terça-feira, 15 de agosto de 2023

A economia de férias

 

Na última semana, a chegada de mais de 1 milhão de pessoas para as Jornadas Mundiais da Juventude captou a atenção do país. No entanto, apesar da dimensão do evento, este não é o único número notável sobre o afluxo de visitantes a Lisboa e a Portugal. Numa entrevista recente, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), Carlos Moedas, disse que a cidade deveria registar um número recorde de 19 milhões de estadias até ao final do ano, bem acima dos valores pré-pandemia.

Apesar disso, Moedas garantiu que “ainda estamos muito longe do sobre-turismo”, ou turismo a mais, e defendeu que “devemos continuar a apostar” neste setor. O presidente da CML preferiu focar-se na “recuperação absolutamente extraordinária” das atividades turísticas após a pandemia e na sua importância para a economia nacional: “O turismo representa 20% da economia de Lisboa. O turismo é emprego.”

O que Moedas não abordou foi o tipo de emprego de que estamos a falar. Embora o turismo e os serviços associados sejam as atividades que mais têm crescido em Portugal e as receitas atinjam recordes sucessivos, as empresas continuam a pagar dos salários mais baixos do país. De acordo com os dados do INE, o setor do alojamento e restauração tem o 2º salário médio mais baixo entre os vinte setores considerados no país. O turismo representa emprego essencialmente precário e mal pago.

Além disso, o enorme crescimento deste setor tem outros efeitos consideráveis no país. Curiosamente, as declarações de Moedas surgem na mesma semana em que o The Guardian publicou um texto sobre a crise da habitação em Portugal. O jornal britânico dá conta de que “a recuperação económica de Portugal, alimentada pela desregulamentação e por uma série de esquemas destinados a atrair o investimento estrangeiro, distorceu o mercado imobiliário de forma irreconhecível”, listando entre os motivos a liberalização do mercado de arrendamento, os esquemas de vistos gold e os benefícios fiscais para residentes não-habituais e nómadas digitais endinheirados, que lhes permitem pagar bem menos impostos que cidadãos nacionais em iguais circunstâncias.

O turismo desempenhou um papel importante na bolha imobiliária, através da recomposição da oferta de casas para satisfazer a procura externa. Como notou Nuno Serra, nos últimos anos, cerca de uma em cada cinco casas em Lisboa foi adquirida ou arrendada por estrangeiros e esse número é bastante superior no centro da cidade, sendo que se trata de “uma procura que se diferencia pela sua maior capacidade financeira e que é potencialmente inesgotável”. Não é difícil adivinhar as dificuldades sociais associadas a este fenómeno num país de salários estagnados: entre 2012 e 2022, o preço das casas em Portugal subiu 120%, enquanto o rendimento médio das famílias subiu apenas 27% (dados do INE, aqui e aqui).

O excessivo peso do turismo e dos serviços associados tem ainda impactos negativos sobre o conjunto da economia portuguesa. Tratam-se de atividades de baixo valor acrescentado, caracterizadas por fraca incorporação de conhecimento e tecnologia e, por isso, têm baixo potencial produtivo, contribuindo para a estagnação da economia portuguesa nos últimos vinte anos. Aparentemente, nem o governo nem os que se queixam de estarmos a ser “ultrapassados” pelas economias do Leste europeu veem problemas neste processo e no que resulta dele: um modelo de crescimento frágil e manifestamente desigual.

Portugal tornou-se numa economia de férias enquanto boa parte das pessoas que vivem no país se vê forçada a gastar menos nas suas próprias férias (ou a abdicar destas). Inverter a dependência do turismo requer medidas abrangentes por parte do Estado, tanto do ponto de vista da contenção dos fluxos turísticos atuais como do investimento e da promoção de outros setores de atividade no país. Por outras palavras, requer um projeto de desenvolvimento que não se resigne à ideia de que o Estado deve deixar as decisões de investimento entregues ao mercado.

Artigo publicado inicialmente no Setenta e Quatro.

3 comentários:

  1. e como captar actividades de alto valor acrescentado?

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  2. @ Anonimo de 15 de agosto de 2023 às 13:34

    Os livros de historia andam por ai carregados de exemplos. Experimente ler alguns.

    Ainda assim, lanco-lhe uma generalista pista ou duas.
    Grosso modo, intitula-se politica industrial e implica aquele horrivel monstrengo a que chamam intervencionismo estatal.
    Certo, certo e que nenhuma das economias ditas avancadas ganhou o titulo (de avancada) sem a intervencao maliciosa do monstrengo.

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  3. As minhas desculpas pelo comentario fora de topico.
    Mas gostava de chamar a atencao dos escribas do blogue e demais aves de arribacao para este artigozito na BBC.

    https://www.bbc.co.uk/news/business-66506126

    Espantoso que a BBC reporta os mais recentes dados de crescimento economico na economia niponica sem uma unica vez fazer falar sobre a sua politica monetaria profundamente dissonante do resto das economias ocidentalizadas:

    1 - Abracos com o mesmissimo fenomeno inflacionario do resto das economias ocidentializadas, nunca seguiu a politica de alta de taxas de juro, a taxa de juro niponica manteve-se e mantem-se a (veriicando as notas) em -0.1%...

    2 - Uma politica monetaria tao "irresponsavel", naturalmente atraiu uma serie de criticas por parte do comentariado economico ortodoxo... coisas terriveis como hiper-inflacao ou coisa assim estavam prestes a acontecer no Japao em 2022 e corrente 2023... neste momento a inflacao do Japao (verificando as notas) e a mais baixa do G7...

    Conclusao neoliberal: A realidade e uma grandesissima filha da p$%a!

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