quarta-feira, 9 de novembro de 2022

É real


Iniciamos este artigo com um pedido de desculpas aos leitores. Em artigo publicado no passado mês de Maio errámos no cálculo da transferência de rendimentos do trabalho para o capital em 2022: em vez dos 4,3%, por nós antecipados com os dados disponíveis na altura, esta transferência será afinal de 7,1%, usando os dados mais actualizados e que constam do Relatório do Orçamento do Estado (OE) para o próximo ano. O crescimento dos salários reais em 2022 será negativo (-2,6%) e o crescimento da produtividade será de 4,5%. Para que o peso dos salários, ajustado pelo número de trabalhadores, no rendimento nacional permaneça constante, o seu crescimento real deveria ser igual ao da produtividade (4,5%, ao invés de -2,6%). Seja como for, estamos sempre perante a maior transferência de rendimentos do milénio, agora bem mais do dobro da registada durante a Troika.

O corte salarial real, que se aproxima de um salário mensal por cada trabalhador em funções públicas — 0,9% de aumento nominal do salário para uma inflação de 7,6%, em 2022 —, contribui decisivamente para este resultado regressivo. Prevendo para 2023, irrealisticamente, uma taxa de inflação de 4%, o governo alardeia um crescimento médio dos salários na função pública de 3,6%. No Relatório do OE para 2022, o governo previa uma taxa de inflação de 0,9% e alinhava o crescimento dos salários com esta previsão…

O OE para 2023 garante que a despesa pública orçamentada, que é diferente da executada, cresce nominalmente 3,5%, portanto, abaixo da taxa de inflação prevista. Os rendimentos directos e indirectos de tantos diminuem em termos reais, já que a despesa pública diminui realmente e em percentagem do produto interno bruto (PIB). Nas prestações sociais nem se disfarça, já que estas diminuem logo em termos nominais (-0,2%). A receita cresce em linha com a inflação, ainda de acordo com as previsões do governo.

Depois da austeridade da Troika, com um governo de maioria absoluta das direitas, assente num esforço para cortar directamente e indirectamente os salários e as pensões em termos nominais, num contexto de pressão deflacionária, temos agora a austeridade realmente existente do governo de maioria absoluta do Partido Socialista (PS), apostado no cumprimento escrupuloso de regras europeias suspensas, cortando directa e indirectamente o poder de compra dos salários e das pensões em contexto de pressões inflacionárias. Nesta periferia, a austeridade é permanente, logo, a crise também. A despesa de uns é o rendimento de outros: se o Estado faz cortes reais, as famílias e as empresas também tendem a cortar realmente nas despesas de consumo e de investimento.

O OE para 2023 é então marcado por um truque bastante básico, baseado no padrão comportamental da ilusão monetária: prometer aumentos nominais, realizar cortes reais. O primeiro-ministro António Costa falou de um OE de estabilidade, confiança e compromisso. Na realidade, estamos perante um Orçamento que aumenta a instabilidade e a desconfiança sociais, sendo marcado por um compromisso com uma minoria social absoluta, a que rejubila com os lucros recorde registados por grandes empresas da fileira energética, da distribuição ou da banca, à boleia de um poder de mercado sem freios e contrapesos democráticos.

É como se este governo fosse fiel à economia política descrita por Adam Smith no final do século XVIII: «O governo civil, na medida em que é instituído com vista à segurança da propriedade, é, na realidade, instituído com vista à defesa dos ricos em prejuízo dos pobres, ou daqueles que possuem alguma propriedade em detrimento daqueles que nada possuem».

O resto do artigo pode ser lido na edição em papel do Le Monde diplomatique - edição portuguesa ou no site, se forem assinantes.

 

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