quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Contributos para a Economia Política da Moeda


Acabei de ler o importante livro de Stefan Eich The Currency of Politics: The Political Theory of Money from Aristotle to Keynes.

É mais um livro a somar a tantos que têm surgido nos últimos anos a relembrar o carácter eminentemente político da moeda. Costuma-se dizer que a Filosofia Política se pode resumir em 2 perguntas: «Quem fica com o quê?» e «Quem disse?». É inequívoco que a forma como as sociedades criam e gerem a sua moeda é central para as respostas que se dão a estas perguntas.

O atual sistema monetário não caiu do céu. É uma criação política com o auxílio precioso de uma certa Economia Política que o justifica. Eich conta a história de importantes controvérsias que puseram a descoberto o carácter político da moeda, desde Aristóteles, passando por Locke, Fichte, Marx, Keynes, até ao sistema atual, pós-Bretton Woods. A constante desta história é a tentativa de diferentes lados em tentar controlar o que é a moeda e quem deve gerir a sua criação e de acordo com que regras. 

As diferentes soluções tiveram sempre importantes implicações distributivas, tanto de riqueza como de poder no seio das sociedades. Portanto, controlar a moeda foi sempre um aspeto central das lutas sociais que marcaram a história. Maiorias empobrecidas lutavam contra a escassez de dinheiro, contra os usurários, contra as rendas elevadas, contra os impostos. Soberanos tentavam expandir a quantidade de dinheiro para cumprir os seus objetivos de guerra, expansão ou luxo. Nobres, clero e outros detentores de capital financeiro, procuravam garantir a escassez de moeda e a estabilidade dos preços (ou até a deflação) para aumentar os seus rendimentos reais e importarem bens de luxo mais baratos. 

É nestes contextos que, em cada momento, se esgrimiram argumentos teóricos sobre a origem, natureza funções e funcionamento da moeda, para servir a cada um dos interesses em questão. Em grande medida é sobre estes argumentos que se fundou a própria economia política.

A posição que tendeu a triunfar nos últimos séculos foi a da despolitização da moeda - a ideia de que a moeda é uma mercadoria e como tal, pertence ao domínio (natural) do económico, devendo ser deixada à liberdade do mercado. Esta ideia começou por se consubstanciar numa limitação ao poder do soberano medieval, até cristalizar no modelo mais rígido do Padrão-Ouro depois de Locke. Autores como von Mises ou Hayek tentaram levar esta teoria ainda mais longe com propostas de privatização total do sistema monetário.

A mensagem central do livro é, então, a de que é necessário resgatar a moeda para a democracia, tal como sujeitamos à democracia as restantes instituições políticas. Isto é, se a moeda é política, temos de a incluir nas perguntas sobre quem fica com o quê e quem disse. 

Como afirma Eich (em tradução livre):

A fim de fortalecer a nossa capacidade de sujeitar o poder financeiro ao escrutínio democrático, precisamos primeiro de tornar esse poder visível e, em seguida, articular como atualmente fica aquém das suas próprias possibilidades democráticas. A fim de transformar uma crítica moralista defensiva da mercadorização da moeda num programa positivo de contestação democrática do poder de dinheiro, precisamos de atender aos momentos precisos em que o dinheiro se torna um meio de dominação e deixa de ser a "corrente" da política.

A política da moeda ficou evidente, no passado recente, quando as decisões do BCE tiveram fortes implicações para os países da periferia europeia, como Portugal, sujeitos a planos de ajustamento criminosos que aliviaram apenas quando o mesmo BCE decidiu finalmente agir como um Banco Central, financiando (mesmo que indiretamente) os Estados sujeitos à chantagem dos mercados financeiros. A sujeição dos Estados aos ditames dos mercados financeiros também não caiu do céu. As escolhas dos Estados são muito maiores a não ser quando se colocam a si próprios numa camisa de forças como essa. As possibilidades das respostas à pandemia são uma provas inequívocas disso. 

Esta obra é, portanto, um ótimo antídoto contra as falácias da independência dos Bancos Centrais, teorias da neutralidade da moeda, teorias da liberalização do comércio internacional, criptomoedas supostamente independentes, a TINA, as medidas de austeridade, os ajustamentos salariais, entre tantas outras que infestam o pensamento atual e procuram sempre reduzir o horizonte das nossas possibilidades de escolha coletiva democrática.

Na situação atual, fica clara a necessidade de recuperar o trabalho de Keynes e as suas propostas de transformação dos sistemas monetários nacionais (recuperando o papel das políticas públicas) e internacionais (recuperando o papel da cooperação).

Eich, professor de Teoria Política, dá um precioso contributo nesse sentido. Faz falta um contributo equivalente do lado da Economia. 


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