domingo, 3 de março de 2024

Quem vai salvar a democracia?


Nas próximas eleições legislativas, as mulheres grisalhas vão desempenhar em Portugal o mesmo papel que as mulheres negras do Nordeste desempenharam nas eleições presidenciais brasileiras: votando à esquerda, vão salvar o Estado de Direito Democrático e Social, derrotando as direitas cada vez mais extremadas. Consolidei esta convicção ao ver Luís Montenegro ser interpelado por uma reformada que trabalhou a vida inteira e que não se esqueceu da política de Passos Coelho em relação ao que os seus intelectuais chamavam de “peste grisalha”. O antigo líder parlamentar do PSD, que tinha, no dia anterior, pedido ajuda na campanha ao Primeiro-Ministro do Governo da Troika, embatucou perante a força política da memória. 

Não são apenas as mulheres grisalhas que têm memória. Os trabalhadores que auferem o Salário Mínimo Nacional (SMN) lembram-se do ataque a esta instituição de decência laboral mínima durante esses anos de chumbo (2011-2015). Os economistas que elaboraram o programa económico de PSD-CDS-PPM destacaram-se, sempre, pela crítica aos sucessivos aumentos do poder de compra do SMN, decididos pela solução governativa apoiada pelas esquerdas; poder de compra, de resto, reforçado pela política progressista do passe social, de acesso ao transporte público a preços muito mais reduzidos. 

Lembro, por exemplo, que Joaquim Miranda Sarmento, destacado economista do PSD, defendia, ainda em 2021, aumentos “substancialmente inferiores” aos insuficientes, mas reais, então decididos pelo Governo. Este ceticismo permanente em relação ao SMN é filho da teoria económica neoliberal. Esta última vê no SMN uma interferência malsã, destruidora de emprego, no “mercado de trabalho”, como se as relações laborais fossem uma ordem espontânea, onde tudo corre bem para todos, no melhor dos mundos. Não são e não corre. Na realidade, um SMN em atualização constante gera procura adicional de que dependem outros rendimentos, estimulando a economia. Nos inquéritos do Instituto Nacional de Estatística, os empresários dizem sistematicamente que as “expetativas de vendas” são a principal determinante do investimento, e não os impostos. Não é aliás por acaso que o aumento do poder de compra do SMN esteve associado à criação de tanto emprego. 

Infelizmente, para muitos trabalhadores, a história não foi tão favorável, numa economia que persistiu com uma pressão salarial demasiado reduzida. Uma economia deste tipo é um círculo vicioso do lado da oferta e do lado da procura: menos mercado interno, menos incentivos para o investimento gerador de inovação. As sucessivas rondas de redução de direitos laborais e de correlativos aumentos dos direitos patronais, acentuadas com a aposta do Governo da Troika no enfraquecimento da negociação coletiva, por exemplo, explicam o seguinte padrão: desde o final do século passado até 2024. Segundo cálculos do economista Paulo Coimbra, a produtividade terá crescido 23,9% e os salários reais apenas 11,9%. Se a produtividade cresce acima do crescimento do salário real, automaticamente ocorre uma transferência de rendimentos do trabalho para o capital. A situação só pode ser revertida com a superação da herança da Troika nesta área regulatória, mas para isso é preciso votar nos que sempre insistiram neste objetivo. O PS sozinho não o fará, sabemo-lo da experiência destes anos. 

Entretanto, e para lá de um programa de alteração da fiscalidade tão oneroso quanto injusto socialmente e ineficaz economicamente, o último refúgio das direitas é a desmemória em relação ao contexto que gerou a Troika. Afinal de contas, em 2011, “não havia dinheiro sequer para salários e pensões”, afiançam. Uma afirmação falsa: como mostrou Emanuel Santos, Secretário Adjunto e do Orçamento, entre 2005 e 2011, só as receitas de IRS e IRC davam, no primeiro semestre de 2011, para pagar todos os salários dos trabalhadores do Estado; e as contribuições para a segurança social chegavam e sobravam para pagar as pensões. Na altura, a política de inação do Banco Central Europeu (BCE) permitiu que a taxa de juro das obrigações do tesouro nacional a dez anos chegasse aos 16%, com a dívida pública a ultrapassar os 120% do PIB. Tal não permitia continuar a fazer face ao serviço da dívida. Havia a alternativa da reestruturação por iniciativa do devedor. As elites do poder optaram por aceitar uma reestruturação liderada pelo credor, com austeridade destrutiva associada. 

Quase dez anos depois, em plena crise pandémica, a dívida ultrapassou de novo os 120% do PIB, mas a taxa de juro das obrigações do tesouro nacional a dez anos ficou-se por uns residuais 0,25% e assim permaneceu enquanto o BCE quis, pois é este que pode controlar indefinidamente a taxa de juro de toda a dívida denominada na moeda por si emitida. É tão simples que a mente quase que bloqueia. Retrospetivamente, a austeridade imposta a partir de 2010-2011, com centenas de milhares de postos de trabalho destruídos e com centenas de milhares de portugueses compelidos a emigrar, a par do aumento da pobreza, foi um evitável desperdício, feito em nome da consolidação de um modelo neoliberal. Um facto que deverá permanecer na memória coletiva como momento revelador do preço que o país pagou naqueles anos, por ter abdicado da sua soberania monetária no final do milénio. A memória popular irá derrotar as direitas e as suas políticas. 


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