Sobre as grandes questões do universo político-financeiro - temas tão candentes como combate à inflação, subida de taxas de juro, perda brutal do poder de compra, ameaça de recessão económica, falências, desemprego, crise social generalizada - mau grado o ruído, não existe propriamente informação. A qual exige rigor, enquadramento, explicação adequada. Tudo o que há é propaganda. Ou o eco de um 'spin', em tudo idêntico à propaganda da guerra, que se multiplica e invade todo o espaço mediático. O conteúdo do 'spin' e o seu suposto fundamento não é sequer analisado, muito menos debatido. O 'spin' torna-se 'mainstream' e arrasa tudo na sua torrente. Sem sombra de contraditório. Último exemplo: o BCE lançou - timidamente e após longa hesitação - a ideia de que pode atacar a inflação e "arrefecer a procura" (sic) nos mercados mediante subidas de taxas de juro.
Depois de um período de justificada dúvida, o BCE propõe-se atacar o incêndio no sítio errado. Obviamente não há qualquer excesso de procura nos mercados, nem a economia europeia está sobreaquecida. A procura mal está a recuperar fôlego, após a fortíssima quebra nos anos de pandemia. Não existe nenhum indício de sobreaquecimento. Basta verificar com atenção os indicadores de crescimento médio líquido da procura nos últimos 2 anos e meio. A causa da inflação na zona € não é o excesso de procura, evidentemente. A causa não está do lado da procura, está do lado oposto, na oferta: no aumento de custos de produção, a começar na energia, em matérias-primas essenciais ou na escassez de 'commodities' como 'chips'. Passando depois para os transportes e por sinuosas cadeias de distribuição totalmente desreguladas.
Este perfil de inflação gerada do lado da oferta não pode evidentemente ser resolvido pelo lado da procura. Nem pelo BCE, nem através de subidas 'ad hoc' de taxas de juro. É uma tarefa para os políticos. "Esse problema é para ser resolvido por outras pessoas, não por nós" - foi o que disse a senhora Lagarde, com todas as letras, na passada 5ª feira. Parece que ninguém a quis - nem quer - ouvir. Portanto, nos media e nos painéis de comentário irá continuar a falar-se de uma só coisa: se as taxas de juro deverão subir 0,25, 0,5, 0,75 ou mais - e quantas vezes. A opinião pública começou a ser "massajada" para aceitar mais uma brutal transferência de recursos do trabalho para o capital. O 'spin' do "aumento inevitável" das taxas de juro lançado como de costume pela alta finança - único setor a lucrar com o aumento do custo do dinheiro - tornou-se 'mainstream' e invadiu tudo. Sem sombra de contraditório. Pura propaganda, como na guerra.
O texto acima foi roubado a Carlos Vargas.
Acerca da brutal transferência de recursos do trabalho para o capital, conferir aqui.
Acrescentaria apenas que, entre as medidas pelas quais se deve começar para conter a inflação, a meu ver, deviam ter prioridade as seguintes:
- Uma solução negociada para a questão da guerra Rússia-Ucrânia e o consequente fim de sanções que infligem danos primeira e mais intensamente nos países europeus que as impõem;
- Programa urgente de política orçamental e monetária, que conjugue um maciço investimento público e privado em energias sustentáveis com taxas de juro próximas de zero e se apoie no controle público da quantidade e qualidade do crédito;
- Intervenção imediata no mercado financeiro de derivados onde se estabelece o preço da energia e por forma a impedir que a falência da maior empresa de energia alemã, seja apenas a primeira de muitas pelo mundo fora (mais acerca deste assunto, num próximo post);
- Controle público dos preços de bens estratégicos;
- Política de rendimentos que garanta subidas salariais iguais, mas não superiores, ao crescimento conjugado dos preços e da produtividade.
Ora. E o BCE sabe isto tudo. Este artigo no FT dá mais umas pistas: https://12ft.io/proxy?q=https://www.ft.com/content/2d79d153-fffa-4441-b79f-0a808a51108f (o link é para o artigo sem "paywall"). Contém também referências a um discurso bastante claro da Isabel Schnabel (do BCE) sobre a encruzilhada em que se encontram. Para o público, a cartilha de Frankfurt continua a ser lida em voz alta por todos os agentes, económicos e políticos, sem qualquer contradição. Da tese da "grande moderação" na política monetária passou-se para a da grande farsa.
ResponderEliminarUnião Europeia aumentou 70% compras à Rússia até julho
ResponderEliminarAfinal é só "gargarol" e areia para os olhos:
https://eco.sapo.pt/2022/09/15/uniao-europeia-aumentou-70-compras-a-russia-ate-julho/?fbclid=IwAR2BKxrD5RL02eJbGw4_s1lNt1q6Ki4GvzP3cc1lGRT6xZdQ_d5XHo18YUw
"subidas salariais não superiores ao crescimento conjugado dos preços e da produtividade".
ResponderEliminar- Por quê?
Caro anónimo 18:22,
ResponderEliminarAgradeço o comentário.
Por quê? - Para não acrescentar pressão da procura num momento de particular fragilidade sistémica e denodo militarista. Mas julgo que percebo o ponto. Os trabalhadores estão desde a década de 70 a perder fatias de rendimento/PIB para o capital. Em algum momento tem de ser oportuno reverter esta situação. A meu ver, falta uma avaliação positiva da relação de forças.
Abraço
Caro Paulo Coimbra,
ResponderEliminarÉ verdade que faltam relações de força positivas para reverter a transferência de rendimentos do trabalho para o capital. Porém, tenho dificuldades em limitar a razão dessa reversão em "momentos oportunos".
Parece bastante prudente sugerir, no imediato, "não acrescentar pressão da procura num momento de particular fragilidade sistémica e denodo militarista". Mas assim, isso não significa manter 'politicamente' ainda a fragilidade sistémica e o denodo militarista?
A questão que coloquei tem, por isso, uma certa profundidade orientativa. Julgo que a inversão geral da situação em que nos encontramos, passa pela afirmação de uma orientação política alternativa, na qual a valorização do trabalho é fundamental. Todo o momento é, a meu ver, oportuno para afirmar isto.
Aliás, na situação em que nos encontramos não vejo por que razão não se possa ponderar acrescentar pressão da procura. Qual é a grande diferença política? Em vez de se impor "sacrifícios" aos trabalhadores por "bens maiores" (cujas razões são de natureza absolutamente ideológica, para a ganância e a especulação), estaríamos a perceber com a valorização salarial que existem opções de âmbito sistémico e militarista que são erradas (ou, pelo menos, prejudiciais à valorização salarial).
Nada disto impediu de apreciar bastante o seu texto. Só achei importante tocar neste ponto.
Abraço.