quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Os preços também têm uma dimensão política

 

Inspirado pela caixa de comentários do jornal Público, resolvi ampliar um exercício numérico que lá vi sobre a relação entre inflação e lucros. A ideia é mostrar como a inflação pode ser tratada de forma muito diversa pelas empresas. Algumas, com grande poder de mercado, conseguem obter lucros exorbitantes porque o Estado se demite da sua obrigação de zelar pelo bem-comum. Situação que também beneficia os administradores através dos bónus que recebem pelos extraordinários lucros alcançados. Já quanto aos trabalhadores, só lhes resta lutar por um aumento no salário que cubra a subida dos preços, algo que o Governo entende que não deve acontecer. 

Vamos por pequenos passos. No ano-base, uma empresa produz 50 unidades ao preço unitário de 10. Tem custos com Salários de 100 e Outros Custos no valor de 80. Portanto, o seu lucro foi de 

(10x50) – (100+80) = 320.

Porém, no ano seguinte houve um aumento de 20% nos Outros Custos, ou seja, estes passam a ser 80x1.2 = 96.

a) Agora, imagine que a empresa é dirigida por um empresário escrupuloso. Perante o aumento nos Outros Custos, apenas quer um aumento da facturação que mantenha o lucro que teve no ano anterior. 

O aumento (16) é dividido pelo valor da facturação (500) e, sendo 3,2%, é esse o aumento que vai aplicar ao preço. Teremos então o seguinte:

(10x1,032)x50 – (100+96) = 320  => (lucro igual)

Por agora não ganha nem perde com a inflação. Porém, com o tempo, talvez conquiste novos clientes com este (muito contido) aumento do preço. 

b) Agora imagine um empresário rigoroso e que diz ter "sensibilidade social". Olha para o aumento dos 20% nos Outros Custos e vê que isso afecta apenas 44% da sua estrutura de custos (80/180)=0,44, pelo que, na verdade, os seus custos aumentaram 8,8% (0,44x0,2 = 0,088). É este o aumento que vai aplicar no preço unitário. 

Sendo um empresário que também percebe que, com a inflação, os salários vão perder poder de compra (redução do salário real) e diminuir a procura na economia, decide dar um aumento de 10% aos seus trabalhadores. O resultado final é este:

(10x1,088)x50 – (100x1,10 + 96) = 338  => (lucro + 5,6%) 

c) Agora imagine um empresário que ignora a situação dos trabalhadores e repercute o aumento dos Outros Custos de acordo com a sua estrutura de custos. O lucro será este:

(10x1,088)x50 – (100+96) = 348  => (lucro +8,8%)

d) Agora imagine empresários que, com a sua ganância, além de oportunisticamente alcançarem lucros exorbitantes, também contribuem para o aumento da inflação. Esses dizem-nos que os custos subiram 20% e, portanto, "são obrigados" a subir o preço também em 20%:

(10x1,2)x50 – (100+96) = 404 => (lucro +26,25%)

Assim, sem qualquer pudor, por pura ganância, estas empresas apresentam lucros extraordinários que, no que excede o valor anterior ao surto inflacionista, deveriam ser tributados a uma taxa de 90%, aquilo a que os neoliberais chamam "confisco".

É bem possível que as empresas de telecomunicações, que acabaram de anunciar aumentos, estejam neste grupo dos "gananciosos". O governo, através do Ministério da Economia e da ANACOM, deveria fazer uma análise da sua estrutura de custos e dos cálculos que fundamentam os preços que vão aplicar. Um procedimento a adoptar sistematicamente nos sectores onde a concorrência está bem longe de ser pura e perfeita. Recordemos o trabalho do economista John Kenneth Galbraith, notável representante da linhagem institucionalista na Economia Política, à frente do Office of Price Administration (1941–1943). Em tempo de guerra, foi assim nos EUA.

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