terça-feira, 25 de outubro de 2022

ECOs do tecido empresarial

No dia em que a GALP anuncia um aumento de 86% dos seus lucros, o ECO alerta-nos para o sacrifício que o "tecido empresarial" está a fazer, comprimindo as suas margens para não passar os custos para os consumidores.

“…desde 2020 as empresas estão a minguar as suas margens para acomodar a subida dos custos.”

“Mas, pelo menos em Portugal, o tecido empresarial tem vindo a acomodar grande parte da inflação. Até quando?”

Além de conseguir a proeza de nem por uma vez referir os salários dos trabalhadores, o exercício em que se baseia o artigo tem alguns problemas, para ser simpático. O artigo pega na evolução do índice de preços da produção na indústria (que está a crescer cerca de 20% este ano e incluí energia, água e saneamento), equiparando-o aos custos das empresas e na evolução do índice harmonizado de preços do consumidor (a crescer 7%), equiparando-o aos preços de venda das empresas, divide 7 por 20 (=0.35) e conclui que as empresas só estão a passar 35% dos custos para o consumidor final.

Em primeiro lugar, o índice harmonizado de preços do consumidor não representa exatamente os preços praticados pelas empresas nacionais. Muitos produtos consumidos são produzidos no exterior e muitos dos produtos produzidos cá são exportados e, portanto, não consumidos cá. Mas este é um problema menor, quase insignificante até, quando comparado com a equiparação dos preços dos produtos industriais com os custos da empresa.

Os produtos industriais são apenas uma parte da estrutura de custos duma empresa, sendo que as empresas onde estes representam uma fatia maior dos custos são precisamente as do ramo da indústria que pelos vistos já estão a subir os seus preços em cerca de 20%.

Imaginemos uma empresa que vende o seu produto a 1 euro (preço antes de impostos) e que para o produzir tem de gastar 15 cêntimos em produtos industriais, 30 cêntimos em outros produtos, 30 cêntimos em salários, ficando com 25 cêntimos de lucro. Suponhamos agora, pegando nos dados do artigo do ECO, que o preço dos produtos industriais sobe 20%, que o preço dos produtos de outros ramos sobe 7% em linha com a inflação, que os salários se mantêm (já que são ignorados no artigo…) e que a empresa também sobe o preço do seu produto 7% passando este a custar 1.07€. O que acontece aos lucros da empresa neste cenário?

Podemos ver que cada produto vendido agora a 1.07€, resulta num lucro de 26.9 cêntimos, um aumento de 7.6% face aos 25 cêntimos do período inicial. Neste caso poderíamos reescrever o excerto do artigo: “…desde 2020 as empresas estão a minguar as suas margens a congelar os salários para acomodar a subida dos custos.”

Mas esta estrutura será representativa do “tecido empresarial” que o artigo fala? Podemos começar para olhar para a estrutura produtiva da nossa economia que é de facto diferente do exemplo que apresentei acima e que está na coluna mais à esquerda do quadro seguinte. Este quadro mostra a desagregação da produção a preços base (que significa basicamente sem impostos sobre os produtos) em consumos intermédios (de produtos industriais e outros), remunerações, excedente bruto de exploração (lucros) e uma pequena parcela de outros impostos sobre a produção líquidos de outros subsídios à produção (dados de 2020, último ano disponível, do INE daqui).


Como já referi, de facto a estrutura produtiva do total da economia é bastante diferente da que usei no exemplo, mas o artigo do eco, o que tenta fazer é aferir o efeito do aumento dos preços dos produtos industriais (que inclui energia, água e saneamento, volto a lembrar) nas margens, ou nos lucros dos restantes sectores, portanto o que nos interessa ver é a estrutura produtiva excluindo os ramos da indústria, energia, água e saneamento. Esta estrutura pode ser vista na coluna mais à direita do quadro anterior e como se pode verificar é bastante semelhante à do exemplo que usei.

Com tudo isto não pretendo demonstrar que as empresas não estão a passar dificuldades, tenho a certeza de que muitas estarão, apenas pretendo contestar o cenário idílico apresentado pelo ECO. O poder que cada agente tem para influenciar as suas despesas e receitas é decisivo para determinar a forma como estes ultrapassam, ou não, períodos de maior dificuldade e se as grandes empresas podem usar o seu maior poder para apresentar lucros históricos, outras com menos capacidade de influenciar a sua situação financeira não terão tanta sorte. E menos sorte terão os trabalhadores que estão no fundo desta hierarquia de poder sobre receitas e despesas, em que todos fazem o que podem para alterar o seu destino. Os ECOs do tecido empresarial são mais uma manifestação do poder de uma classe para influenciar a sua sina, este texto de outra.


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