sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Propriedades...


O recente debate sobre as políticas relativas à habitação fez-me lembrar o que escreveu John Locke sobre a propriedade no capítulo V do seu Segundo Tratado do Governo. 

Para Locke, "Deus concedeu a terra em comum a todos os Homens," mas acrescenta "também lhes deu a razão, para se guiarem por ela e a usarem da forma mais vantajosa e mais conveniente para as suas vidas".

A isto, Locke junta a noção de propriedade, mas limitando-a a cada pessoa. Cada um é proprietário de si próprio e, por extensão, do seu trabalho. Então, segundo Locke, é através do trabalho que um indivíduo se apropria daquilo que antes era comum. 

Ao mesmo tempo, o trabalho e o usufruto estipulam os limites da apropriação. Explica Locke:

A mesma lei da natureza que nos concede a propriedade define igualmente os seus limites. (…) Através do trabalho, uma pessoa poderá fixar a sua propriedade em tudo aquilo de que puder retirar proveito, antes de se deteriorar. Tudo o que for para além disso, constituirá mais do que a sua parte, e pertence aos outros. 

Se ficássemos por aqui era bastante óbvio que as polémicas propostas do Governo se enquadravam facilmente numa leitura liberal. Continua Locke mais à frente:

caso deixasse que se estragassem, na sua posse, sem serem devidamente utilizados, caso os frutos apodrecessem ou o veado se putrefizesse antes de consumidos, então aquele que deles se tivesse apoderado teria cometido uma ofensa contra a lei comum da natureza, susceptível de ser castigada. Agir assim mais não é do que invadir o quinhão do vizinho, já que ninguém possui o direito de tomar para si mais do que pode usar com vista à obtenção das comodidades da vida. 

Mas a narrativa Lockeana não fica por aqui. É que, entretanto, tal como hoje, entra o dinheiro. Toda a passagem é fenomenal:

não estaria a prejudicar quem quer que fosse, caso conseguisse trocar as suas ameixas, que se estragariam numa semana, por nozes que poderia guardar para ir comendo durante um ano inteiro. A partir do momento em que não permitisse que se estragassem nas suas mãos, não estaria a dilapidar o património comum, nem a destruir qualquer parcela dos bens dos outros. Além disso, se trocasse as suas nozes por um pedaço de metal, encantado com a sua cor, ou as suas ovelhas por conchas, lã por pedra brilhante ou diamante, e os guardasse durante toda a sua vida, de modo algum estaria a invadir o direito dos demais. Nada o impedia de acumular a quantidade que entendesse destes objectos imperecíveis, porquanto não é por obter amplas propriedades que alguém ultrapassa os limites da propriedade legítima, mas por permitir que se estraguem inutilmente em seu poder. 

E assim se introduziu o uso do dinheiro, enquanto elemento duradouro que os homens podiam guardar sem que se estragasse, e que, por consentimento mútuo, podiam trocar por aqueles bens verdadeiramente úteis, se bem que perecíveis, necessários para o seu sustento. 

Ora, graus diferentes de engenho e de esforço humano produzem níveis igualmente diferentes de possessões. De igual modo, a invenção do dinheiro forneceu ao homem a oportunidade de continuar a aumentar aquelas que podia legitimamente adquirir sem risco de se estragarem no seu domínio. 

Os interesses de Locke ficam expostos, então:

é inquestionável que os homens chegaram a acordo relativamente a uma apropriação desigual e desproporcionada da terra, o que foi possível a partir do momento em que, por um consentimento tácito e voluntário entre todos, se encontrou uma via através da qual um homem pode legitimamente possuir mais terras do que aquelas cujo produto pode utilizar. A partir desse momento, a capacidade de apropriação e de produção deixaram de conhecer limites, uma vez que qualquer um podia trocar os seus excedentes por ouro e prata, os quais, sendo metais que não se estragam nem apodrecem, podem ser amealhados sem prejuízo de ninguém. Foi assim que os homens viabilizaram uma repartição desigual de possessões particulares através da atribuição de um valor ao ouro e à prata, chegando tacitamente a acordo sobre a utilização do dinheiro, ainda antes de se unirem em sociedade e sem que tivessem celebrado qualquer contrato social entre si. 

Toda esta argumentação foi extremamente útil na apropriação dos bens comuns (a questão dos enclosures) ou na apropriação das terras dos nativos americanos. Com uma ideia aparentemente benévola de que todo o valor e toda a propriedade apenas advém, legitimamente, do trabalho. Daí, adquiria-se o direito à terra, supostamente através do trabalho dos "homens industriosos e racionais" (hoje diria empreendedores), e depois à acumulação através do dinheiro. Com o dinheiro esta apropriação pode tornar-se infinita e isso, para Locke, é uma coisa boa e para a classe capitalista nascente também. Desta feita, Locke constrói todo um edifício teórico de justificação das desigualdades do sistema capitalista.

Tal como hoje, o dinheiro surge para sobrepor a propriedade aos direitos (naturais) e ao trabalho. Mas a narrativa de Locke sobre a origem do dinheiro esbarra completamente no conhecimento que temos sobre esta instituição. O dinheiro surge depois dos Estados, é criado por Estados e, portanto, a propriedade e a acumulação infinita são uma escolha política (tanta vez marcada pela violência) e não resultado de um qualquer acordo tácito impossível de comprovar.

Se assim é, talvez possamos voltar a pensar em como o direito da propriedade é uma construção política e motivada por interesses e talvez possamos começar a discutir a ilegitimidade de certas acumulações de propriedade, que ao apropriarem-se daquilo que é comum prejudicam diretamente o direito dos outros à propriedade mais básica segundo o próprio Locke: a propriedade de si próprios. 

Dá para discutir isto tudo, só em cima do pensamento de Locke, mas isso foi o que já fizeram tantos. Podia ser a Locke que respondiam Marx e Engels quando escreveram, magistralmente, no Manifesto Comunista:

Horrorizais-vos por querermos suprimir a propriedade privada. Mas na vossa sociedade existente, a propriedade privada está suprimida para nove décimos dos seus membros; ela existe precisamente pelo facto de não existir para nove décimos. Censurais-nos, portanto, por querermos suprimir uma propriedade que pressupõe como condição necessária que a imensa maioria da sociedade não possua propriedade.

Numa palavra, censurais-nos por querermos suprimir a vossa propriedade. Certamente, é isso mesmo que queremos.

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