Ressonâncias do passado
“Estávamos no final da guerra. Paris tinha-se rendido às forças da Resistência e a actividade heróica do povo francês ligado ao maquis tinha-se tornado conhecida. (...) Já não tínhamos dúvidas – se alguma vez as havíamos tido – de que o nazi-fascismo estava irremediavelmente vencido e a liberdade e a independência regressartiam a uma Europa martirizada. Os fascistas portugueses viram o fim do hitlerismo como o seu próprio fim. Por mais que pretendessem desvincular-se e dizer que eram pela democracia, ninguém os acreditava. No seu frio íntimo tinham a consciência de muitos crimes de que eram responsáveis ou menos encobridores e receavam pela justa vingança. (...)
Ora, numa altura em que a Resistência francesa era glorificada em todo o mundo como a desafronta a uma história recente acomodatícia e colaboracionista, aparece num jornal do Porto um tal Pacheco de Amorim, em dois ou três artigos, a considerar a Resistência francesa como a pior escória, um submundo de marginais, ladrões e assassinos, etc... Todos os que leram, mesmo alguns sem grandes amores pela democracia, consideraram aqueles artigos ascorosos e o seu autor merecedor da repulsa pública. (...)
O tal Pacheco de Amorim tinha sido convidado pela União Nacional do Porto a proferir uma conferência na Universidade onde repitiria as pasquinadas, tentando enlamear as mais belas páginas que o verdadeiro povo francês escrevera neste século. Nós costumávamos reunir-nos no Café Magestic. Éramos um grupo numeroso de antifascistas. Não sei quem lançou a ideia, mas foi logo por todos aceite e planeada cuidadosamente. Teríamos que encher a sala da Universidade com gente nossa e, quando o homem começasse a falar, levantávamo-nos todos e deixávamos sala sem ninguém. Sem uma palavra, sem outra atitude que não fosse aquele protesto de sair. (...) Foi uma coisa memorável. Ainda hoje me recordo como se o presenciasse.
A sala à cunha. Entre a multidão alguns pides que desconfiavam daquela fartura - uma quantidade de oposiocionistas a assistir a uma sessão da União Nacional, não cheirava bem. (...) Começaram a chegar os convidados - o governador civil, o comandante da Região Militar, o presidente da Câmara, os altos dirigentes da UN, o director da PIDE no Porto e, por fim, impante e orgulhoso, o conferente. Foram tomando lugar na mesa de honra e um deles fez a apresentação do conferente, não lhe regateando os elogios da praxe.
E chegou o grande momento. O homem levantou-se, dirigiu-se ao microfone e, mal pronunciara duas ou três palavras, (...) levantámo-nos ostensivamente e saímos devagar, seguidos por toda a gente que estava na sala. Ainda me recordo do Dr.Simeão Pinto de Mesquita, ao alto das escadas, por onde nós calmamente abandonávamos a Universidade, a insultar-nos. E com um nome que nunca entendi porquê - Calceteiros! (...)
No dia seguinte, à tarde, foram prender-nos ao meu escritório. E prenderam mais três ou quatro amigos meus. (...) Quatro longas horas de interrogatório e depois a clássica cena da gravata, o cinto, os atacadores, tudo para evitar o suicídio... O entrar para uma cela fria, escura, com grades que não davam para lado onde se pudesse ver o que fosse e aquela porta brutal a fechar-se foi para a minha claustrofobia um choque violento. (Alexandre Babo, Memórias de um Caminheiro, 1988)
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