sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Eleições e Economia no Brasil



Tiago Oliveira é um economista brasileiro, doutor em Desenvolvimento Económico pela Unicamp. Entre 2018 e 2020, realizou pesquisa de pós-doutoramento no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra e é, atualmente, pesquisador colaborador do Observatório sobre Crises e Alternativas (CRISALT/CES). Tomou a iniciativa generosa de nos enviar o texto abaixo, que publicamos com prazer:

Eleições e Economia no Brasil: o que está em jogo?

Desde o fim do ciclo político autoritário capitaneado ao longo de 21 anos pelos militares, em 1985, que as eleições presidenciais no Brasil contrapõem, ou polarizam, para lançarmos mão de um termo recorrente nos tempos atuais, dois projetos econômicos distintos.

Estilizando ideias, o que é necessário dado o espaço que dispomos, podemos dizer que, de um lado, tem se perfilado um projeto econômico de cariz desenvolvimentista, cujo fim, elevados níveis de bem-estar social e econômico, deve ser perseguido deliberadamente e conscientemente pelo intervencionismo estatal, com suporte burocrático adequado e ampla legitimidade política e social. O meio incontornável para tanto é a industrialização da economia, único caminho tido como capaz de assegurar elevado crescimento econômico, aumento da produtividade e difusão do progresso técnico. De outro lado, o projeto econômico neoliberal prima pela centralidade dada à estabilização monetária, uma vez que, guiados pelo sistema de preços, os agentes econômicos privados poderiam decidir racionalmente e eficazmente a alocação de recursos produtivos escassos, maximizando o crescimento econômico e o bem-estar da sociedade. Nesse sentido, busca-se avançar na mercantilização da vida econômica e na liberalização dos mercados, o financeiro, o de bens e serviços e o de trabalho.

Não seria disparatado afirmar, penso eu, que, em menor ou maior extensão, entre 1994 e 2014 cada um dos projetos acima delineados, o desenvolvimentista e o neoliberal, foi encampado, nessa ordem, pelos até então principais partidos políticos do país: o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB).

Porém, uma longa e grave crise política sucedeu-se, ainda em 2013, a vários e massivos protestos de rua que tomaram conta das principais cidades brasileiras. A deflagração da Operação Lava Jato, no ano seguinte, e seus impactos disruptivos sobre o establishment político brasileiro e a economia pavimentaram o caminho que redundou no golpe parlamentar de 2015, quando Dilma Rousseff foi afastada do cargo de presidente da República e seu vice-presidente, Michel Temer, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), foi alçado ao posto máximo da República Federativa do Brasil.


Importa aqui, entretanto, determo-nos nos contornos e fatos econômicos atinentes a esse processo. Em outubro de 2015, mesmo antes, portanto, do desfecho do impeachment da ex-presidente Dilma, o PMDB divulgou o documento intitulado Uma Ponte para o Futuro. Nele, o Partido expunha uma série de medidas e propostas de natureza neoliberal para a resolução dos problemas econômicos brasileiros, em confronto direto com o programa de governo que deu suporte à vitória da coligação Rousseff-Temer e numa sinalização indisfarçável aos mercados e às elites econômicas de que a deposição da presidente Dilma Rousseff significaria o retorno da agenda econômica neoliberal.

De facto, o Governo Temer promoveu uma profunda reorganização no bloco no poder e tornou possível a implementação de um projeto econômico neoliberal sem tergiversações, porquanto não houve a necessidade de se buscar a legitimação das urnas e, portanto, os votos dos eleitores. Três reformas articularam a orientação neoliberal do projeto econômico que ascendeu a partir do golpe de 2015: a instituição, em dezembro de 2016, de um teto para os gastos públicos federais não-financeiros, dado pela inflação passada, e que impôs, pelo prazo inicial de vinte anos, uma redução brutal do tamanho do Estado brasileiro, nomeadamente no campo da política social; a reforma trabalhista de 2017, que significou a mais ambiciosa alteração da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) desde a sua criação, em 1943, e primou pela diminuição da proteção institucional do trabalho e a ampliação das garantias, da flexibilidade e da discricionariedade empresarial na gestão das relações de trabalho; por fim, a reforma da previdência de 2019, já realizada sob o Governo Bolsonaro, e que promoveu o rebaixamento do valor e dificultou o acesso aos benefícios previdenciários, penalizando sobretudo os trabalhadores mais pobres.

