A eleição de Milei foi saudada não apenas pela liderança do Chega (porventura animada perante as promessas de reverter a despenalização do aborto, liberalizar da posse de armas ou legalizar um mercado de órgãos humanos), mas também por membros destacados da Iniciativa Liberal, como Tiago Mayan, candidato às últimas eleições presidenciais. Ricardo Arroja, outro ex-candidato da IL, também elogiou, no Público, os principais eixos do seu programa económico: reduzir “o Estado ao papel de árbitro como qualquer liberal tenderá a defender” e “acabar com aquela instituição pública que aos olhos do próprio e de muitos milhões de argentinos personifica o principal mal causado pelo Estado ao país: o Banco Central”.
Para avaliar a eleição de Milei, precisamos de olhar para o rumo que trouxe a economia argentina à situação atual. Arroja apresenta um cenário em que sucessivos governos peronistas teriam combinado “isolacionismo económico com a defesa do movimento laboral e do Estado social” e diz-nos que “décadas de experiência [peronista] resultaram numa economia em declínio”. A história, contudo, é bastante mais complexa.
Entre 2002 e 2012, a Argentina teve um período de crescimento económico robusto e melhoria das condições de vida sob a governação de Néstor e Cristina Kirchner. A taxa de pobreza passou de 65% para 27%. A partir desse período, a inflação começou a aumentar devido a uma combinação de fatores, incluindo a desvalorização da taxa de câmbio, que tornou os produtos importados mais caros e desencadeou um conflito distributivo entre trabalhadores e empresas. A Argentina foi depois liderada por um governo de direita liberal (2015-2019) que não só foi incapaz de conter a inflação – chegou a 50% no final do seu mandato –, como foi responsável por um aumento substancial da dívida pública externa e pelo recurso ao FMI. O país entrou em crise e a taxa de pobreza subiu para os 40%. Após a pandemia, de novo com peronistas no poder, o país continua a ter inflação elevada e a taxa de pobreza continua em torno deste valor.
Face a este cenário, a “terapia de choque” proposta no programa económico de Milei tem dois eixos fundamentais: reduzir drasticamente a despesa pública e promover a “dolarização” da economia argentina – isto é, a substituição da moeda nacional pelo dólar norte-americano. A redução da despesa do Estado é, como explica Arroja, o que “qualquer liberal defende”: cortar nos apoios sociais aos mais grupos mais vulneráveis e privatizar os serviços públicos. Javier Milei, de resto, já explicou que vê a justiça social como uma “aberração”. Este programa está em linha com as recomendações do FMI, que tem influenciado a política económica recente no país. Os resultados são conhecidos: agravamento da pobreza e das desigualdades e redução das perspetivas de desenvolvimento no país.
A dolarização da economia também está longe de ser uma solução sem custos. Substituir a moeda nacional por uma moeda estrangeira – num processo semelhante ao da adesão a uma moeda única, por exemplo – implica que o país deixa de controlar a sua política monetária e que as taxas de juro e de câmbio passam a ser definidas por terceiros (neste caso, os EUA). Como a economia da Argentina é bastante diferente da dos EUA, a política monetária mais adequada para uma pode não ser a mais adequada para a outra. Abdicar da possibilidade de desvalorizar a moeda implica que os desequilíbrios externos só podem ser resolvidos por via da desvalorização interna – isto é, com austeridade e corte dos salários reais para diminuir as importações. Tal como na Zona Euro, a única variável de ajustamento passa a ser o rendimento do trabalho.
Além disso, como a dívida passa a estar denominada em dólares, a única forma do país a pagar é acumulando reservas dessa moeda, o que implica uma pressão para o Estado reduzir ainda mais a despesa e as importações, empurrando o país para uma recessão. Na verdade, uma versão desta proposta já foi tentada na Argentina na década de 1990, quando o banco central fixou o valor do peso argentino em dólares norte-americanos. Esta experiência foi abandonada em 2002, após uma crise profunda que arrasou o país e fez disparar a taxa de pobreza para os tais 65%.
Por cá, Ricardo Arroja defende que a proposta de dolarização teria uma grande vantagem: “acabar-se-ia com a possibilidade de o banco central local se imiscuir na política monetária e gerar inflação. Acabar-se-ia também com a possibilidade de o governo local se imiscuir na formação das taxas de câmbio, cobrando impostos diferenciados sobre exportações de diferentes sectores, assim produzindo múltiplas taxas de câmbio, sem correspondência com o de mercado, que distorcem a economia”.
O jargão aparentemente técnico tem uma tradução simples: acabar-se-ia com a deliberação democrática da política monetária e cambial. Em vez de as decisões sobre as políticas que afetam o dia-a-dia da população argentina serem tomadas pelos governantes eleitos por si, a democracia deixaria de se “imiscuir” nos mercados. Não é novidade que o neoliberalismo convive mal com a deliberação democrática. Isso não significa que não devamos prestar atenção quando os seus proponentes o assumem abertamente.
Os países ao lado da Argentina, com economías extractoras semelhantes, não têm este problema, portanto, sejamos honestos: alguma coisa os Argentinos fizeram e continuam a fazer mal.
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