segunda-feira, 28 de novembro de 2022

A bola é redonda como a globalização


«Em vez de demonizarmos o Qatar, procuremos identificar as relações que o ligam a outras partes do mercado mundial de que ele igualmente participa. (...) O Qatar não é uma falha civilizacional, mas parte integrante do mundo liberal. E não é sequer uma parte menor. O ano 2001, o ano do 11 de setembro, foi também aquele em que a Organização Mundial do Comércio (OMC) aterrou em Doha, capital do Qatar, procurando evitar a força das manifestações que dois anos antes se lhe haviam oposto em Seattle. No Qatar, a OMC promoveu mais uma ronda de negociações instituintes de um mercado global em que tudo pode ser comprado e vendido "livremente". Na altura, organizações sindicais, movimentos sociais e partidos da esquerda iliberal alertaram para o que aí vinha. Denunciaram que a abertura de negociações no âmbito da OMC não era acompanhada da aplicação de convenções definidas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e de regras elementares respeitantes dos trabalhadores e do ambiente. Já então havia quem avisasse que o novo mundo liberal não seria exatamente o novo paraíso na terra.
Ainda hoje é difícil fazer ouvir este aviso. Mesmo quem denuncia o Mundial do Qatar é frequentemente complacente com o mundo que o liberalismo pretende criar. Na melhor das hipóteses, as denúncias limitam-se a sugerir "cumplicidade" de políticos e empresários ocidentais com um acontecimento que, em bom rigor, foram eles mesmos que produziram, de mãos dadas com a elite qatari e a FIFA. Importa, por isso, não reduzir o Mundial do Qatar a um escândalo humanitário – com um empolamento desnecessário do número de vítimas –, que exige simplesmente a nossa mais veemente condenação ética. É preciso entendê-lo e criticá-lo na dinâmica política e económica que ele anima.
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José Neves, A bola é redonda como a globalização

Excerto de um artigo de opinião imperdível, publicado no passado dia 24 de novembro no Público e que pode ser lido na íntegra aqui (clicar em «Ler mais»).


A bola é redonda como a globalização
José Neves (Público, 24 de novembro de 2022)

A opinião publicada tomou recentemente conhecimento de que a construção dos estádios de futebol terá levado à morte de um elevado número de trabalhadores. E adquiriu igualmente consciência de que o torneio decorre num país em que são desrespeitados vários direitos humanos que reputamos de universais. Esta consciência e aquele conhecimento têm permitido denunciar alguns dos mecanismos de poder inerentes à organização do Mundial do Qatar. Mas os termos das denúncias têm secundarizado ou ignorado outras tantas lógicas constituintes do evento.

Vejamos o caso dos estádios. As condições em que foram erguidos têm levado a que muito se critique o desrespeito do Qatar pelos direitos dos trabalhadores. E, contudo, o processo da sua construção envolveu empresas de vários países ocidentais. De resto, podemos mesmo dizer que os estádios do Mundial são mais do que simples edifícios qataris. São – literalmente – estúdios televisivos em que se produzem as imagens cujos direitos de transmissão são comercializados pela indústria dos media. Por isso, se resumirmos as circunstâncias do Mundial do Qatar às caraterísticas culturais, sociais e geográficas do próprio Qatar, deixamos metade da história por contar.

O Qatar não é um país distante, que «fica no meio do deserto», e não é apenas por graça da corrupção vigente no «mundo do futebol» que o país terá acabado a organizar o Mundial. Tão pouco é uma aberração histórica, um país «medieval» e «arcaico» anacronicamente desligado da marcha da humanidade. Faz anos que apanhou o comboio da «civilização» e há mais de uma década que os recursos naturais e o dinheiro do Qatar investem na vida económica do ocidente. O Qatar fica no Médio Oriente, mas também está presente na gestão dos pequenos e grandes clubes de futebol europeus, de Braga a Paris, e dos grandes aeroportos e bancos ocidentais. Em suma, quem está à procura de motivos de «vergonha» pode procurá-los além do espaço e tempo do Mundial.

Não estou a sugerir, sublinhe-se, que cuidemos dos «nossos» problemas em vez de apontarmos o dedo aos problemas dos «outros». É antes da própria dicotomia «nós»/«eles» que nos devemos libertar. Em vez de demonizarmos o Qatar, procuremos identificar as relações que o ligam a outras partes do mercado mundial de que ele igualmente participa. Neste sentido, mais do que da deslocação de António Costa ao Mundial, importaria falarmos do passado recente. De como, em 2017, o mesmo primeiro-ministro se deslocou ao Qatar para procurar atrair o capital qatari, de caminho saudando os «profissionais qualificados» portugueses que contribuíram para o sucesso da economia qatari. Ou falemos de 2012, quando a diplomacia económica de Paulo Portas concedeu benefícios fiscais ao capital qatari, entre alguns outros.

O Qatar não é uma falha civilizacional, mas parte integrante do mundo liberal. E não é sequer uma parte menor. O ano 2001, o ano do 11 de setembro, foi também aquele em que a Organização Mundial do Comércio (OMC) aterrou em Doha, capital do Qatar, procurando evitar a força das manifestações que dois anos antes se lhe haviam oposto em Seattle. No Qatar, a OMC promoveu mais uma ronda de negociações instituintes de um mercado global em que tudo pode ser comprado e vendido «livremente». Na altura, organizações sindicais, movimentos sociais e partidos da esquerda iliberal alertaram para o que aí vinha. Denunciaram que a abertura de negociações no âmbito da OMC não era acompanhada da aplicação de convenções definidas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e de regras elementares respeitantes dos trabalhadores e do ambiente. Já então havia quem avisasse que o novo mundo liberal não seria exatamente o novo paraíso na terra.

Ainda hoje é difícil fazer ouvir este aviso. Mesmo quem denuncia o Mundial do Qatar é frequentemente complacente com o mundo que o liberalismo pretende criar. Na melhor das hipóteses, as denúncias limitam-se a sugerir «cumplicidade» de políticos e empresários ocidentais com um acontecimento que, em bom rigor, foram eles mesmos que produziram, de mãos dadas com a elite qatari e a FIFA. Importa, por isso, não reduzir o Mundial do Qatar a um escândalo humanitário – com um empolamento desnecessário do número de vítimas –, que exige simplesmente a nossa mais veemente condenação ética. É preciso entendê-lo e criticá-lo na dinâmica política e económica que ele anima. Tanto mais que, de outro modo, é grande o risco de a defesa dos direitos humanos e laborais, mesmo se armada de uma retórica universalista, redundar em argumentos orientalistas e racistas.

Termino com um exemplo. Numa campanha contra o Mundial promovida a partir do Ocidente, o torneio é denunciado pela seguinte caricatura: uma bola faz as vezes da cabeça de um homem, sobre ela assentando um véu e um cordão negro, tudo sujo pelo sangue dos que morreram na construção dos estádios. Um traje relativamente comum entre a generalidade da população masculina árabe é, assim, usado para estereotipar um «outro» de que «nós», a opinião pública ocidental, não queremos ser «cúmplices». Enquanto isso se passa, um homem como Nasser Al-Ghanim Khelaifi, que é atualmente o líder da QSI, fundo de investimentos associado ao Governo do Qatar, e presidente do Paris Saint Germain, passeia livremente por aí, equipado com um impecável fato e gravata. Ou não fosse ele mais um distinto CEO do mundo liberal em que vivemos.

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