão ao povo. 

O investimento depende das expetativas de vendas, dizem os empresários há anos a fio, quando o INE lhes pergunta. Quando agem como classe para si sonham com salários e impostos baixos e têm ecos comunicacionais. 

Não ouvi os sons da classe dominante ao almoço. Felizmente, só ouvi as vozes de gente, incluindo os operadores de máquinas agrícolas durienses com quem tinha falado de manhã, a almoçar a bela diária de pernil e a falar dos almoços passados e futuros, imagino. 

O mês de agosto ainda há-de ser querido por/para todo o povo.

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