Deste modo, e conforme é possível inferir do parágrafo anterior, o governo Bolsonaro deve ser compreendido como uma continuidade do projeto econômico neoliberal implementado a partir de 2015, desta feita acompanhado pelo abandono, não se pode deixar de enfatizar essa dimensão, de todo verniz progressista que as experiências neoliberais anteriores manifestaram no campo dos direitos humanos.

Para ressaltar que o embate entre o projeto desenvolvimentista e o neoliberal (radicalizado) é, mais uma vez, o tema central nas eleições brasileiras de 2022, basta atentar para os programas dos dois candidatos em disputa. A leitura de cada um dos planos de governo[1], para além da retórica e da dissociação que porventura possam apresentar entre o que lá consta e as experiências concretas de governo, delineia tal embate de modo muito cristalino.

De um lado, a coligação Brasil da Esperança, do candidato a presidente Luiz Inácio Lula da Silva, traz como preocupação temas como “uma nova legislação trabalhista de extensa proteção social”, “reestruturação sindical”, “reindustrialização nacional”, “valorização do salário mínimo”, “capacidades estatais, planejamento e participação social”, “mercado interno com potencial de produção e consumo em massa”, “revogação do teto de gastos”, “reconstrução da seguridade e da previdência social”, “progressividade tributária” e “recomposição do papel indutor e coordenador do Estado e das empresas estatais”. Resta evidente a sua inspiração desenvolvimentista, portanto.

De outro lado, a coligação Pelo Bem do Brasil, do candidato à reeleição Jair Bolsonaro, elenca preocupações da seguinte ordem: “desestatização”, “segurança jurídica”, “redução e simplificação de impostos”, “retirar da população o peso do Estado dos seus ombros”, “manutenção da nova legislação trabalhista”, “estabilidade econômica e sustentabilidade da trajetória da dívida pública”. Não há dúvida, creio eu, do matiz neoliberal do projeto econômico que emerge desse plano de governo.

Infelizmente, o debate público brasileiro, capturado pela extrema-direita que atualmente ocupa a presidência da República, não deixa espaço para uma discussão suficientemente exaustiva das consequências que podem advir de cada um dos projetos econômicos em disputa em 2022. As cartas escritas pelo candidato Luiz Inácio Lula da Silva, separadas por exatos vinte anos, ilustram perfeitamente bem como o confronto de ideias mudou e deteriorou-se no período. Em 2002, a preocupação era acenar para os mercados e às elites econômicas, ressabiadas pela iminente ascensão do ex-líder sindical à presidência da República, de que os contratos vigentes seriam respeitados e que a responsabilidade fiscal seria um compromisso inegociável, pese embora reafirmasse a necessidade da construção de um modelo econômico mais inclusivo e justo. Este ano, a carta foi direcionada aos brasileiros evangélicos, assegurando a liberdade de culto, o respeito às famílias e que temas caros a esse público, como o aborto, não estarão em discussão nos próximos anos.

Oculta-se convenientemente o debate econômico em disputa e, com isso, todas as mazelas como a fome, a desigualdade e a pobreza que foram produzidas nos últimos anos, de insofismável hegemonia da agenda econômica neoliberal.

[1] Os planos de governo foram acessados a partir do site da internet do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

1 comentário:

  1. Dentro da esfera económica, só faltou falar de um outro aspecto que respeita o governo extremista do cangalho Bolsonaro e o acusa na agenda neoliberal: a verificação de um processo acelerado de desindustrialização (com destaque para a saída de várias empresas da indústria automóvel).

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