segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Criptocenas


O colapso da FTX é a mais recente das hecatombes que se têm multiplicado dentro do “ecossistema”, que inclui as (incorretamente) chamadas criptomoedas, outros “instrumentos” análogos, plataformas de troca, etc. A fragilidade deste negócio não tem nada de imprevisível ou sequer indesejado. As criptomoedas são um esquema de pirâmide agravado pelo desperdício e por uma inimputabilidade acrescida. Como qualquer projeto fraudulento, o propósito não é durar. O propósito é sacar o máximo de dinheiro aos incautos (dinheiro a sério, bem entendido), fechar a loja e fugir. A cobertura dada à ocultação de riqueza, a evasão fiscal ou as transações ilegais é um bónus e o seu verdadeiro valor de uso. No entanto, o negócio continua, graças a um intenso lobby político e vários expedientes de marketing. As criptomoedas seguem o manual de muitas outras bolhas financeiras com uma eficácia inexcedível:

1. Tudo isto é muito sofisticado

O primeiro ponto em comum com as outras bolhas especulativas é a ideia de que o produto em causa está na fronteira da inovação, que é o futuro da economia e que só os broncos é que não o percebem, por força de uma impenitente falta de visão. É por isso fundamental trabalhar com uma terminologia aparentemente técnica no plano “financeiro” e tecnológico. Quanto mais indecifrável, melhor. Menor será a possibilidade de que alguém perceba que o que está a ser vendido não tem nem pode ter qualquer valor, a não ser o que lhe é atribuído pela miragem de um enriquecimento rápido.

2. Não há duas criptos iguais

Depois das bitcoins, vieram as stablecoins, depois vieram “produtos” derivados vários, tokens, etc. e ainda não vimos nada, que o mundo da fantasia é inesgotável. O mais importante é criar uma diferenciação infinita em relação ao que veio (e colapsou) antes. Só assim se pode continuar a vender banha de cobra: mudando permanentemente o nome do produto.

3. Tudo o que é cripto se dissolve no offshore

Se vai criar uma criptomoeda, não se engane. Tem de ser num offshore. Quando se troca as supermoedas do futuro por euros e dólares velhos e bolorentos e se planeia fugir (com os euros e dólares, claro), convém montar operação num local em que o rasto seja difícil de seguir. Investidores descontentes podem tornar-se extremamente incómodos e os reguladores, mesmo que pouco diligentes, são sempre uma maçada.

4. Ter um ministro é bom, um Governo inteiro é melhor

Todos os negócios fraudulentos funcionam melhor com uma regulação amiga. Já milhões perderam milhões na vertigem cripto? É o risco, estúpido. É deixar o mercado funcionar, que as boas criptomoedas hão-de emergir... e depois submergir. Se o Governo criar benefícios e isenções fiscais, não só evita a tributação, como credibiliza a fraude, tratando-a como se fosse um investimento.

5. Quando tudo corre mal, a palavra de ordem é solidez

Entretanto, as criptocenas já têm uma história. E apesar de todo o marketing, o produto está a ganhar má fama, por força de tanto colapso em tão pouco tempo. Também aqui, a fantasia nunca pára. Algumas criptos indexam-se... a outras criptos. Outras asseguram que têm “reservas”. De quanto? Em quê? Vale tudo, desde que o investidor continue a pagar naquelas moedas ultrapassadas que já ninguém quer, a não ser os criptodonos. Quando tudo falha, o argumento derradeiro é pungente: se os bancos falham, porque é que nós também não havemos de falhar? As criptos são a legalização da burla.

O conceito de criptomoeda não tem sentido. O valor de uma moeda depende da legitimidade e garantia de um Estado. As moedas não vão à falência. Já agora, o conceito de criptoativo, que muitas vezes substitui o de criptomoeda, também não colhe. Um ativo financeiro tem de ter uma relação, ainda que indireta, com alguma forma de bem económico. As criptos não têm qualquer relação com nada na economia real. São bolinhas de sabão. E a todas acontecerá o que acontece às bolinhas de sabão. Qualquer criança sabe o que é.

