sábado, 15 de outubro de 2022

Pague agora... e logo se vê


O Governo assinou no domingo passado o que chamou o Acordo para os rendimentos. O nome é pomposo como costuma ser, e não cumpre nada do que promete, como também se vai tornando hábito. Pelo menos no que promete aos trabalhadores. O que é apresentado é uma sequência de truques que, mesmo apostando no ilusionismo, têm consequências bem reais.

O primeiro truque é a notícia de que o acordo foi assinado com “os parceiros sociais”. Como de costume, “os parceiros sociais” são as confederações patronais e a sua central “sindical”, a UGT. A mesma que até com Passos Coelho assinou acordos e que, basicamente, assina tudo o que lhe ponham à frente. A CGTP, a central sindical de longe mais representativa do nosso país, ficou mais uma vez de parte.

O segundo truque é o uso da ilusão monetária, expediente em que o Governo se está a esmerar. O Governo anuncia um aumento de rendimento e até do aumento do peso dos salários no rendimento nacional, mas os números do Governo não batem certo. Para termos um aumento do peso dos salários no rendimento nacional, o aumento nominal teria de ser superior ao aumento combinado da produtividade e dos preços. Sabemos que isso não vai acontecer em 2022, muito pelo contrário. E a fazer fé nas projeções da OCDE, também não vai acontecer em 2023.

O terceiro truque é a garantia destes aumentos, ou melhor, a sua ausência. Os patrões conseguem já, garantida e incondicionalmente, uma enxurrada de benefícios, incluindo a dedução de prejuízos fiscais, em que Costa reverte uma medida da Geringonça para regressar à reforma de Passos Coelho. Mas nada disto tem nenhum tipo de garantia. O Governo cria um incentivo fiscal para as empresas que cumpram as metas de aumentos nominais, mas as empresas que não o entendam fazer, não fazem. E têm todos os outros benefícios à mesma.

O quarto truque esconde de onde vem o dinheiro. Para além de todas as borlas fiscais e contributivas que são dadas às empresas em troca de coisa nenhuma. A majoração dos custos com a valorização salarial significa, basicamente, que o aumento dos salários será pago em parte pelos contribuintes. Se juntarmos todos os benefícios que estão previstos nesta proposta, poderemos até pagar a totalidade ou mais. É impossível saber, porque não há forma de prever quantas empresas aumentarão os salários e o Governo não divulgou o custo das borlas fiscais e contributivas.

O truque presente em toda a proposta é a ideia de que se aumenta salários sem mudar nada na nossa economia ou a fezada de que baixando os impostos às empresas, estas irão investir os lucros adicionais na modernização da nossa economia ou no aumento dos salários. Ou seja, a fezada de que o que nunca aconteceu irá acontecer agora. Na ausência de uma estratégia para o país, o Governo mudou-se de vez para a receita liberal: baixar ainda mais os impostos às grandes empresas (que são quem mais beneficia das reduções no IRC), depauperar o Estado e serviços públicos e esperar que pingue qualquer coisa para quem trabalha. Para esses, a receita inversa: pagam agora... e depois logo se vê. Sendo que este filme já vimos.

Artigo publicado no Setenta e Quatro

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