Crónica publicada originalmente no setenta e quatro.

9 comentários:

  1. Que salganhada que vai para aqui. Quando não se percebe um tema muito complexo, supõe-se e generaliza-se...

    Algumas "criptomoedas" são interessantes por si mesmas e de facto ainda é cedo para tirar grandes conclusões acerca delas e da sua utilidade prática. Muitas outras (provavelmente a esmagadora maioria) são sim tentativas de fraude ou de abuso que tais mercados desregulados permitem.

    Falando na criptomoeda original, porque razão iriam desaparecer no futuro as transações em bitcoin? Seria talvez o excesso de concentração das empresas mineradores que provocaria a falta de confiança no ativo (escasso)? Se a mineração deixar de ser realmente descentralizada, então a bitcoin podia perder o seu sentido.

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  2. Obrigado José Gusmão! Há anos que eu ando a dize lo aos meus amigos!

    A.Pais

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  3. (CBDC: Central Bank Digital Currency).

    "...The ECB, the BOE, the BOJ — they’re all government-owned and operated entities. The Fed is not.
    So while commercial banks in Europe, the UK, and Japan will all get screwed with the introduction of CBDCs they aren’t tied to the commercial banks, and the level of influence isn’t the same as in the US.
    In the US the central bank is actually owned by commercial banks. Literally....".

    https://www.zerohedge.com/news/2022-11-20/davos-will-use-cbdcs-destroy-commercial-banks

    Por cá ofusca-se a realidade dos (macro) factos com a análize de egozinhos, Costas & Cia.

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  4. Outro comentário divertido...

    «The U.S. Approach to Central Banking
    The framers of the Federal Reserve Act purposely rejected the concept of a single central bank. Instead, they provided for a central banking "system" with three salient features: (1) a central governing Board, (2) a decentralized operating structure of 12 Reserve Banks, and (3) a combination of public and private characteristics.

    Although parts of the Federal Reserve System share some characteristics with private-sector entities, the Federal Reserve was established to serve the public interest.

    There are three key entities in the Federal Reserve System: the Board of Governors, the Federal Reserve Banks (Reserve Banks), and the Federal Open Market Committee (FOMC). The Board of Governors, an agency of the federal government that reports to and is directly accountable to Congress, provides general guidance for the System and oversees the 12 Reserve Banks.

    Within the System, certain responsibilities are shared between the Board of Governors in Washington, D.C., whose members are appointed by the President with the advice and consent of the Senate, and the Federal Reserve Banks and Branches, which constitute the System's operating presence around the country. While the Federal Reserve has frequent communication with executive branch and congressional officials, its decisions are made independently.»

    https://www.federalreserve.gov/aboutthefed/structure-federal-reserve-system.htm

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  5. E o Sr. Anónimo de 23 Nov as 12.39 acredita nas “alternativas “ que Chris MacIntosh tenta “vender” através do seu blog , operando a partir do Dubai?

    A. Pais

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  6. Jose M Sousa bem certeiro em ambos os reparos que faz.
    Pode-se acrescentar que ambos os anonimos (ou sera o mesmo?) podiam figurar sem dificuldade como ilustracoes do texto de Jose Gusmao.
    Na minha experiencia, distraida, distante e desinteressada destas cenas crypto, a unica "utilidade" que vislumbrei e a real facilidade como sao usadas para todo o tipo de transacoes ilegais em sinistros mercados negros...

    Para compor este ramalhete fedorento so falta mesmo o aval daqueles economistas muito serios que os "merdia" insistem em sustentar a todo o custo, refiro-me aos Alexandres Reis Fernandos Ricardos desta vidinha...

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  7. https://www.coppolacomment.com/2022/11/the-entire-crypto-ecosystem-is-ponzi.html

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